São tantas as ruas das nossas infâncias. A minha nem era rua, se a gente pensar que rua tem que ter calçadas e carros passando por ela. Era um pedaço redondo de terra, que a gente chamava de larguinho. Era como se fosse um país, ou um planeta e nós éramos seus únicos habitantes. No bairro havia outras ruas, outros planetas, de outros habitantes. A gente chamava de rua qualquer lugar que virasse nosso planeta e só a gente pudesse habitar e encher com nossas brincadeiras. – Mãe posso ir pra rua? – eu perguntava. E a mãe sempre perguntava, em seguida – Terminou a lição? – eu respondia “já”, me levantando e saindo correndo para rua. Vestia minha roupa de astronauta e viajava pelos espaços, para o Planeta Criança, a rua da minha infância.
Na minha infância havia um portão preto que dividia duas ruas. Do lado de cá, cinco irmãos se escondiam debaixo da cama, da mesa ou atrás da porta. “Lá vou eu!” E todos saíam de seus esconderijos, saltando obstáculos, pulando sobre o sofá e as cadeiras, e corriam até a parede do lado de fora, no quintal. “Um, dois, três! Agora é sua vez!” E a gente começava tudo de novo…
Do outro lado do portão, na outra rua, havia mais crianças. Uns corriam para se esconder na quadra de cima, outros na quadra de baixo, até dentro de suas próprias casas, parecia muito divertido.
Na rua da minha infância, o que a gente mais fazia era jogar bola. Não havia meninas. Era um tempo em que as meninas não podiam ir para a rua. Tinham que ficar em casa. Dentro da casa também tinha espaço de rua, mas o delas era bem pequeno e só quando eram muito novinhas brincavam com os meninos. Mas aquela rua fora de casa não era permitida para elas. Quando eu chegava no larguinho era mesmo para jogar bola, mas também tinha o tempo do pião, da bolinha de gude ou da pipa. De vez em quando alguma outra brincadeira como a de lutinha ou de pegador.
Tínhamos um campinho de futebol. A parede da garagem da nossa rua recebeu o nome de Gol, que registrava as marcas das goleadas que eu recebia do meu irmão mais velho. Como eu jogava mal! Com baixa estatura não alcançava a parte superior do gol, com isso meu irmão, se apropriando de suas vantagens, apresentava todo o seu talento futebolístico.
Era na outra rua que havia dois grandes times, as traves eram feitas com dois pares de chinelos ou quatro grandes pedras, posicionadas, duas a cada lado do campo, e cumpriam distâncias exatas, demarcadas com passos firmes por uma das crianças. Todos gritavam ao mesmo tempo, meninos e meninas em uma só voz. Havia jogadores, torcedores, gandulas, juízes, um verdadeiro estádio de futebol.
Na minha rua havia adultos que não gostavam da gente. Moravam em volta da rua e brigavam para a gente não brincar. Se a bola caísse na casa de um deles, eles cortavam com uma faca. Os guardas do posto policial também não queriam que a gente brincasse na rua. Corriam atrás da gente e tomavam a bola. Na nossa rua, vivíamos como marginais, porque os adultos e a polícia diziam que o que a gente fazia era errado, como se fosse fora da lei.
Algumas vezes éramos convidados para jogar queimada na rua do outro lado do portão preto, mas a resposta era sempre a mesma: Não podemos! Felicidade era quando meu pai nos observava andando de bicicleta de uma esquina para outra, mas quando ouvíamos uma voz feminina gritando: Entrem para tomar banho!, atravessávamos aquele portal contrariados, sabíamos que após o banho acabavam as brincadeiras para nós, enquanto as outras crianças, na outra rua, continuavam até o pôr do sol com suas aventuras, diversões e alegrias.
Houve um dia em que meus pais, acredito que estavam de bom humor, nos permitiram brincar na outra rua, aquela tão encantadora. Pegamos o skate e, em uma avenida movimentada, subimos e descemos entre carros e ônibus. Tínhamos asas nos pés, nos sentíamos livres, libertos de todo e qualquer perigo. Saímos ilesos, apenas não pudemos brincar mais sem a proteção e supervisão de um adulto naquela rua colossal.
Mas a rua que nos era permitida também tinha sua magia, tinha stop, jogo de adivinha e muitas histórias em família. Tinha pão com margarina, bolo de fubá e leite com café bem quentinho. Ao findar o dia pedíamos: Benção pai! Benção mãe! Benção vó! E com um beijo de boa noite, abençoados, nos despedíamos para viver uma nova aventura, desta vez de sonhos, uma aventura que só terminava no despertar do dia seguinte…
Existe uma máxima no mundo do futebol – “treino é treino, e jogo é jogo” -, que teria sido ditada por Didi, craque brasileiro e campeão mundial de 58, também conhecido pela imprensa internacional da época como o “Mr Football”. Conta-se que Didi costumava fazer um menor investimento de esforços físicos nos treinos. Admite-se que em sua concepção o craque economizava energia física e mental nos treinos para demonstrar empenho, técnica exuberante e lucidez nos jogos.
Essa máxima, que para muitos se tornou um lema, foi assinada por diversos jogadores e jogadoras na história do futebol. Diversos destinos semelhantes já se repetiram diversas vezes nas sagas dos jogadores bons de treino ou dos jogadores que se preservam para o jogo. No entanto observa-se que em ambos os casos há uma instabilidade de desempenho. E o que impede jogadores e jogadoras com esse perfil de instabilidade de ter um desempenho notável repetido diversas vezes? Qual é a parcela do segredo para torná-los profissionais bem sucedidos que atuam como verdadeiros campeões?
Uma das chaves para a solução deste problema pode estar na preparação para o treino, que deve ser diferente da preparação para o jogo. Didi estava com os pés nos dois lados do campo. Ao mesmo tempo em que apontou a diferença dos contextos de treino e jogo, levanta-se a possibilidade de dar um tratamento adequado às práticas de treino, sem subestimá-lo quando falamos de motivação. Desta maneira, coloquemos treino e jogo, lado a lado, para podermos diferenciar os ambientes criados a partir do onde acontece, e de quem participa de suas ações. Perceberemos que os dois lados pertencem a um campo só.
O ambiente do treino comunica mais segurança, previsibilidade, rotina e permissão de erros, já que não há naquele evento uma disputa por pontos de um campeonato ou interferência do adversário ou da torcida. No treino é possível pensar o jogo, construir estratégias que podem ser testadas e revistas constantemente. A falta do acerto é mais tolerável, o foco na construção do bom desempenho tira o lugar das cobranças imediatas pelo chute certo e vitorioso que, espera-se, deverá vir no jogo. A emoção cede o lugar à razão pautada pela ciência e passividade do tempo, que distorce timidamente as experiências vividas por quem busca sua melhoria constante.
A atmosfera do jogo tem outros componentes. O desafio começa a ser vivido na preparação, no treino, e é inevitável que a ansiedade seja uma das expressões da ameaça que o adversário representa. Temos aqui um desafio a ser vivido, pois essa é a arena da competição que se torna o palco da realização dos sonhos de quem joga. Aqui é impossível viver sem as expectativas que ora alavancam o desempenho, ora frustram pela crueldade do gol sofrido no último minuto. A alegria se veste de decepção em poucas jogadas e a bússola da emoção é muitas vezes que determina a direção e a intensidade das ações. A razão se torna tímida e submissa à raiva provocada pelas injustiças da arbitragem, pelo medo da perda do controle do jogo, dispara a euforia pelos lances e gols incríveis e decisivos, ou destrona qualquer sensação de favoritismo diante da tristeza pela derrota inesperada.
Alguns estudiosos do esporte, como Terry Orlick, mostram o equilíbrio de fatores básicos quando destacam que o desempenho é fruto da soma da expressão das capacidades físicas à capacidade técnica e tática, temperados de maneira equilibrada pela rapidez das respostas psicológicas exigidas nas ações do jogo. Essa pode ser uma chave fundamental. Através de experiências bem sucedidas nos processos de preparação esportiva conduzidos pelo conhecimento científico, hoje entende-se que o treino deve se pautar pelo que é possível ser praticado diante do que se conhece do jogo, seja essa compreensão geral ou específica, orientada para enfrentar determinado adversário com suas características predominantes. Ou seja, a preparação de uma equipe de futebol deve se pautar e ter como referência o que essa equipe quer expressar no campo de jogo. A aproximação do treino em direção ao jogo, ou seja, o jogo a ser jogado moldará a estrutura e faces do treino, em uma convergência inevitável de seus contextos inicialmente distantes em características táticas e de emoção. Da suposta previsibilidade do treino à imprevisibilidade do jogo.
Em síntese, para que tenha sentido e eficácia, o treino deve representar e ter características determinantes do que é o jogo. E para que isso aconteça, é necessário que os treinadores criem estratégias eficazes de preparação, focando no que chamamos de estado interno do atleta. A dispersão e baixa motivação de jogadores para tarefas elaboradas pelos técnicos devido à falta de significativa importância que aqueles dão ao treinamento ou mesmo a estruturação inadequada destas práticas pelos treinadores, pode vir a diminuir o aproveitamento do potencial que atletas têm para o desenvolvimento de seu potencial. Os exercícios elaborados e dinâmicas ministradas pelos treinadores, bem como sua regência, tem influência direta na forma como os atletas se engajam no treino.
E como nós podemos perceber isso na prática?
Alguns jogadores se preparavam para elevar seu desempenho no treinamento e em jogos. Pelé era conhecido pela sua dedicação aos treinos específicos após o encerramento de uma sessão de treinamento. Costumava repetir diversas vezes algumas ações que gostaria de executar em campo, pois acreditava que seria mais fácil agir com base no que já conhecia. E assim podia criar. Em seu livro “Rendimiento Máximo” Charles Garfield relata que Pelé, antes de entrar para o campo e jogar, costumava deitar e colocar uma toalha cobrindo o rosto, em um exercício que o levava a lembrar-se dos tempos de infância em que jogava e se divertia. E depois, segundo o autor, Pelé vivenciava um estado interno que o permitia ‘fluir’ pelo jogo, como se ainda vivesse na liberdade de simplesmente jogar como o fazia na infância.
