PARTE 03 | A SAÍDA: ENTENDA O PROCESSO DE DEMISSÃO DO TREINADOR.
Muito embora um esforço substancial que envolva elevado investimento, tempo, pessoas, treinamento e recursos adicionais possa ser dedicado a construir e manter uma relação sustentável entre empregado e empregador, uma eventual substituição de profissionais ainda pode vir a acontecer independentemente do período que o contratado esteja trabalhando para a organização. O encerramento de um vínculo de trabalho pode ocorrer devido a uma demissão, uma rescisão voluntária por parte do empregado, ou até mesmo uma decisão de aposentadoria. Na realidade do futebol profissional, todavia, a prevalência de alianças de poder entre os atores que dirigem o esporte tende a manobrar suas preferências por cima do treinador em momentos adversos, optando por uma demissão como a solução já padronizada sempre que a equipe apresentar resultados negativos ou um rendimento abaixo das expectativas (subjetivas). Em termos de uma gestão profissional de recursos humanos, quando se trata de posições de alta exigência e conhecimento técnico, o empregador não encontra um cenário favorável para substituir, nem rápida tampouco precisamente, um empregado com nível qualificado de capital humano. Conforme já salientado por um estudo sobre trocas de treinadores na Premier League, o rompimento de rotinas estruturais tende a gerar uma instabilidade, deteriorando ainda mais o rendimento esportivo com restrições ao comportamento e alocação de recursos, uma vez que os novos treinadores agravam a assimetria de informações dentro do clube ao assumir a posição com um menor grau de conhecimento específico sobre o funcionamento da instituição, postergando o seu impacto efetivo sobre o rendimento coletivo da equipe.
Dada a sua natureza contextual, explorar os motivos e condições que projetam uma decisão de ruptura contratual pode ajudar a prevenir indícios de demissões e rescisões no futuro. Por exemplo, se um funcionário opta por encerrar o seu vínculo empregatício voluntariamente dentro de uma organização esportiva, uma entrevista, reunião ou avaliação final podem ser ferramentas úteis para determinar por que o indivíduo decidiu interromper a sua relação de trabalho com a instituição. Caso se testemunhe uma demissão, compreender os métodos e indicadores de avaliação interna, bem como questionar os envolvidos pelo desligamento podem ajudar a compreender não apenas as evidências que sustentam a decisão, mas também as expectativas e condições proporcionadas pelo empregador, a fim de reduzir o risco de outro rompimento de vínculo de trabalho com um empregado no mesmo cargo.
Para compreender o desligamento de um treinador segundo os testemunhos dos próprios entrevistados, o texto apresenta uma série de palavras e frases entre “aspas”, que destacam as informações devidamente associadas ao processo de análise do conteúdo qualitativo neste estudo acadêmico. Ademais, citações individuais com maior aprofundamento também foram utilizadas para enaltecer em detalhes algumas das experiências dos treinadores. Conforme antecipado na PARTE 1, vale lembrar que o anonimato dos entrevistados e suas menções específicas sobre clubes e pessoas permaneceram confidenciais. Portanto, enquanto os nomes dos clubes foram convertidos a suas respectivas regiões (ex.: clube do Sul, do Sudeste, do Centro-Oeste, do Nordeste, do Norte), os nomes das pessoas citadas pelos treinadores foram convertidos aos seus respectivos cargos no mercado de trabalho (ex.: um dirigente, um presidente, um diretor, um representante, um jogador).
Sobre a saída do treinador na realidade do contexto brasileiro, este estudo qualitativo responde a seguinte pergunta:
Como os clubes de futebol de elite no Brasil conduzem o processo de desligamento de um treinador na prática?