Cristiano Ronaldo é outro atleta que se destaca pela visão diferenciada de preparação para jogar. Focado em seus objetivos e orientado para o que deseja, ele se tornou uma referência do atleta de futebol que se empenha na aplicação aos treinos ministrados nos clubes onde joga, e desta maneira soma à sua preparação atividades extras que atendem necessidades que o treino, em sua avaliação, não dá conta. Através dos resultados que vem obtendo em sua brilhante carreira, Cristiano Ronaldo se mostra focado em metas, expressa energia e envolvimento durante os jogos, consegue se manter em alto nível de desempenho, mesmo diante de intensa exigência em treinos e jogos, e mostra lucidez ao criar oportunidades para enfrentar novos desafios com mudança de clube e aprender coisas novas, ainda que já tenha o reconhecimento do mundo sobre sua relevância para o futebol.
Tanto Pelé quanto Cristiano Ronaldo mostram claramente a importância de trabalhar com metas e aproveitar o máximo das experiências de preparação para o jogo. Kevin Keegan, ídolo inglês dos anos 70 e 80, disse certa vez: “Eu sempre tenho um alvo; entrar no time, jogar cada jogo, melhorar minha forma física e meus níveis de atuação”.
Para esses jogadores, a preparação é a chave do desempenho bem sucedido.
*Texto produzido a partir das discussões e contribuições dos integrantes do grupo de estudo Neurociência e Desempenho, da Universidade do Futebol
Que um jogo de futebol reúne dentro das quatro linhas aspectos técnicos, táticos, físicos e emocionais, tudo junto e ao mesmo tempo, não é novidade. Um drible, por exemplo, necessita do gesto técnico em si, da parte física para ser complementado, da orientação tática para sabermos se é para frente ou para trás, e do aspecto mental na coragem de realizá-lo. Uma única ação envolve tudo isso. Em uma fração de segundos.
Entendendo toda essa indissociável complexidade, há momentos não só de uma partida, mas de uma equipe e também de um atleta em que uma das vertentes se sobrepõe a outra. Mas para deixar claro, mais uma vez: nunca é só “uma coisa”. Uma equipe não está “cansada” apenas pela parte física. Esse cansaço pode vir de problemas táticos, com conceitos mal treinados, que geram um gasto excessivo de energia no jogar do time.
Por tudo isso, e sempre partindo do princípio que o futebol é uma atividade humana, não podemos simplificar análises e reduzir conceitos. Citei exemplo de time, mas posso falar também do aspecto individual: um jogador, por exemplo, que é contratado a peso de ouro por um histórico de alta performance, mas que não repete as boas atuações. Ele desaprendeu? O físico não é mais o mesmo? Suas características não casam com o modelo de jogo da equipe? Ele está com algum problema pessoal? Pode ser um pouco de tudo. Entretanto observe que busquei um elemento de cada esfera para tentar fazer esse fictício diagnóstico: técnico, físico, tático e emocional.
O torcedor deseja sempre frases curtas e impactantes para resumir momentos no futebol. Contudo, uma análise que busque ser o mais fiel a realidade tem que ser ampla e complexa. Nunca é só uma coisa, em alto tão aleatório e previsível ao mesmo tempo, como o futebol.
*As opiniões dos nossos autores parceiros não refletem, necessariamente, a visão da Universidade do Futebol
Conforme antecipado na PARTE 1, para avaliar efetivamente os treinadores de futebol no Brasil, torna-se imperativo considerar a realidade contextual que rodeia o seu trabalho, além de aplicar cálculos matemáticos avançados antes de qualquer tentativa de comparação de resultados. Assim, é necessário mensurar critérios objetivos que possam traduzir o comportamento de dirigentes, as expectativas de torcedores e as condições disponíveis em torno do profissional que executa a função como treinador. Sobretudo em um sistema político sustentado por suposições arbitrárias, cujas opiniões subjetivas e julgamentos simplistas tendem a responsabilizar exclusivamente o treinador em momentos desfavoráveis, apresentar um método de avaliação racional pode beneficiar a cadeia produtiva do esporte no país (seja a partir de um clube isolado até o eventual desdobramento em toda a estrutura nacional).
Vale reforçar que o foco deste estudo é a relação das trocas de treinadores durante o Brasileirão. Portanto, mudanças realizadas antes do primeiro jogo e após o término do último jogo da liga nacional (entre uma temporada e outra do Brasileirão) não foram computadas na nossa amostra. Isto porque quando a liga nacional não está em atividade, há um contexto diferente rodeando as tomadas de decisão nos clubes brasileiros (considerando resultados da temporada anterior, movimentos na janela de transferência no início do ano, reestruturação de elenco, incidência de campeonatos estaduais, ou inclusive o efeito de novos presidentes e conselheiros assumindo a direção política do clube).
Independente se o treinador deixou o cargo de forma voluntária (se demitiu) ou involuntária (foi demitido), a mudança de comando foi computada da mesma forma na nossa amostra, pois representa uma troca efetiva de líderes no comando de um grupo específico de jogadores. Em situações quando o treinador foi suspenso ou não compareceu fisicamente ao jogo por qualquer motivo (ainda empregado no cargo), ele permaneceu como o líder responsável pela sua equipe na partida mesmo estando ausente do banco de reservas no dia. A única exceção refere-se aos treinadores interinos, tratados como figuras temporárias na liderança do grupo durante a transição (num período máximo de 15 dias) entre a saída de um treinador efetivo e a chegada do seu substituto, conforme explicado na PARTE 1.
Enfim, respondendo à primeira pergunta do estudo (Quais são os fatores determinantes para as trocas de comando técnico no Brasil?) por meio de uma avaliação econométrica compreensiva, nosso modelo de análise de regressão foi capaz de classificar 95,5% dos casos corretamente. E a fim de facilitar a compreensão do artigo científico (que ainda traz uma série de variáveis de controle e percentuais relevantes para a interpretação prática), reunimos os principais resultados estatísticos em um agrupamento de 3 núcleos, dispostos a seguir:
A) Rendimento esportivo numa janela de 4 jogos sequenciais (curtíssimo prazo)
B) Expectativas (superestimadas)
C) Desempenho em competições paralelas (torneios eliminatórios)
Em suma, a econometria se baseia em uma análise estatística avançada com um volume elevado de dados sob observação. Devido à complexidade dos cálculos matemáticos, bem como os parâmetros estatísticos que devem ser respeitados como parte da metodologia científica, a leitura dos dados pode parecer confusa em um primeiro momento. Por isso, buscamos ilustrar os resultados estatísticos por meio de percentuais que traduzem um aumento ou diminuição na probabilidade de mudança de comando técnico.
A) Rendimento esportivo numa janela de 4 jogos sequenciais (curtíssimo prazo)
Muito embora a extensão da nossa análise de rendimento esportivo (considerando os pontos coletados por jogo e a diferença de gols por jogo) tenha se prolongado a até 5 jogos antes das mudanças de comando técnico, o quinto jogo que antecede a saída do treinador não apresentou resultado estatisticamente significativo (ou seja, sem uma constatação científica suficientemente forte para ajudar a explicar a decisão da troca). Por outro lado, para cada ponto coletado dentro de uma janela de 4 jogos sequenciais, a probabilidade de sobrevivência do treinador mostrou índices de aumento entre 15,2% a 33,1% (por ponto, variando de acordo com a ordem dos jogos – vide tabela abaixo). O mesmo raciocínio é válido para o efeito contrário: a cada ponto não coletado numa faixa de 4 jogos, reduz-se entre 15,2% a 33,1%, por ponto, a probabilidade do treinador seguir no comando da equipe.
Já com relação a diferença de gols no jogo, chegamos a resultados estatisticamente significativos dentro de uma janela de apenas 3 jogos sequenciais (tornando os placares da quarta e da quinta partida anteriores à mudança de técnicos como insignificantes pelo viés científico). Ou seja, para cada gol marcado a mais do que o adversário na partida, o treinador aumenta entre 11,9% a 25,6% sua chance de permanência. Logo, em caso de goleada com um saldo bem superior ao adversário, esse percentual é cumulativo, com os valores variando de acordo com a ordem do jogo (vide tabela abaixo). Entretanto, vale reforçar que esse raciocínio prevalece somente numa janela imediata de 3 jogos sequenciais (o que diminui o impacto de uma goleada ou saldo positivo no placar do quarto ou quinto jogo que já passou).
Transportando a evidência científica ao entendimento prático, o treinador de futebol no Brasil pode testemunhar um cenário favorável para permanecer no comando técnico caso sua equipe não desperdice pontos ou saldo de gols frente aos adversários numa janela de 3 a 4 jogos sequenciais. Caso contrário, a probabilidade de ser substituído aumenta devido a uma sequência não-positiva, especialmente se a equipe do treinador sofrer com derrotas sucessivas numa faixa de 4 partidas. Tal efeito ilustra como reações imediatistas são recorrentes no comportamento passional e emotivo de dirigentes em clubes de futebol no Brasil, que optam (com frequência desproporcional) por uma alteração de rotas em um prazo curtíssimo de tempo. Validando cientificamente o jargão popular do futebol brasileiro (“Perdeu três, está fora!”), nosso estudo atualiza a frase, corrigindo o número de 3 para 4 partidas, pois sem coletar pontos ou saldo positivo de gols em 4 jogos sequenciais, o treinador dificilmente sobrevive no Brasileirão.