DESLIGAMENTO DO TREINADOR
Na análise do conteúdo, o desligamento do treinador foi configurado seguindo a metodologia científica orientada a este estudo qualitativo, cujo embasamento teórico se apoia na literatura de gestão de recursos humanos no esporte profissional. Logo, as categorias que compõem o desligamento do treinador foram identificadas como: métodos de demissão, tomadores da decisão e tomada de decisão. Cada categoria é explicada com as informações analisadas após a coleta dos depoimentos dos 26 treinadores.
Ao serem questionados sobre o processo que antecede a efetiva saída do cargo ocupado, visando compreender como funciona o raciocínio e o tratamento com o capital humano por parte do empregador, os entrevistados compartilharam depoimentos em torno das práticas efetivamente utilizadas para demiti-los na elite do futebol brasileiro. Frequentemente, os treinadores relataram a sua descrença sobre a existência de qualquer análise objetiva por trás das alegações dos dirigentes que tentam defender o desligamento do treinador, pois eles não mostram “um mínimo sinal de convicção”, “agem por interesses em todos os níveis” e “apenas demitem o treinador para satisfazer quem acompanha de fora”. Uma perturbação típica entre os argumentos dos treinadores brasileiros afirmou que “as mudanças de comando técnico não acontecem pela incapacidade do treinador, mas sim pela incapacidade na administração do clube”, que reverbera a pressão política e social em períodos de instabilidade competitiva, evidenciada por uma sequência de resultados negativos, pela insatisfação de expectativas subjetivas e pela queda em torneios eliminatórios. Um treinador inclusive refletiu sobre a ampla conivência (dentro e fora do clube) que ajuda a manter o carrossel em atividade:
“ No Brasil existe uma necessidade de se criar rótulos sobre o treinador, nos colocando em caixas. A minha virtude na chegada vai se transformar no meu defeito na saída. Se eu sou contratado pela minha metodologia de treinos, trabalho autoral e estudos, invariavelmente todas essas qualidades se tornarão defeitos. Nenhuma delas adianta, pois elas servem como argumento para apontar defeitos na minha saída. Há uma alternância de estilos e idades conforme se muda o treinador. Quando eu saio, vem um treinador com trabalho de simples compreensão, que ‘fala a língua do boleiro’, alguém mais experiente. Quando ele sair, tudo vira defeito de novo. Na verdade, não tem para onde correr. ”
1. MÉTODOS DE DEMISSÃO
Tal como configurado na etapa de recrutamento, o desligamento do treinador também pode seguir orientações formais sob a óptica de uma gestão de recursos humanos pelo empregador. Para a etapa de saída do empregado, os métodos de demissão indicam as técnicas aplicadas pelas pessoas responsáveis em encerrar profissionalmente os vínculos empregatícios dos treinadores contratados. Na realidade da elite do futebol brasileiro, todavia, embora alguns treinadores descreveram episódios em que eles tiveram “uma conversa com o presidente” ou ouviram do “diretor executivo que apareceu” para anunciar que os seus deveres no cargo já não eram mais requisitados, a maioria dos entrevistados enfatizou que “quando chega a hora de demitir, trata-se apenas de uma ligação telefônica”, sendo que “hoje em dia os dirigentes comunicam até por mensagem de texto no celular”.
“ Eu já passei por todos os tipos de situações. Conversa direta com o presidente, demissão por telefone, despedido um dia depois da partida e também logo após o jogo no vestiário. Há clubes com comitês e outros com mandato presidencial. Cada clube tem a sua particularidade, mas no fundo eles são formados por torcedores que tomam a decisão dentro do clube. ”
“ O dia-dia vai firmando pactos, a convivência vai se aproximando, você vê as reações. Tem o meu assistente, o meu empresário (também observando). Aí você chega a conclusões. Por exemplo, no Sul, em determinado momento os resultados não estavam vindo e a gente perdeu um jogo no Centro-Oeste. Já havia uma tendência, gente querendo me mandar embora, então o presidente pediu para o seu diretor executivo me chamar. Na reunião ele cravou a minha permanência, mas nas falas você percebia quem não me queria ali. ”
Na prática dos dirigentes que operam como especialistas em clubes de elite do Brasil, os métodos de demissão foram associados a três alternativas: ligação telefônica, encontro pessoal e imprensa. Especificamente, uma ligação telefônica significa que o treinador recebe a informação sobre a sua demissão por meio de um telefonema ou mensagem de texto. Um encontro pessoal demonstra que o treinador é informado a respeito da sua demissão ao encontrar-se com um representante do clube. E, por fim, a alternativa da imprensa reflete as ocasiões em que o treinador descobre por meio de profissionais da mídia que o seu vínculo de trabalho com o clube fora rescindido. De um modo geral, os treinadores lamentaram como as decisões tendem a ser manifestadas publicamente antes mesmo que o profissional contratado tenha conhecimento do juízo final dentro do seu clube empregador.