B) Expectativas (superestimadas)
A fim de medir o efeito das expectativas pré-jogo (resgatando a realidade do momento que antecedeu cada partida da nossa amostra), implementamos em nosso estudo uma variável de mensuração de probabilidades de resultados (leia-se, expectativa de vitória ou expectativa mínima de empate) baseada em algoritmos históricos de apostas profissionais e que replica técnicas de estudos recentes com a Bundesliga alemã. Essa medida é reconhecida como uma métrica confiável na literatura acadêmica por não ser suscetível a manipulações, já que os algoritmos reúnem o máximo de informações públicas e estatísticas de rendimento esportivo disponíveis para gerar previsões realistas antes de cada jogo de futebol.
Fortalecendo o pensamento de curto prazo nas decisões de mudanças repentinas (e frequentes) no Brasileirão, as expectativas por resultados positivos aparentam ser superestimadas entre os dirigentes dos clubes participantes. Isto porque o simples fato de um clube ter previsão mínima de um empate dentro de uma janela de 3 jogos sequenciais pode prejudicar a manutenção do treinador no cargo da equipe, aumentando a probabilidade de mudança entre 38,1% a 61,6% (vide tabela abaixo).
Antes mesmo da equipe entrar em campo dentro de uma sequência de 3 jogos imediatos, se a expectativa do antepenúltimo jogo fora de pelo menos um empate, o risco de mudança já aumentara em 38,1%. No penúltimo jogo, se a previsão externa fora de vitória, o treinador sofrera um aumento de 36,2% sobre o risco de deixar o comando. E por fim, imediatamente antes do último jogo nessa faixa de 3 confrontos sequenciais, se a expectativa de resultado indicara o mínimo de um ponto (empate), as chances de se testemunhar uma mudança de comando técnico aumentaram para 61,6%. É importante reforçar também que, embora estatisticamente não-significativos, as expectativas de rendimento sobre o quarto e quinto jogos que já passaram traduzem como a memória na tomada de decisão dentro da organização se mantém viva apenas para o momento atual.
Nitidamente, as expectativas de rendimento esportivo (sem que a equipe sequer tenha pisado no gramado do jogo) já conduzem altos índices determinantes para as trocas de treinadores no Brasileirão. E, sobretudo, reforçam o desenho de curtíssimo prazo enquadrado no julgamento de dirigentes, que evidentemente transferem a pressão externa ao treinador em situações inoportunas.
Aliado a esse raciocínio, outro resultado estatisticamente significativo que encontramos em nossa análise sustenta ainda mais o pensamento superestimado dos tomadores de decisão. Considerando a disposição da tabela, para cada ponto a mais que a equipe do treinador apresenta em comparação ao seu adversário antes da partida (em qualquer momento do campeonato), a probabilidade de uma mudança de comando aumenta em 2,1% (por ponto). Antes mesmo de entrar em campo, somente o fato de somar mais pontos do que o adversário já parece instigar sinais de exigência no clube por um resultado positivo, exagerando as expectativas por aparentemente não aceitar insucesso frente a um adversário com pontuação inferior no momento.
Ao escancarar uma mentalidade especulativa alimentada por precipitações e expectativas supervalorizadas, devemos questionar se os dirigentes brasileiros fornecem um ambiente minimamente favorável aos treinadores, a fim de atrair resultados construtivos de acordo com os recursos, estrutura e condições disponíveis. Afinal, se uma troca imediata (ou frequente) de capital humano ocorre dentro de uma organização, a origem dos erros se torna explícita no processo de recrutamento conduzido pelos decisores, que são os encarregados por contratar e substituir treinadores e também devem, portanto, ser responsabilizados pela situação em que os clubes se encontram (no momento e na história recente).
C) Desempenho em competições paralelas (torneios eliminatórios)
De forma impressionante e até mesmo surpreendente (devido ao peso dos percentuais), ser eliminado da Copa Libertadores representa o fator mais impactante para a sobrevivência do treinador durante o Brasileirão. Isto é, quando o treinador vê a sua equipe finalizar a sua participação (sem o título de campeã) na principal competição continental de clubes da América do Sul (disputada em formato eliminatório, cujo contexto, circunstâncias e preparação são totalmente distintos quando comparados ao formato de pontos corridos da liga nacional), a probabilidade de manutenção do seu cargo é drasticamente reduzida entre 182,4% a 560,6%. Ou seja, segundo a nossa constatação estatística, mesmo que o treinador consiga manter o cargo (milagrosamente) por até 4 jogos no Brasileirão após a sua eliminação da Copa Libertadores, ele ainda enfrenta o risco substancial de uma mudança.
Em resultados preliminares deste estudo, também chegamos a um impacto semelhante após a eliminação da Copa Sul-Americana (a diferença é que o treinador ainda receberia um prazo de 5 jogos no Brasileirão até que a pressão se instalasse sobre o seu cargo). Porém, após reforçar os cálculos para garantir maior robustez estatística, notamos que o resultado perdeu significância. Mesmo assim, isso poderia servir de indício adicional (ou sinal de alerta) com relação a competições continentais durante a vigência do Brasileirão. Curiosamente, eliminações da Copa do Brasil não afetam as decisões de mudança.
Esta evidência científica destaca como os clubes brasileiros também superestimam suas participações em disputas internacionais, exigindo o sucesso como fator determinante para a manutenção do treinador durante a temporada da liga nacional (vale lembrar, novamente, que o Brasileirão representa um sistema de disputa oposto a torneios eliminatórios sob o contexto de alto rendimento).
Ainda sobre torneios paralelos no calendário anual, caso o treinador seja finalista estadual no mesmo ano sob análise, ele tende a aumentar em 30,0% sua longevidade no cargo ao longo do Brasileirão. Ou seja, uma final estadual na mesma temporada influencia positivamente a média de permanência no comando técnico durante a liga nacional. Contudo, o efeito pode ser testemunhado em uma equipe diferente daquela que ele conduziu à final, já que o treinador pode ser demitido ao perder o título e ser contratado mais tarde por um novo clube que o valorize justamente por ter sido finalista regional no início do ano.
Para finalizar o resumo das principais causas, nossa avaliação econométrica também desmistificou argumentos midiáticos que tendem a manipular a opinião pública a respeito de atributos demográficos dos treinadores atuantes no Brasil. Embora a imprensa esportiva compare treinadores mais jovens e mais velhos, nascidos dentro e fora do país, com ou sem experiência como jogador profissional, nenhum desses três fatores mostrou resultados estatisticamente significativos para favorecer ou reduzir uma probabilidade de mudança de comando técnico no Brasileirão. Ou seja, o fato de um treinador ser brasileiro ou estrangeiro, sua idade (independente do número de anos) e sua experiência como ex-jogador profissional não apresentam comprovação científica para definir as trocas no país ao longo de 16 anos de pontos corridos. Devido ao alto volume e taxa relativa de rotatividade, a evidência científica que constatamos traduz que todo e qualquer treinador que passa pela liga nacional (independente do estereótipo em termos demográficos sobre idade ou nacionalidade) está sujeito aos mesmos efeitos, sem imunidade.
Seguindo adiante, a PARTE 3 irá tratar das respostas da segunda pergunta do estudo, explicando o impacto da alta rotatividade de treinadores e as reais consequências sobre o rendimento esportivo.
Por fim, a PARTE 4 concluirá o conteúdo, revisando as principais implicações práticas em torno dos treinadores, dirigentes e torcedores interessados no avanço do futebol brasileiro.
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O dinheiro pago pelas emissoras de TV e, nos últimos anos, por outras empresas da comunicação, pelo direito de transmitir partidas é um dos pilares que sustentam o negócio futebol. No Brasil, de acordo com análise publicada pelo Itaú BBA referente aos resultados financeiros de 25 clubes da elite do futebol brasileiro em 2019, os direitos de transmissão representaram 41% das receitas dessas organizações, no estudo estão incluídas as transferências de jogadores, sem elas a proporção das receitas dos direitos de transmissão é ainda maior, o que destaca a grande dependência dos clubes brasileiros em relação a esse tipo de entrada. Nos principais clubes do mundo, que buscam cada vez mais diversificar suas fontes de receita, o impacto dos direitos de transmissão nas finanças também se mantém significante. Entre os cinco clubes com maior receita do mundo, de acordo com o relatório Football Money League da consultoria Deloitte, os direitos de transmissão representam 33% de todo o faturamento, com a ressalva de que o estudo desconsidera a “venda” de jogadores, o que diminuiria esse percentual. Já entre as posições 16 a 20 do mesmo ranking, o número sobe para 65%, também sem contar as transferências.
Dada a importância dos direitos de transmissão para o negócio futebol, não é de se estranhar que a Medida Provisória 984/2020, editada pelo Poder Executivo no dia 18 de junho e que caducou no último domingo, tenha gerado tanta movimentação e discussão no setor. Entre outros pontos, o texto da MP alterava o entendimento sobre o direito de transmissão de cada partida. No formato atual os dois clubes que disputam uma partida são os detentores do direito, de modo que se a empresa interessada em transmitir a partida não entrar em acordo com as duas equipes, o jogo não pode ser transmitido. A MP alterava essa situação, dando apenas ao mandante o direito sobre a transmissão.
Esse bloqueio de jogos vendidos por apenas um dos clubes que disputa a partida em questão tem trazido como consequência a impossibilidade legal de transmissão de muitos jogos. São os chamados “jogos fantasma”, no qual apenas uma das equipes vendeu os direitos e o não acordo com a segunda equipe acaba inviabilizando a transmissão. Vale destacar que os direitos de transmissão das partidas são divididos em três diferentes classificações, a TV aberta, a TV fechada e o Pay-per-view, no qual se encaixa a transmissão paga em diferentes plataformas da internet, como canais próprios dos clubes, por exemplo, e o tradicional Premiere, da Rede Globo. Dentro do atual modelo jurídico e com a atual configuração de contratos entre clubes e empresas de comunicação, a Globo e a Turner, a situação na TV fechada, por exemplo, é a seguinte.
Caso entrasse em vigor, a MP 984, que também foi apelidada de “lei do mandante”, acabaria com o impedimento legal da transmissão de partidas entre clubes que entrassem em acordo com diferentes empresas de comunicação ou mesmo aqueles que optassem no futuro por não vender os seus direitos, já que o direito da transmissão das partidas passariam a ser exclusivamente dos mandantes, como ocorre em diversos países. A configuração proposta pela MP também aumentava o número de jogos disponíveis para as empresas, como é possível conferir a seguir.
Apesar das vantagens do modelo, a MP também desencadeou conflitos e se insere em um contexto mais amplo no que se refere às disputas de poder no país e ao futuro das transmissões e posicionamento dos clubes no mercado do futebol. Ao ser considerada sua relevância, a forma abrupta como o tema foi tratado, por meio de medida provisória, e sem grandes discussões, sinalizou algumas movimentações no tabuleiro dos poderes dentro e fora do futebol.
Na política nacional, a assinatura da MP foi também mais um capítulo da guerra declarada pelo governo ao jornalismo e empresas de comunicação, em especial à Rede Globo, tida como potencial prejudicada com a configuração proposta. A vigência da MP proporcionou uma interpretação dúbia dos acordos que a empresa tinha com diversas equipes, gerando uma grande instabilidade no setor já que, se por um lado a organização não perderia o direito de transmitir nenhum de seus jogos, por outro ela perderia a exclusividade de alguns e o bloqueio de outros, o que faz, naturalmente, parte do planejamento e dos cálculos da emissora que detém contratos de longo prazo em diferentes plataformas com os principais clubes do país, celebrados levando em consideração o modelo de direitos de transmissão compartilhados.
Sob essa perspectiva, a MP acabou trazendo como consequência uma chuva de liminares e meses de instabilidade jurídica, como analisa Emanuel Leite Júnior, pesquisador e autor do livro “cotas de televisão do campeonato brasileiro”. Para Emanuel, “o âmago da questão da insegurança é a divergência de interpretações que existem tanto de juristas quanto dos aplicadores da lei – advogados e magistrados”. O pesquisador também defende que clubes que já possuíam contratos de direitos de transmissão assinados foram prejudicados no período da MP. Para explicar o entendimento, Emanuel cita o caso do campeonato carioca, envolvendo clubes, que já tinham acordo de transmissão com a Globo, a própria emissora, e o Flamengo, que não havia aceitado a proposta da empresa e se baseou na MP para transmitir partidas na reta final da competição, “a interpretação que diz que os clubes não vão perder seus jogos como mandantes, mas os mandantes que não tinham contrato vão poder transmitir os seus jogos, é evidente que os clubes que tinham jogos como mandates vão sair prejudicados. Quando eles negociaram contrato com a Rede Globo, o valor incluía todos os jogos que ele está participando, com exceção dos que o Flamengo estava, aí de repente, o Flamengo passa a negociar todos os seus jogos como mandante, incluindo o jogo daquele clube que já tem contrato com a Globo. Logo, esse clube não irá receber nada, por um jogo que será transmitido sem o seu consentimento, de acordo com a situação anterior à assinatura da MP”, conclui.
A assinatura da MP, que desencadeou esse e outros conflitos pela forma acelerada como foi conduzida foi apenas mais uma demonstração da aproximação que o Poder Executivo no atual governo tem buscado com o futebol, que inclui a presença em partidas e registros do Presidente com a camisa de diferentes clubes. No último dia 13, a transmissão em TV aberta da partida entre Peru e Brasil, pela segunda rodada das eliminatórias da Copa do Mundo masculina, foi viabilizada no dia do jogo e engrossou esse caldo. Os direitos de transmissão dessa partida pertenciam à empresa MediaPro e a forma como eles foram adquiridos permanece desconhecida. O que é fato, é que ao longo da transmissão realizada pela TV Brasil, um canal público, a equipe de transmissão mandou abraços para o Presidente e no intervalo foi veiculado material de propaganda do governo. Mestre e doutor em História pela USP e professor do curso de pós-graduação História Sóciocultural do Futebol, Flávio de Campos, aponta como inédito na história do país o ocorrido durante a transmissão da partida, “isso não aconteceu nem na ditadura. Durante a Copa de 70 havia a cadeia nacional para os jogos da seleção, na qual se dividia cada tempo em 2 e tínhamos um locutor e um comentarista de cada emissora, mesmo assim não há registro de saudação ao presidente da república nem de qualquer utilização tão acintosa de um jogo da seleção brasileira para propaganda política. No período democrático isso com certeza também não existiu”, destaca. O professor também apontou a Itália e Alemanha dos períodos fascista e nazista, o regime militar da Argentina e o governo soviético como países e momentos históricos nos quais as transmissões de partidas no rádio e na televisão foram utilizadas, de maneira similar ao que se observou no confronto entre Peru e Brasil, como ferramentas de comunicação do governo. “A questão dos direitos de transmissão se encaixa nesse jogo político que envolve a aproximação entre governo e CBF, algo que não é recente no país, e o ataque à Rede Globo que tem sido crítica ao governo”, aponta Flávio. Dado o atual contexto é possível imaginar que as movimentações nesse jogo ainda poderão exercer influência sobre futuro das discussões que envolvem os direitos de transmissão.
Pelo lado dos clubes, a movimentação isolada do Flamengo em relação à assinatura da MP faz pender a balança para o lado contrário da união, ou de uma muito mencionada liga. Nesse cenário, a tendência é o de aumento da desigualdade entre os clubes brasileiros, em relação às receitas dos direitos de transmissão. O fenômeno dos “jogos fantasma”, anteriormente mencionado, que acontece por conta dos direitos de transmissão compartilhados, passou a ser uma realidade no Brasil também por conta das negociações individuais após a implosão do Clube dos 13 no início dos anos 10, que trouxeram como consequência também o aumento da desigualdade, como descreve Emanuel Leite “nunca fui um defensor do que o Clube dos 13 representava pois era uma associação privada que reunia os clubes de futebol e que tinha no seu estatuto a defesa dos seus associados, mas negociava os direitos de transmissão de todo o campeonato brasileiro, até daqueles clubes que não eram membros e isso gerava uma desigualdade já grande. Porém, ainda era um cenário de negociação coletiva. Existia um critério de distribuição de recursos entre os membros, e as migalhas para os não membros. Com a implosão vimos o fosso aumentar, para ilustrar esse movimento, vamos pegar o exemplo da diferença entre Flamengo e Botafogo, o quanto não aumentou a diferença nominal e percentual? O Botafogo passou a receber muito menos do que o Flamengo”. O pesquisador ainda aponta a desigualdade inerente às ligas e a necessidade de uma regulação para diminuir abismos, “a literatura da Economia e da Sociologia do Esporte está cansada de demonstrar cientificamente que campeonatos desregulados, ou seja, sem regulamentações que estabeleçam negociações coletivas, com o princípio de solidariedade na distribuição dos recursos, geram maiores desigualdades”, e lembra dos casos recentes da Espanha e Itália, no qual houve uma regulação, por meio de leis, que proporcionaram um maior equilíbrio nas ligas dos dois países, “depois que a legislação de cada um desses países mudou a forma de negociar e distribuir os recursos dos direitos de transmissão televisiva, passando a determinar negociação coletiva com regras pré-estabelecidas com critérios para a distribuição desses recursos, em ambos os casos houve uma diminuição significativa da desigualdade”.
Um país que caminhou no sentido oposto ao de Itália e Espanha é Portugal, no qual os direitos são também do mandante da partida, mas as negociações não têm nenhum tipo de regulação, sendo realizadas de maneira individual. A consequência é que o país lidera com folga a lista de países com maior desigualdade nas receitas de direitos de transmissão, com Benfica, Porto e Sporting recebendo valores mais de 10x maiores do que a média da liga.
Sem uma negociação coletiva dos direitos de transmissão, “a tendência, pelo que nós vimos nas experiências esportivas em todo o mundo é o que é maior receber mais. No caso do Brasil esses clubes seriam Flamengo, Corinthians, São Paulo, Palmeiras e Vasco, que são os cinco grandes clubes do Brasil em termos de torcida nacional, ainda com destaque para os dois primeiros. E os outros? A alternativa é a negociação coletiva, com critérios que busquem garantir o mínimo de equidade, para impedir que quem tenha mais acumule a um ponto que inviabilize a competição”, avalia Emanuel.
João Ricardo Pisani, gestor esportivo, com carreira dedicada ao desenvolvimento de produtos no futebol, também analisou o cenário e possíveis consequências do que foi proposto na MP, “inicialmente, a lei do mandante isoladamente remove uma amarra, dá mais jogos para os clubes, e por isso permite que uma equipe venda mais jogos e, em teoria, arrecade mais. Os problemas tendem a aparecer com a possível negociação individual, que cria um cenário escorregadio porque, ao mesmo tempo que dá autonomia para uma equipe negociar de forma independente seus jogos com quem quiser, ela também coloca, em diversas ocasiões, os clubes na posição de concorrentes entre si pelo mesmo mercado, ou recursos”. Ele ainda aponta, “o produto em questão não deveria ser reduzido ao jogo do mandante X contra um visitante Y, mas ser compreendido como o campeonato brasileiro como um todo. A negociação individual tende a aumentar os riscos que uma equipe tem ao sair sozinha no mercado, e a chance desse risco não compensar o retorno financeiro esperado é enorme. Porque as diferenças já existem, mas o verdadeiro abismo tem tudo para aparecer com as negociações independentes, quando os riscos dessa negociação individual cobrarem seus pedágios, como por exemplo, uma temporada ruim, contratos extremamente curtos, concorrência local com clubes de maior apelo nacional”.