“ Infelizmente muitos diretores acabam tomando decisões precipitadas em alguns momentos com a pressão pós-jogo, onde entra também a entrevista coletiva, e na emoção já te mandam embora, mas muitas vezes no outro dia eles se arrependem porque tiveram uma outra ideia. ”
“ Para ilustrar, eu posso citar o exemplo de um grande clube do Sudeste quando demitiu o seu treinador bicampeão brasileiro. Ao ser demitido, ele foi sozinho dar uma entrevista. Na minha opinião, o que seria correto era, pelo menos, o presidente junto com os seus dirigentes irem com ele à entrevista, agradecê-lo publicamente, parabenizá-lo por tudo, desejar felicidade. Não tem um agradecimento público. Vem sempre aquela ‘frase morta’ de serviço prestado, tão padrão, sem aconchego. ”
2. TOMADORES DA DECISÃO
Semelhante à etapa de recrutamento, os tomadores da decisão foram identificados como um segmento relevante na etapa de desligamento do treinador, representando as pessoas responsáveis por decisões de retenção ou substituição de profissionais dentro dos clubes. Na prática, os tomadores da decisão são conceituados como “dirigentes”, cuja combinação reúne presidentes, vice-presidentes, diretores estatutários, diretores executivos, diretores de futebol e gerentes de futebol. Enquanto alguns treinadores fizeram questão de reconhecer que a presença de um diretor executivo trabalhando em período integral pode ser algo benéfico em termos profissionais, eles enfatizaram que essa função não apresenta autonomia para operar no cenário político que domina os clubes de futebol do Brasil. Por outro lado, os treinadores também revelaram uma inquietação sobre os diretores executivos agindo exatamente da mesma forma que diretores estatutários quando se trata de decisões para manter ou desligar o treinador do cargo.
“ Nem sempre fica claro quem toma a decisão. Atualmente inclusive existe uma briga muito grande no mercado brasileiro entre treinadores contra executivos, porque ele te contrata, mas quando a situação não está boa é só você quem sai, não ele. A ideia foi dele, a escolha foi dele, mas quem ‘paga o pato’ é só você, que foi o escolhido. ”
Independente das diferentes terminologias utilizadas nos organogramas dos clubes de futebol espalhados pelo país, os treinadores demonstraram que prevalece a dúvida e a confusão em torno de quem efetivamente assume a responsabilidade para demitir o treinador. Visto que as demissões são frequentemente caracterizadas como decisões obscuras e comunicadas de forma muito vaga, as práticas que levam ao desligamento do treinador reforçam as limitações das pessoas que atuam como especialistas do capital humano na estrutura esportiva e regem os contatos com os treinadores profissionais. Ao confirmar que “o presidente está sempre perdido nos momentos de pressão”, mantendo-se “rodeado por dez conselheiros” ao mesmo tempo que “os dirigentes não apresentam a mínima capacidade para rodar uma avaliação sobre o trabalho do treinador”, os entrevistados afirmaram que as decisões de rompimento contratual tendem a ser estimuladas por uma perturbação que surge das emoções de “torcedores que trabalham dentro do clube” e também de “forças externas”.