Desgarrar dos concorrentes do nível nacional é o interesse da muitos dos maiores clubes de cada país, o que pode ser explicado, obviamente pela tendência natural da busca pela vitória, inerente ao ambiente competitivo, mas também pode ser potencializada por contextos específicos. No caso de Portugal, com a liga mais desigual da Europa, Benfica, Porto e Sporting buscam não apenas manter a hegemonia local, mas se manterem competitivos no continente e aí, para bater de frente com os gigantes europeus, cada centavo conta.
Dois projetos, um da FIFA e outro encabeçado por alguns dos maiores clubes do continente europeu, tem potencial para impactar diretamente na distribuição de recursos oriundos dos direitos de transmissão para os clubes. O primeiro é o Mundial de Clubes ampliado, com 24 equipes, disputado a cada 4 anos, que pode trazer uma quantidade de dinheiro significativa para os participantes, principalmente os não-europeus. Garantir presença constante na competição pode significar um salto definitivo no patamar financeiro para essas equipes em relação a seus pares locais, assim como ocorre com clubes de ligas periféricas do continente europeu na Champions League. O segundo é a liga europeia de clubes, que pode criar um abismo definitivamente intransponível entre o seleto grupo de convidados para o torneio e as demais agremiações do continente, mesmo aquelas dos países mais relevantes futebolisticamente.
Streaming, futuro das transmissões esportivas e democratização do acesso aos jogos?
O debate sobre a viabilidade das plataformas de transmissão de jogos pela internet, o streaming, em diversos canais como YouTube, Facebook, Twitter, entre outros, também ganhou destaque a partir da assinatura da MP, principalmente com as experiências do Flamengo que inclusive chegou a cobrar diretamente dos torcedores pela transmissão das partidas. O que ajudou a abrir novas perspectivas para o setor.
Na análise de Pisani sobre o tema, “olhar só para TV é ter uma visão limitadora nos dias de hoje. Até porque, sob a ótica dos contratos começam a aparecer zonas cinzentas como streaming com paywall, que nada mais é do que uma versão atualizada do clássico pay-per-view, e transmissão aberta no site, que é praticamente o equivalente da TV aberta”, descrevendo os pontos positivos de cada plataforma “via TV, os clubes sempre vão ter o canal como intermediário, mas navegar numa mídia já consolidada e de fácil acesso para o brasileiro. Já o streaming trás a vantagem de que você pode estruturar ele dentro de casa mesmo, seja diluindo os custos em conjunto, por meio de uma liga, ou arcando com tudo sozinho, além de proporcionar uma infinidade de outros benefícios como, por exemplo, a coletar dados que te ajudam a dar maior escala e eficiência na hora de vender publicidade ou até refinar mais as entregas do seu produto. Por hora é possível utilizar o que cada um oferece de melhor conforme a necessidade”, conclui.
Para Fernando Borges, doutor em Ciências da Comunicação e Informação pela Universidade Pantheon-Assas, com diversos artigos publicados sobre a utilização de plataformas digitais por clubes de futebol é preciso cuidado para avaliar o cenário. O pesquisador ainda enxerga as emissoras como aliados importantes, “não basta ter uns quantos milhões de pessoas que se dizem torcedores de um time para ter sucesso financeiro em uma empreitada como essa. Acho que o Flamengo viu isso rapidamente com o caso dos jogos do Campeonato Carioca e o Benfica também viu isso com o seu canal. Não é apenas a quantidade absoluta que deve ser vista. No caso de Portugal, o Benfica tem cerca de metade da população identificada com o clube e cerca de 160 mil sócios. Mesmo assim, há um limite ao número de assinantes para um canal de TV paga, que é o modelo escolhido pelo clube. Eles dizem que chegaram a 300 mil assinantes – correspondente à meta estabelecida inicialmente, mas nunca anunciaram passar muito mais do que esse número. Além disso, para alavancar o negócio, além de todo os investimentos em recursos humanos e tecnológicos, eles investiram em outros produtos na época – campeonato inglês, por exemplo. Assim, os meios de comunicação de massa – TV aberta, TV a cabo – ainda são os melhores parceiros para os clubes de futebol das principais ligas e divisões para exibirem os seus jogos. São canais que conseguem entregar ao público um produto de qualidade, a uma audiência grande e variada, que interessa aos anunciantes da mídia e dos clubes e pagam bem aos clubes, sem grandes esforços por parte dos clubes”, pontua.
Fernando ainda explica que esse mercado ainda está longe de ter encontrado um modelo ideal, “acho que os clubes têm a possibilidade de explorar melhor o seu produto, se forem capazes de entender o que é esse produto. Aqui, não é nenhum demérito ao clubes, pois mesmo aqueles que são tidos como modelos de boa gestão, os grandes europeus e americanos, ainda estão experimentando e testando possibilidades para ver o que funciona. Não há um modelo definitivo na Europa: há canais de streaming, canais a cabo, com subscrição, gratuitos, clubes que fazem parcerias com outros players do mercado como a Amazon prime, Netflix, para fazer conteúdo. Não há uma fórmula pronta”.
No Brasil, um dos clubes que tem se destacado nas iniciativas de produção de conteúdo próprio é o Esporte Clube Bahia, com o Sócio Digital. A plataforma, própria do clube, disponibiliza conteúdos relacionados ao clube que contemplam o período entre o final de uma partida e o início da outra, com treinamentos, bastidores, etc. Com custo médio de R$ 8 mensais para o torcedor, a plataforma ofereceu mais de 100 horas de transmissão no primeiro mês com equipe própria. Em entrevista ao jornalista Rodrigo Capelo no podcast “Dinheiro em jogo”, foi disponibilizado no dia 9 de julho, o presidente do clube, Guilherme Bellintani mencionou que o clube vai buscar nos próximos anos aprimorar o seu modelo para que, ao final de 2024, com o encerramento dos grandes contratos com as emissoras, o clube esteja preparado para explorar o mercado da melhor maneira possível.
Com relação à democratização do acesso dos torcedores, Pisani faz um paralelo com a música, “a internet e os serviços de streaming remodelaram a indústria fonográfica nas últimas décadas. Eles democratizaram o acesso a uma gama quase que infinita de artistas e estilos, e foram além, facilitaram a vida de quem quer consumir apenas o conteúdo X com quem quer apenas produzir o conteúdo X. Da banda de garagem no melhor estilo faça você mesmo até gigantes da indústria, todos se beneficiaram da praticidade que o streaming trás na hora de distribuir conteúdo. Porém isso não significa que seu vizinho virou o Jay-Z do dia para noite ou que os Beatles deixaram de ser uma das bandas mais escutadas do mundo mesmo sem produzir algo novo por décadas por passar a ter mais concorrência na hora de você montar a sua playlist. E nada explica melhor isso que a teoria da cauda longa. Se o torcedor do clube X tem sua maioria concentrada num recorte que mostra um baixo acesso à internet, não dá para colocar a palavra democratização aí. Se assistir todas as partidas por mês do meu time significa consumir 90% do meu pacote de dados ou parte considerável da minha renda não posso chamar isso de democratização também. Então diria que o streaming dá autonomia e te permite colocar a mão diretamente na distribuição, mas não necessariamente trás democratização”, avalia. Segundo reportagem publicada no UOL, para acompanhar todas as competições disponíveis legalmente em território nacional o custo para o torcedor é de R$ 3,7 mil ao ano.
Há espaço para clubes longe da elite do futebol na Televisão, quais são as alternativas nesses casos?
João Ricardo Pisani – Depende do como você enxerga a TV e que recortes gostaria de fazer. A cobertura e a facilidade da TV aberta ainda são elementos que garantem números expressivos de audiência e por consequência maior potencial de arrecadação. Porém, se o recorte for feito pensando em uma transmissão em rede nacional, ou nos horários já consolidados como quarta à noite ou domingo no meio da tarde diria que não existe espaço, porque há outros produtos que geram um retorno maior para a maioria dos canais. Contudo, se for algo regionalizado, pensando em retransmissoras e/ou afiliadas das grandes redes, ou eventualmente espaços alternativos da grade, nesse caso eu diria que sim. Mas a questão aqui é que pensar só em TV é algo que já não faz mais sentido. O ideal é pensar na transmissão do evento e em quais plataformas ele pode render melhor e compor em cima disso.
Por exemplo, o futebol feminino pode se beneficiar de um horário alternativo dentro da grade de TV aberta para ganhar mais projeção num projeto de consolidação de curto ou médio prazo da modalidade, mas pode ficar escondido dentro da grade da TV fechada e minar algumas vantagens que o streaming trás de forma mais tangível. A praticidade de ter o conteúdo de forma direta e a capacidade de explorar elementos acessórios, como por exemplo a coleta de dados, e um contato maior com quem consome o produto tendem ser mais interessantes do que brigar por espaço dentro da grade dos canais de TV fechada.
No último dia 13, o deputado André Figueiredo (PDT-CE) apresentou o Projeto de Lei 4876, que também versa sobre o direito do mandante. As discussões sobre o tema, que é complexo e esbarra em muitos aspectos do futebol e das comunicações, seguem a todo vapor.
*Desde a assinatura da MP, Emanuel Leite Júnior, João Ricardo Pisani e Fernando Borges, entrevistados para essa reportagem integraram discussões profundas sobre os temas abordados aqui e alguns outros que podem ser acessadas aqui.
A globalização consiste, de forma bem resumida, no processo de integração econômica, cultural, social e política, gerado pela necessidade do capitalismo de buscar e conquistar novos mercados. Mas qual seria a relação da globalização com o futebol?
Até o final da década de 70, a economia do futebol se limitava à manutenção do sistema federativo dos clubes, sendo uma atividade sem fins lucrativos. Já no início da década de 80, o futebol passou a ser um produto tipo exportação, iniciando-se um grande fluxo de dinheiro e influência neste mercado, abarcando jogadores, times, campeonatos, canais televisivos, patrocinadores etc.