“ Não fica claro (de onde vem a decisão). O presidente ouve desde o seu conselheiro mais próximo no clube, passando por representantes de jogadores, pessoas que você menos imagina, sem nada a ver com o aspecto do time, incluindo o assessor de imprensa. Às vezes a pessoa pode até ter outros interesses em relação a isso, ou teve algum problema e usa a palavra para desestabilizar. Nesse momento o presidente é frágil, não sabe o que fazer e está tentando se escorar em alguém para tomar a decisão. Eu, particularmente, não considero que é uma decisão tomada só pelo presidente, até porque muitos são colocados no cargo por alguém que dita as ordens por trás. Não dá para cravar quem decide. Não tem como. ”
“ Eu tenho conhecimento de outros casos onde a decisão vem de quem investe no clube. Nós sabemos porque isso é compartilhado por pessoas que estão vivendo o momento dentro do ambiente. Para quem está de fora a situação fica aberta na maioria das vezes. Em clubes com regime presidencial a decisão geralmente vem do presidente. Quando há forças externas, são elas quem tomam a decisão porque elas investem no clube. ”
“ Na maioria das vezes, na verdade, o presidente nunca te demite. Nenhum desses dirigentes, seja diretor ou gerente de futebol, tem a capacidade de sentar para demitir o treinador. E eu já ouvi claramente argumentos sem a mínima convicção. É apenas para dar uma satisfação porque dois dias depois já tem outro jogo. Recentemente, por exemplo, pela forma como um presidente me passou a demissão, você só precisava olhar para ele e perceber que ele estava fazendo aquilo sem qualquer convicção. É porque as pessoas estavam pressionando para que ele tomasse alguma atitude. Eu fui mandado embora às 6h30 da manhã porque o time ia chegar às 9h no aeroporto e a torcida estava organizando uma confusão. Então para a torcida não ir ao aeroporto resolveram me demitir, aí eles não foram. Mas se o próximo contratado não tiver resultado, também vão demitir e chamar outro. Entra muito o discurso de que é melhor fazer alguma coisa do que se omitir. Os dirigentes demitem pensando no jogo seguinte. ”
3. TOMADA DE DECISÃO
Migrando dos métodos de demissão e passando pelos tomadores da decisão, os antecedentes que levam à saída do cargo ocupado foram explicados por depoimentos sobre um suposto processo de tomada de decisão que precede o anúncio oficial de desligamento do treinador pelo clube. Nesta etapa, a tomada de decisão indica o planejamento e o raciocínio para demitir um treinador profissional no Brasil. De acordo com os testemunhos dos entrevistados, entretanto, “não fica claro como a decisão é tomada” porque “os dirigentes não estão analisando o trabalho”. Aparentemente guiados pelos resultados nos placares dos jogos, o raciocínio que conduz o desligamento de um treinador em clubes de elite do futebol brasileiro inevitavelmente torna o profissional suscetível a perder o seu emprego, a não ser em ocasiões em que ele já tenha acumulado alguma credibilidade dentro do clube para superar uma onda de instabilidade. Enquanto há esperança (por um placar), o treinador é percebido como um herói mesmo ao enfrentar adversários superiores, mas tão logo a dúvida e o desespero se instalam (entre um placar e outro), a mesma pessoa é percebida como um perdedor. Um dos entrevistados questionou o grau superficial das decisões no país:
“ As pessoas que atuam como dirigentes não têm a mínima capacidade de fazer uma avaliação sobre o trabalho de um treinador. Em relação aos resultados é fácil. São números, uma análise mais fria. Por outro lado, seria apenas o trabalho do treinador que faz com que a equipe não consiga os resultados, ou existem outros componentes com uma influência maior? A maioria das decisões é baseada totalmente no emocional, sem envolver qualquer análise racional, nada do tipo. Por exemplo, os salários atrasados têm um impacto muito grande no dia-dia do treinador. Você gasta a sua energia em praticamente uma parte da abertura do treino para justificar, ou dar um prazo, ou criar alguma expectativa para trazer o jogador ao trabalho e ganhar um tempo até os dirigentes tentarem solucionar aquele problema, que às vezes nem é solucionável. Eles vão jogando de um mês ao outro, mas o problema permanece ali. Eu vejo essa incapacidade de leitura sobre o que acontece dentro dos clubes, do conhecimento prático sobre o que é o trabalho do treinador, o que ele está realizando. ”
Numa tentativa de resumir o suposto processo analítico que apoia as demissões de líderes técnicos no Brasil, um treinador declarou que “em qualquer situação instável os dirigentes optam por uma troca de treinadores”. Para esclarecer a tomada de decisão que antecede o encerramento contratual, quatro fundamentos foram identificados: pressão externa, pressão interna, comunicação e responsabilização. Os argumentos a seguir iluminam uma melhor compreensão sobre como funciona o desligamento de treinadores na prática.
3.1. PRESSÃO EXTERNA
O fundamento da pressão externa reflete a pressão originada por torcedores, imprensa, patrocinadores e investidores. De fato, considerando que os treinadores de futebol profissional estão essencialmente situados no epicentro da atenção pública no Brasil, eles demonstraram como a repetição diária de opiniões externas transmitidas em narrativas da mídia esportiva e combinadas com a influência das plataformas de mídia social provocando debates entre os torcedores numa dimensão exponencial tendem a afetar severamente o estado emocional dos dirigentes. A pressão externa instiga demissões devido aos desafios transmitidos aos diretores dos clubes, que consequentemente preferem desequilibrar a relação de poder dentro da instituição, empurrando os treinadores para que eles reajam sozinhos em frente aos holofotes.
“ Tudo gira em torno da emoção. Eu vivi isso desde clubes menores a grandes do país. Essa pressão que vem da torcida e é repassada à imprensa é um fator primordial. Há muito tempo a gente está vendo que todo dirigente cede à pressão. Nós tivemos um ano sem torcida nos estádios e ainda assim as mudanças continuaram (no mesmo ritmo). Ou seja, a mídia, a imprensa, as redes sociais têm um peso muito grande para que essas trocas aconteçam. Isso é pelo perfil das pessoas que determinam quando é para mudar ou continuar (dentro do clube). ”
“ O que motiva essa insatisfação do dirigente é justamente a pressão que ele sofre em casa e na rua. Por pressão da torcida, mídia, pai, filho, irmão, genro, cunhado, amigo ou conselheiro. Como ele quer ficar livre disso logo e nada o impede de demitir o treinador, ele manda o profissional embora. ”
Dada a predominância de atores externos aos clubes afetando as decisões, embora um dos entrevistados mais experientes tenha ratificado que “os resultados são apenas um pretexto, uma justificativa no final”, outros treinadores assinalaram um peso injusto dos placares dos jogos na pressão para se encerrar um vínculo de trabalho. Tal atitude de preferência a uma suspensão contratual cria uma ilusão que mascara as maiores fraquezas dos clubes, uma vez que adaptações não-estratégicas desviam o foco dos reais problemas da organização esportiva. De um modo geral, as demissões no Brasil ocorrem “sem qualquer tipo de convicção, tão somente para mostrar algum tipo de atitude”, temporariamente agradando os torcedores que se encontram frustrados.