Isso se deu pela internacionalização do esporte, ocasionada, justamente, pelo fenômeno da globalização. O futebol deixou de ser apenas uma prática esportiva, se tornando um dos maiores mercados financeiros mundial, sendo que um dos seus principais alavancadores foi o televisionamento dos jogos ao vivo, além da introdução da publicidade de grandes marcas.
Empresas multinacionais começaram a investir maciçamente nos campeonatos, times e, principalmente, jogadores, estampando suas marcas nos uniformes e ao redor dos gramados nos estádios. Assim, o futebol, e tudo aquilo ligado a ele, passou a ser tratado como mercadoria, em que há muito mais em jogo do que apenas fazer ou defender gols.
Há alguns anos, um braço da globalização começou a ganhar uma força surpreendente e, até mesmo, assombrosa, no mercado futebolístico. A internet, aqui mais representada pela mídia, seja ela manifestada através dos jornais, telejornais ou redes sociais, deixou de apenas informar sobre jogos e campeonatos, passando a buscar e divulgar informações internas dos clubes e, principalmente, das atividades extracampo dos jogadores.
Como tudo nessa vida, existe o lado bom e ruim da influência da internet no futebol. Enquanto algumas notícias divulgadas fazem times e jogadores aumentarem sua popularidade, expandindo não apenas os seus lucros, mas o de todas as empresas licenciadas e patrocinadoras envolvidas, há outras, em contrapartida, que podem desestabilizar por completo a realidade do clube e dos outros envoltos, leia-se: jogadores de futebol.
Um exemplo recente de como a mídia pode influenciar no mercado futebolístico, é o caso da recontratação do jogador Robinho pelo Santos Futebol Clube.
Conforme amplamente divulgado, no sábado, 10 de outubro, o Santos anunciou a contratação de Robinho, sendo declarado pelo clube como “a última pedalada”. O que o clube e o próprio atleta não esperavam é que a notícia seria duramente criticada pelos torcedores e grande parte dos comentaristas influentes do país.
As críticas se deram pelo fato de Robinho ter sido condenado em primeira instância, em 2017, pela justiça italiana, a nove anos de prisão por violência sexual em grupo. Ele e cinco amigos foram acusados de violentarem sexualmente uma jovem albanesa em 2013 na cidade de Milão. A sentença foi dada de acordo com as evidências coletadas através de interceptações telefônicas realizadas contra os acusados.
Mesmo sabendo da condenação, o Santos preferiu realizar a contratação do atleta, se remetendo aos tempos de glória vivenciados pelo jogador no time como uma maneira desta contratação ser bem aceita pelos torcedores. Um dos principais motivos da contratação era financeiro: o clube tem um débito com o atacante e queria aproveitar os cinco meses de contrato para abater a dívida.
Mesmo sofrendo grande represália dos torcedores do Peixe e de outros amantes do futebol, além de pressão por parte dos patrocinadores, chegando até mesmo a perder o patrocínio da Orthopride, o Santos preferiu, no primeiro momento, seguir com a contratação de Robinho.
O estopim para a suspensão do contrato entre o clube e o atleta, foi a divulgação pelo Globo Esporte de parte das transcrições dos áudios entre Robinho e outros envolvidos no suposto crime. As falas do jogador geraram ainda mais repúdio à permanência dele no clube, além de ter levado o principal patrocinador do time santista ameaçar romper o contrato, o que fez com que o Santos se visse obrigado a suspender o contrato com o jogador.
Analisando a contratação de Robinho pelo lado jurídico, o fato de o jogador ter um processo criminal correndo em seu desfavor, não o impede de ser contratado por algum clube e/ou empresa – função social, sobretudo considerando que ainda existe discussão acerca do fato na justiça italiana.
Em que pese a decisão não ter transitado em julgado, restando ainda ser avaliada pelo Tribunal de Apelação, Robinho está sendo tratado como culpado pela internet, o que o leva a arcar com consequências que não atingem apenas sua vida privada, mas também seu lado profissional.
Se não fosse pela pressão da internet sobre os patrocinadores e clube, o contrato provavelmente estaria ativo, até mesmo por inexistir qualquer impedimento legal para a contratação e permanência do jogador no clube.
Portanto, nos resta questionar até que ponto é saudável essa interferência da internet nas atividades extracampo dos jogadores.
Aqui estamos retratando um caso sensível, um crime abominável e que, se confirmado pelas próximas instâncias, os culpados não merecem qualquer ato de indulgência por parte da sociedade, devendo cumprir as rigorosas penas eventualmente culminadas.
Entretanto, há outros casos onde não envolvem crimes, mas opiniões pessoais dos jogadores e sua vida privada, que acabam prejudicando contratos, parcerias e até mesmo sua permanência no clube, por não serem aceitas no “Tribunal da Internet”, o que vai totalmente contra ao direito à liberdade de expressão garantido a todo cidadão.
Assim, em que pese a globalização ter ajudado e muito na propagação e crescimento do futebol e do mercado que o rege, a vida pessoal dos jogadores acabou virando um anexo de sua profissão, sendo que não importa mais apenas o que acontece dentro das quatro linhas do gramado, mas também tudo que sobrevém extracampo.
Contudo, não podemos deixar de reconhecer a importância do avanço da inclusão no futebol de pautas antes consideradas tabus, como a luta contra o racismo, homofobia, machismo e outras formas de preconceitos, assim como o papel de apoio a esses movimentos que as grandes marcas estão desenvolvendo.
Atitudes imorais e que atentem contra a dignidade de qualquer pessoa, devem sim ser repudiadas e combatidas por toda a sociedade, não importando se está partindo de um cidadão anônimo ou de uma celebridade prestigiada, como o Robinho, devendo, no entanto, ser observado o bom senso e razoabilidade, para que imagens e carreiras não sejam manchadas por alegações e acusações que eventualmente não correspondam à realidade dos fatos.
*As opiniões dos nossos autores parceiros não refletem, necessariamente, a visão da Universidade do Futebol
No Brasil, nascemos, crescemos e vivemos com o estigma de que somos um país sem memória. Quando o assunto é a literatura do futebol, a coisa é diferente!!!! Podemos comemorar uma bela conquista. A obra “Bibliofut: a literatura do futebol brasileiro”, lançada em 2019, rompe com a lógica do esquecimento e desrespeito com a nossa história e celebra a cultura do ludopédio, esporte dos mais tupiniquins.
O livro é o resultado de estudos e pesquisas de um bibliófilo, Domingos Antonio D’Angelo, e de um bibliotecário, Ademir Takara, sobre obras publicadas na temática do futebol.
A obra se divide em duas partes:
A primeira, “um relato da literatura do futebol brasileiro”, buscou indicar os livros que tratam do ludopédio, divididos em cinco fases históricas e que merecem ser conhecidas, segundo a visão de um dos autores, Domingos D’Angelo.
A segunda, “bibiliografia brasileira de futebol”, é o resultado de uma ampla pesquisa de Ademir Takara que relaciona 4.570 livros publicados no Brasil até o ano de 2018. Temos, de acordo com uma classificação que respeita o conteúdo e as normas da biblioteconomia, um levantamento preciso da literatura especializada no futebol.
“Uma mina de ouro” – É com essa expressão que o jornalista e escritor Maurício Stycer intitula o “Prefácio” da obra. Ele afirma: “Pesquisadores interessados em futebol vão encontrar neste livro um mapa do tesouro para as mais variadas investigações. Editores atentos vão perceber que seu Domingos e Ademir estão colocando à disposição uma verdadeira mina de ouro, com sugestões de reedições de obras hoje esquecidas ou menos valorizadas do que mereceriam.”
Não pensem em obra com um viés acadêmico, muitas vezes maçante e de difícil leitura. Pelo contrário, com uma linguagem acessível e com belas ilustrações de capas dos livros que contam diversas histórias do futebol brasileiro, o alfarrábio é fruto de um trabalho de dois pesquisadores que amam este esporte jogado com os pés. O objetivo, segundo os autores, é permitir que outros pesquisadores, acadêmicos ou não, possam aprofundar a leitura ou identificar alguma publicação para suas pesquisas.
Na minha visão, além dos pesquisadores, os professores, jornalistas, bibliotecários, historiadores, atletas, técnicos, dirigentes, torcedores, curiosos e fãs da modalidade têm, neste livro, acesso a um conhecimento organizado e sistematizado que nos permite conhecer a linda trajetória do futebol canarinho.
D´ANGELO, Domingos Antonio; TAKARA, Ademir. Bibliofut: a literatura do futebol brasileiro. Jundiaí: Editora In House, 2019. 386 p.
Domingos Antonio D’Angelo Jr., Consultor de Relações do Trabalho e Conselheiro Vitalício do São Paulo F.C. Chegou a ser um razoável volante/quarto-zagueiro do Estrela da Saúde F.C., mas preferiu seguir ligado ao futebol através da literatura e do estudo, tornando-se bibliófilo, dono de uma das principais bibliotecas particulares sobre futebol do Brasil e fundando o Memofut – Grupo de Literatura e Memória do Futebol.
Ademir Takara, Bibliotecário do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, desde 2011. Bacharel em Biblioteconomia e História pela Universidade de São Paulo (USP). Sua Seleção Brasileira de todos os tempos joga com Gilmar; Djalma Santos, Mauro, Domingos da Guia e Nilton Santos; Didi e Zizinho; Garrincha, Leônidas, Pelé e Friedenreich.
O sumário da obra permite um melhor conhecimento do seu conteúdo:
SUMÁRIO
Prefácio, por Mauricio Stycer
Apresentação
1ª PARTE – UM RELATO DA LITERATURA DO FUTEBOL BRASILEIRO
Pré-Temporada
O Preconceito
Divisão Histórica
Preliminar
1º Tempo do Jogo: 1ª Fase – Era Amadora (1895-1930)
36 anos – Charles Miller/São Paulo Athletic Club; Friedenreich/Club Athletico Paulistano.