“ Há essa necessidade de dar uma resposta à imprensa e à torcida, pensando que ‘ao demitir o técnico eu dou uma acalmada por alguns dias, tiro a pressão do meu lado e esse momento do clube passa a ser tudo responsabilidade do técnico’. Isso é muito ruim! É a resposta que se dá àqueles que estão fora do clube, porque ninguém vê o trabalho, apenas o resultado. ‘Vamos tirar esse cara para acalmar.’ Mas você quer acalmar o quê?! Essas confusões em porta de centro de treinamento vêm da oposição em quase 100% dos casos. E o alvo fica muitas vezes no técnico. A partir do momento que os clubes deixam a torcida mandar, se torna muito difícil trabalhar. ”
“ A mídia trabalha com o mesmo produto, mas numa relação e ênfase diferentes. Diariamente há pelo menos doze programas esportivos com cinco pessoas falando ao vivo. Ou seja, são 60 pessoas falando o que o treinador deve fazer todo dia! Existe uma avaliação superficial na mídia porque o jornalista se alimenta da informação que recebe. Ele vai criar e extrair de acordo com os fragmentos que chegam até ele devido a informações incompletas. Isso prolonga e amplifica o debate, interpretando o treinador de forma errada. A nossa preocupação anterior era que o jornalista pautasse a opinião do torcedor. Hoje, devido à hiperexposição, o torcedor é quem pauta o jornalista. E o treinador acaba sendo influenciado por isso. ”
3.2 PRESSÃO INTERNA
O fundamento da pressão interna reflete a pressão originada por dirigentes e grupos políticos dentro dos clubes empregadores. Segundo as revelações dos treinadores, as demissões também são geradas pelo envolvimento de um “jogo político interno” ou discordâncias provenientes de tentativas de “interferências” por parte de dirigentes, que estimulam a ebulição de relações adversas dentro do clube. Sinais intrigantes de um comportamento organizacional excêntrico que canalizam a pressão rumo a decisões tendenciosas a culpar e demitir o treinador foram capturadas em depoimentos sobre todas as regiões do país.
“ Eu tento me isolar um pouco do que está acontecendo na parte diretiva do clube, mas isso cria uma animosidade. Com isso eu nunca aprendi a trabalhar. Eu não consigo ser falso. Eu não deixo contratarem quem eu não queira sem a minha aprovação, mas isso me traz um problema. Quando eles forçam a contratação eu deixo claro que não foi uma indicação minha. Então quando surge o primeiro momento instável você fica nas mãos de quem está dirigindo. O principal motivo da minha saída de um clube no Sudeste foi esse. ”
“ Não é o trabalho que os dirigentes estão analisando. Por exemplo, no Centro-Oeste eu perdi um campeonato estadual numa derrota contraditória, jogando bem. Um dirigente que era dono de uma rádio falou uma besteira, mas o presidente disse que não dava para contornar a situação porque se tratava da pessoa que colocava dinheiro no clube e ele não ia voltar atrás. Ou seja, um único dirigente acabou me demitindo, porque lá não tem pressão de torcida. ”
Reverberando a pressão interna testemunhada por treinadores jovens e experientes, existem predisposições políticas e interesses pessoais que evidentemente se caracterizam como indícios comuns por trás das decisões de desligamento de treinadores profissionais no Brasil. Para exemplificar os casos, dois treinadores compartilharam uma sequência de eventos com anedotas similares, muito embora tivessem sido empregados por instituições distintas:
“ Em um clube do Sudeste eu não utilizava um jogador que tinha ligação com o presidente, então ele criou um problema em cima disso. Trabalhando no Sul do país eu enfrentei uma questão política interna de jogadores com um diretor. Um jogador em específico mandava no clube, então eu era obrigado a gerir a equipe sem criar zonas de desconforto para ele. Em outro clube do Sul eu trabalhei com uma diretoria ‘rachada’. Assumi para tentar ‘apagar o incêndio’, mas a pessoa que me contratou exigiu condições internas que não foram defendidas perante a imprensa, criando um impasse para mim. Já no Nordeste havia um diretor executivo no clube que era muito próximo a alguns empresários para trazer determinados jogadores, mas eu não os colocava para jogar porque eles não estavam rendendo. Então os empresários reclamavam. E isso acontece muito. Além disso, o presidente não segurou uma situação política com a torcida pedindo a minha saída porque ele queria ser prefeito da cidade. Além de não conhecer de futebol, ele não teve segurança para defender a qualidade do trabalho do seu treinador que passava por uma certa dificuldade momentânea na tabela. Tem um ponto nos clubes que você tem que analisar: briga política. Se o clube está próximo de eleição ou há uma briga política muito grande existem mais trocas de treinadores. Vem o ‘quebra-quebra’, vem a torcida organizada tirar satisfação. Pagos por quem? ”
“ Eu enfrentei um problema entre um patrocinador do clube e as categorias de base quando trabalhei no Sudeste. Um choque entre os dois, numa interferência para que eu escalasse os jogadores ligados ao investidor, mas eu não aceitava. Aquilo acabou gerando uma série de desencontros, alguns de baixíssimo nível moral, e em seguida eu fui demitido. Também no Sudeste, um diretor contratou mais de vinte jogadores, a maioria contra a minha vontade, alegando que era uma filosofia do clube para ter uma situação favorável no futuro, porque na verdade aquilo era um engendramento com os empresários. Só que chegou a um ponto que ele começou a tentar interferir no meu trabalho, mas como eu não aceitava, ele convenceu as pessoas a me demitir. ”
3.3. COMUNICAÇÃO
O fundamento da comunicação captura como os motivos subjacentes à decisão de desligamento são comunicados ao treinador. Longe de qualquer parâmetro de ordem profissional, todavia, os treinadores não são claramente comunicados sobre o término dos seus deveres no cargo, exaltando a falta de transparência e o descaso no tratamento do capital humano pelo clube empregador. Constrangidos com as práticas amadoras que norteiam as operações na gestão de recursos humanos do futebol brasileiro, os entrevistados revelaram como a comunicação fica sempre subentendida, afinal os dirigentes não tratam o assunto diretamente com o treinador, tornando a compreensão dos motivos por trás da demissão como um ato “vago, aberto e oculto”.
“ Houve momentos em que a demissão foi informada sem nenhum tipo de explicação. Alguém vem nos avisar: ‘Você está fora’. ‘OK, mas o que está acontecendo?’ Simplesmente dizem: ‘Passa aqui na terça-feira, ou avisa o seu advogado que nós vamos entrar em contato’. Quando há uma explicação, ela é de que as coisas não andavam bem e era necessária uma troca, sempre nessa linha. Normalmente é depois de uma derrota, que acaba falando por si como resultado. ”
Ao serem questionados por que tais eventos que levam a demissões infundadas acontecem com alta frequência, um treinador observou que a prática continua “porque existe o envolvimento da imprensa, da torcida e das mídias sociais”. Ponderando que os treinadores apenas recebem “uma justificativa que vem com o tempo”, a comunicação de uma decisão sobre o desligamento de um treinador pode até mesmo se tornar “uma situação vergonhosa” com os dirigentes envolvidos.