Destaques: Mario Cardim; João do Rio; Monteiro Lobato; Lima Barreto; Antônio Figueiredo; Leopoldo Sant’Anna; Graciliano Ramos; Mário de Andrade; Oswald de Andrade; Linguagem da Bola; Coelho Neto; Alcântara Machado.
2º Tempo do Jogo: 2ª Fase – Era Romântica (1931-1950)
20 anos – Profissionalização; Leônidas; Zizinho; Pacaembu; Copa do Mundo no Brasil; Rádio.
Destaques: Carlos Drummond de Andrade; Max Valentim (Affonso Várzea); Paulo Várzea; Floriano Peixoto; Gilberto Freyre; Thomaz Mazzoni; Mario Filho; José Lins do Rego.
Prorrogação: 3ª Fase – Era de Ouro (1951-1970)
20 anos – Brasil Campeão do Mundo; Pelé; Televisão.
Destaques: Nelson Rodrigues; Armando Nogueira; Orlando Duarte; João Saldanha; João Máximo; Concurso Literário; Pedro Zamora.
Decisão por Pênaltis: 4ª Fase – A Geração Perdida (1971-1990)
Fim de Jogo: 5ª Fase – Era do Futebol Moderno (1991-2018)
28 anos – Futebol “Globalizado/Grande Negócio” – Evento.
Destaques: Os Clássicos: História do Futebol no Brasil; Biografias: Ruy Castro; André Ribeiro; Marcos Eduardo Neves, Rafael Casé; História dos Clubes: Francisco Michielin; Celso Unzelte; Odir Cunha; Marcelo Duarte; Fernando Galuppo; História das Copas do Mundo; História da Seleção Brasileira: Ivan Soter; História de Competições: Roberto Assaf; Sociologia, Pedagogia, Psicologia: Arlei Sander Damo; Bernardo Buarque de Hollanda; José Paulo Florenzano; Luiz Henrique de Toledo; Mauricio Murad; Ronaldo George Helal; Simoni Lahud Guedes; Victor Andrade de Melo; João Batista Freire; Alcides José Scaglia; A Linguagem da Bola/Jornalismo: Luiz Cesar Saraiva Feijó; Antologias; Poesia; Romances, Ficções, Crônicas: Décio de Almeida Prado; Décio Pignatari; Paulo Mendes Campos; Luís Fernando Veríssimo; José Roberto Torero; Eduardo Galeano; A Literatura do Futebol em Minas Gerais; Humor, “Estórias e Causos”: Sandro Moreyra; Renato Mauricio Prado; Victor Kingma; Eduardo Galeano.
2ª PARTE – BIBLIOGRAFIA BRASILEIRA DE FUTEBOL
Introdução, 2ª parte
1 – Referência
2 – Regras e Arbitragem
3 – Treino, Tática e Categoria de Base
4 – Biografia
4.1 – Jogadores e Comissão Técnica
4.2 – Coletâneas
4.3 – Árbitros, Dirigentes, Jornalistas e Torcedores
O futebol brasileiro cresceu com um perfil bem claro de torcedor. O público do esporte era formado, em sua maioria, por homens, que consumiam os jogos pelo rádio, televisão e jornais, além das idas ao estádio. No ambiente da partida, não era preciso muito para agradar aqueles que se faziam presentes. A paixão prevalecia a qualquer tipo de adversidade e levar um copo de urina na cabeça era parte do folclore.
O mundo mudou e o esporte seguiu o mesmo caminho. As torcidas estão cada vez mais diversas e os fãs ganharam novas opções de entretenimento além do futebol, o que aumentou sua exigência quanto ao jogo. Séries, filmes e jogos eletrônicos são concorrentes do esporte e muitas pessoas não irão hesitar em trocar aquela partida de baixo nível técnico e sem valor competitivo do campeonato estadual pelo último lançamento da Netflix ou um jogo de esports. Clubes e federações precisam estar cada vez mais atentos a este novo comportamento.
Falando mais sobre o torcedor, o relatório ‘Fan of the Future’, publicado pela Associação de Clubes da Europa (ECA), evidencia que este também passa por transformações. Após pesquisa em sete países, incluindo o Brasil, sobre como torcedores encaram o futebol, a ECA chegou em seis categorias diferentes de fãs. A primeira é chamada no relatório de football fanatics, ou fanáticos por futebo em tradução livre, e são aquelas pessoas apaixonadas pelo esporte, que vão ao estádio para ter a experiência completa. Na sequência temos o grupo club loyalists, leais ao clube, indivíduos que acompanham o futebol principalmente por causa de seu clube do coração. O terceiro segmento é o icon imitators, imitadores de ídoles, que preferem jogar a assistir futebol e estão ligados aos grandes ídolos do esporte. A quarta categoria é chamada de FOMO – fear of missing out – followers, enturmados, formada por pessoas que se interessam pelo jogo apenas para não serem excluídas das conversas entre amigos, sem tanta emoção envolvida. O quinto grupo é o main eventers, ou de olho nos grandes eventos, que são os interessados principalmente nos maiores eventos, sem se importar muito com o resultado. Para fechar, o segmento tag alongs, aqueles que vão no embalo, cujo interesse no futebol é gerado a partir de amigos e família, não existindo um envolvimento emocional ou conhecimento sobre o esporte.
O surgimento e a identificação de tais categorias, bem como suas características específicas, obriga os clubes a conhecerem seus torcedores de fato. E aqui está um dos grandes problemas do futebol brasileiro. Por manter diversas práticas do passado, a relação com os fãs ainda é pensada para a realidade onde existia um único perfil consumindo o esporte, de maneira muito diferente do que é hoje. É possível dizer, a partir disso, que muitos clubes nacionais não conhecem seus torcedores, o que gera uma desvalorização de sua importância no ecossistema do futebol brasileiro.
A consequência disso pode ser mais grave do que se imagina. A atenção e o dinheiro destes fãs começam a ir cada vez mais para outras opções de entretenimento, outros esportes e outras ligas de futebol, como os campeonatos inglês e espanhol. O futebol brasileiro está ficando para trás.
Existem alguns conceitos fundamentais para que esta tendência mude. O principal deles é o chamado fan centricity, ou seja, colocar o torcedor no centro de suas estratégias, tomando decisões a partir de suas preferências e mantendo uma relação direta com os milhões que acompanham o clube ou esporte. Para auxiliar neste processo, a entrega de conteúdo é uma das formas de entender as preferências dos torcedores. Aqui a história começa a ficar mais complexa. Este conteúdo precisa estar presente não só no dia da partida, mas durante todos os momentos, aproveitando as plataformas disponíveis e as características de cada segmento da torcida entre os citados no relatório ‘fan of the future’.
Nos primeiros meses de pandemia, o parágrafo anterior foi muito bem utilizado pelos clubes brasileiros. Sem partidas para oferecer aos torcedores, as instituições precisaram pensar em alternativas diferentes para atrair torcedores e monetizar esta relação. Viu-se muito conteúdo nas redes sociais e novos formatos sendo criados, contando com a participação dos atletas em alguns casos. Produtos inéditos também surgiram como os ingressos virtuais, uma alternativa que ainda vem sendo utilizada enquanto os estádios não podem receber público. No entanto, observa-se que, assim que os clubes puderam oferecer o jogo como principal produto, diminuíram sua atenção para o resto do tempo. Reforçando, a partida é apenas parte da estratégia, o dia a dia é tão importante quanto.
Como qualquer mudança que ocorra em uma indústria, haverá resistência por parte de alguns envolvidos. No caso do futebol, será preciso mudar o comportamento de gestores que atuam na área há anos. Já são vistos dirigentes que conseguiram entenderem a importância de um relacionamento adequado com seus torcedores para um futuro vitorioso e estão pondo essas ideias em prática. Além disso, um grupo de fãs também pode estranhar a mudança na forma com que o clube se relaciona com os demais, sem entender que os conteúdos agora são personalizados e buscam atingir os diversos públicos existentes. A solução para isso é entregar o conteúdo constantemente, até que todos os envolvidos no ecossistema do futebol brasileiro compreendam como a situação precisa funcionar daqui para frente.
Para concluir, é preciso dizer que a construção desta relação com o torcedor é um trabalho de longo prazo. O clube começa suas ações hoje e vai aprimorando ao longo da jornada. Para isso, gestores devem sair do pensamento comum e implementar ideias criativas em suas rotinas. O futuro vai mostrar a importância de conhecer seu torcedor.
A segunda vez que ouvi o nome do holandês Raymond Verheijen – RV – foi em 2010 quando eu ainda era o preparador físico do Al Ain FC dos Emirados Árabes e o meu preparador físico assistente, o irlandês Mike McDermott, me contou sobre um estágio que havia feito com ele antes da Copa do Mundo da África do Sul, Ele me mostrou uma planilha de autoria do RV com uma progressão de conteúdos em campos reduzidos que poderia ser usada ao longo de toda uma temporada.
Antes disto, eu já havia lido alguma coisa sobre o excepcional trabalho feito pelo RV como consultor de performance – preparador físico – na seleção da Coréia do Sul, na Copa de 2002, envolvendo a grande polêmica levantada por jornalistas italianos, insinuando que no confronto entre os dois países pelas oitavas de final, os coreanos pudessem estar dopados, tamanha foi a superioridade física demonstrada pelos orientais na prorrogação, levando-os à vitória e a alcançar o maior feito de sua história chegando às semifinais da competição.
Em 2016, encontrei na internet um anúncio de seu livro “How simple can it be?” – “Mais simples do que isto?” em tradução livre – que imediatamente me chamou a atenção. Li a resenha do livro, fiquei curioso e procurei então saber onde encontrá-lo. Assim que me chegou às mãos, devorei o livro! Empolgado, percebi que era tudo o que eu gostaria de ter escrito e, ao chegar às páginas finais, fui ficando até meio pesaroso por já estar acabando! A partir dali me tornei um fã e descobri no site da antiga World Football Academy – WFA, agora renomeada para Football Coach Evolution – FCE, que eles promoviam cursos em vários países ao redor do mundo, mas que nunca haviam realizado um no Brasil…
Sendo assim, me lancei na empreitada de tentar trazer os cursos da então WFA para o Brasil, idealizando contribuir com a elevação do nível de nosso futebol, principalmente após o colossal vexame do Brasil na Copa de 2014.
Realizamos então o nosso primeiro curso o “Football Periodisation” no Rio de Janeiro em Fevereiro de 2017. Sucesso absoluto! Na tarde do terceiro e último dia, pude testemunhar nos semblantes da maioria dos 50 alunos participantes, uma certa emoção e um sentimento de reflexão geradas por aquele evento. RV consegue sistematizar aquilo que tem a intenção de transmitir com pleno embasamento, muita simplicidade e uma didática simplesmente fenomenal!
Meses depois, fui convidado por ele para ir à Europa para fazer os seus cursos de verão: Football Coaching Mentorship, em Amsterdam, Football Periodisation Expert Meeting, na AD Benfica, em Lisboa e Football Periodisation Personal Development, também em Lisboa. Já no primeiro dia do curso em Amsterdam, fui para o meu quarto ao final do dia absolutamente emocionado! Cheguei a chorar e me perguntei: “Mas que diabos está acontecendo? Vim fazer um curso de futebol! Por que estou tão tocado assim?”. A resposta estava na excelência do conteúdo e nas respostas para vários dos meus questionamentos de anos e anos atuando no futebol!
Em seu livro mais famoso – “Football Periodisation”, para muitos uma verdadeira “Bíblia” do futebol, RV começa discorrendo de modo filosófico sobre uma chamada “Teoria do Futebol” – linguagem do futebol, ações e hierarquia do futebol – que serve como um embasamento perfeito para a compreensão e aceitação de seus conceitos e propostas, passando a seguir por temas como performance, condicionamento, fisiologia, métodos de treinamento e modelo de periodização no futebol, mostrando os “o quês, porquês e como”, conteúdo, sequências, métodos, tamanhos de campo, número de jogadores, tempos de jogo, tempos de pausa, número de séries etc. Ele faz questão de enfatizar que não se trata de uma “receita de bolo”, mas sim de uma estruturação lógica que pode ser útil como norte no planejamento e organização dos treinamentos visando construir um time sempre em estado de alto condicionamento e simultaneamente de baixa fadiga, independente de cada contexto ou fator externo enfrentado por cada treinador.
Já em seu mais novo e denso livro, “Football Coaching Theory”, RV se aprofunda em estudos nas áreas da Psicologia e da evolução humana, aperfeiçoando suas teorias de modo ainda mais filosófico, mas igualmente embasado e prosseguindo em seu combate intransigente às subjetividades, achismos, ou meras experiências pessoais que ainda imperam no ambiente do futebol em todo o mundo. Assim, aborda temas como a linguagem, as referências e sub-referências universais do Futebol, “football thinking”,“football braining”, situações e referenciais no treinamento do futebol, competências no futebol, periodização da seleção natural no futebol, auto regulação de times e jogadores e seis princípios da evolução do treinamento do futebol.
RV é simplesmente genial, e como gênio, acabou por se tornar também controverso. Suas estratégias de “coaching”, algumas vezes não são compreendidas nem muito bem-vindas, por gerarem algum desconforto em situações às vezes constrangedoras para alguns alunos. Isto faz com que alguns o taxem como arrogante. Outro exemplo: No seu curso mais avançado, os seis dias do curso “WFA Football Evolution Pro Course – Tactics”, que cursei em maio de 2018 no Valencia CF da Espanha, as aulas começavam às 8:00 da manhã e terminavam invariavelmente às 3:00 da madrugada, TODOS os dias! Sim! Exatamente assim! Uma insanidade! RV não dorme… Ele medita!!! É sério!!! E a gente que se vire pra acompanhar o ritmo…
Ele é extremamente direto e deixa bem claro que sua intenção nos cursos nunca foi e nem será a de fazer amigos, mas sim a de elevar o nível dos profissionais que atuam no futebol e, consequentemente, elevar o nível do futebol como um todo.
RV se envolve frequentemente em contendas na mídia esportiva europeia com vários dos mais renomados treinadores ao questionar os métodos de trabalho adotados em alguns dos maiores clubes do mundo. Sua atuação como mentor da WFA/FCE, já promoveu mais de 300 cursos ao redor do planeta, tendo-a elevado à condição de mais respeitada instituição autônoma de capacitação de profissionais do futebol mundial! Clubes e seleções nacionais como: Barcelona, Chelsea, Manchester City, Glasgow Rangers, Zenith St. Petersburgo… Holanda, Argentina, Rússia, Coreia do Sul, País de Gales, dentre outros, também atestam o seu nível de excelência e merecida fama como uma das mentes mais brilhantes, ou talvez a mais brilhante do futebol mundial! Gênio é a melhor palavra para descrevê-lo!
*As opiniões dos nossos autores parceiros não refletem, necessariamente, a visão da Universidade do Futebol
No ano passado, escrevi neste mesmo espaço um artigo pensando um pouquinho sobre o que entendo ser o jogador inteligente. Foi uma minhas tentativas de tratar deste assunto que, a meu ver, é um dos temas no coração do debate que se avizinha nos próximos tempos: quanto mais avançamos nos conhecimentos táticos, técnicos, físicos e mentais do jogo, mais próximos ficamos do tema do humano – que não é sinônimo daqueles outros temas porque, na verdade, é anterior e maior do que eles todos. Não acho que seja possível pensar sobre a inteligência sem pensar sobre a humanização no futebol.
Isto dito, gostaria de sugerir algumas características mais específicas para a formação desse jogador inteligente. São apenas algumas sugestões, sem nenhuma pretensão de fechamento. Com o tempo, retomamos e refinamos esses temas.
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No texto a que me referi acima, defendi que o jogador inteligente é aquele capaz de ler nas entrelinhas. Talvez pareça uma ideia um pouco incômoda, porque geralmente temos expectativas muito concretas: gostamos que as pessoas nos digam o que e como devemos fazer determinadas coisas. A mim, sinceramente, isso não me agrada muito: não apenas não acho que sou capaz de dizer o que uma outra pessoa deve fazer como, além disso, acho uma certa violência dizer o que um terceiro deve fazer – não por acaso, sugerimos. Quando pensamos que o jogador inteligente é aquele capaz de ler nas entrelinhas, pensamos portanto em algo que não é exatamente concreto, mas que pode se tornar um concreto ainda melhor dependendo do que fazemos com ele.
Se o jogador inteligente precisa ler, portanto falamos da visão. De fato a leitura de um jogo é bastante similar à leitura de um livro. O leitor distraído ou mesmo o leitor inexperiente geralmente deixam passar muitas coisas de um livro. Mas, além deles, há um outro tipo de leitor: aquele que acha que o sentido do texto está somente no texto. Só que pode não ser bem assim: o sentido de alguma coisa pode estar exatamente na coisa, mas está nas relações que fazemos com ela. Percebe? Porque se pensarmos assim, então o jogador inteligente será não apenas um leitor atento, um leitor por vezes ativo – ou seja, à procura de sentido, ao invés de à espera de sentido, mas um leitor também por vezes passivo – ou seja, que se deixa levar pelo jogo sem ser refém dele, e um leitor que sabe que o jogo, em si, diz muitas coisas, e não por acaso diz uma coisa diferente para cada um de nós.
Deixem-me dar um exemplo mais claro: na final da Eurocopa 2012, Espanha x Itália – cujo primeiro tempo, aliás, foi um atropelo espanhol, me parece haver ao menos um exemplo muito nítido do que entendo pela capacidade de ler as entrelinhas do jogo. Repare no print abaixo, que retirei do lance que dá origem ao segundo gol da Espanha, marcado por Jordi Alba.
A jogada parte de uma subida do bloco italiano, que resulta numa passe pelo alto de Iker Casillas, buscando Cesc Fàbregas no corredor esquerdo. É Fàbregas quem faz a parede para Jordi Alba, que recebe a bola ainda na intermediária defensiva. Neste instante, a linha-base da Itália, laterais e zagueiros, não apenas está desfeita – Abate havia deixado a linha para marcar Iniesta – como está bem adiantada, deixando cerca de 40 metros às suas costas. Aqui, me parece, está o claro exemplo da capacidade de ler nas entrelinhas: tenho a impressão de que Jordi Alba, logo após receber e passar a bola, leu o espaço que havia às costas da zaga e dali, leu o término da jogada: o jogador inteligente flutua no tempo e percebe o futuro antes de sê-lo. Assim que passa a bola, Alba inicia um sprint de cerca de 30 metros, que termina num passe magistral de Xavi, entre Barzagli e Abate, que por sua vez termina com a bola dentro do gol. Uma jogada admirável.
Um jogador desatento, ou um atleta cuja leitura é somente reativa, jamais teria visto o que Alba viu cinco ou dez segundos antes do gol. Quando penso nas entrelinhas, penso também nisso: existem informações que não estão explícitas, que não estão claramente dadas, mas que precisam de algum refinamento, de um certo esforço, de uma certa atividade mental que faz toda a diferença para quem joga o jogo. Para o leitor reativo poucos livros servem: ele sempre espera que o livro lhe diga alguma coisa.
Mas para o leitor ativo, por outro lado, todos os livros têm valor: ainda que o livro diga algumas coisas, a diferença está na relação desse leitor com o livro. Ali ele descobre algumas coisas, e olhando com atenção descobre outras, e olhando melhor mais outras, e quando junta tudo aquilo, de outras formas, surgem outras e outras e mais outras coisas. Agora imagine a potência disso não apenas no sujeito, mas no todo. Imagine a potência disso ao longo do tempo, no processo de formação das pessoas que jogam…