“ Nessa hora do rompimento muita gente se omite porque sempre é uma hora difícil. Por exemplo, quando eu saí de um clube do Sudeste, logo após o jogo a situação ficou muito estranha chegando ao vestiário. Eu estava recebendo informações da minha assessoria sobre matérias veiculadas na imprensa tratando da minha saída. Enquanto isso, o diretor executivo estava sentado na minha frente negando. No final saímos nós dois, mas ninguém vinha nos comunicar que a decisão já havia sido tomada naquele momento. Eu só fui comunicado porque pressionei o presidente para conversar comigo antes que eu tivesse o último contato com os jogadores como parte da nossa conversa final no vestiário, onde tratamos assuntos particulares e projetamos o próximo jogo. Caso contrário, eu ia sair na rua e descobrir que tinha sido demitido. Isso acontece muito no Brasil. ”
3.4. RESPONSABILIZAÇÃO
Por fim, o fundamento da responsabilização remete-se ao cumprimento dos compromissos contratuais, honrando pagamentos, dívidas e ações legais associadas à rescisão de contratos trabalhistas. Nitidamente enaltecido como um dos argumentos mais assustadores sob a perspectiva de uma gestão sustentável de recursos humanos no futebol nacional, os depoimentos dos treinadores ilustram a falta de comprometimento dos dirigentes em torno das relações de trabalho nos âmbitos profissional, ético e legal. Incomodados com a ausência de responsabilização entre os tomadores da decisão que operam nos clubes de elite do país, os treinadores expressaram como os dirigentes optam pela negligência ao pensar na saúde financeira (atual e futura) da instituição “porque eles não estarão no comando quando o problema surgir” e “como não respondem com o próprio capital e identidade legal, as dívidas permanecerão com o clube”. Segundo os testemunhos, as obrigações devidas aos treinadores demitidos raramente são honradas ou compensadas, a não ser quando os próprios profissionais iniciam processos legais com ações na justiça contra os clubes que os empregaram. Cinco depoimentos provenientes de origens distintas ajudam a explicar como o formato estrutural e financeiro que apoia a indolência dos dirigentes brasileiros facilita a prática de demissões massiva e contribui para atrasar o progresso esportivo:
“ Ao optar pela demissão, os dirigentes não pagam os treinadores. Esse problema ainda persiste. Os clubes hoje têm um excesso de dívidas trabalhistas. Os treinadores saem e as suas dívidas dependem de pagamentos em prestações, que não são honradas. Temos um colega que esperou 19 anos até receber o que era devido por um clube de primeira divisão nacional no Sudeste! Isso tudo acarreta uma intranquilidade ao treinador. ”
“ Atualmente há um clube do Sudeste que está devendo a oito treinadores que foram empregados nos últimos dois anos! E pelo andar da temporada ainda teremos mais dois nessa conta. Como podemos reivindicar qualidade de jogo sobre um time dessa forma? Posso citar outros três clubes também do Sudeste na mesma situação. Tudo igual. ”
“ Nós temos um agravante que nenhum outro país tem: a questão de cumprir o contrato independentemente de você sair ou não. Falamos de um país onde, além dessas mudanças serem superiores a todos os outros países, nós temos um agravante muito maior que é o de não receber integralmente o salário pelo tempo que você trabalhou, seja dois, três, quatro meses. E a quebra de contrato no Brasil dificilmente é respeitada mesmo com o documento assinado! Um profissional que é demitido no Brasil leva de cinco a seis anos, em média, para receber o valor do seu contrato. ”
“ Há facilidade em trocar treinador porque não existe contrato anual. E caso o treinador seja mandado embora, ele não recebe o valor integral. O clube não respeita. Os treinadores entram e saem sem receber salário, nem nada. Não existe planejamento financeiro, organização, então vão gastando na esperança de ter um retorno. Não existe responsabilidade por parte do dirigente, que não quer saber o que vai acontecer com o clube lá na frente. ”
“ Há uma parte estrutural, financeira, que facilita as demissões de treinadores. Enquanto os dirigentes não forem forçados a pagar as suas obrigações, eles vão continuar mandando treinador embora sem parar. Você pode esquecer projeto, bom trabalho, competência. Eles não pagam ninguém! Eles tentam descobrir a sorte trocando de técnico. ‘Não deu certo com esse, eu troco agora e depois troco de novo!’ Você não paga o profissional, não gasta, troca de novo, contrata outro. Eles não têm ônus e tentam acertar. Vai que chega um mágico e dá certo?! O processo financeiro e estrutural está fácil (para quem demite o empregado). Não vai parar isso. Essa ilusão que vai parar não vai acontecer. Eu tenho dívidas para receber de um clube do Sudeste. Sabe quando eu vou receber? Talvez daqui a cinco anos se eu entrar na justiça. Isso após um trabalho que trouxe receitas milionárias ao clube. É nesse meio que eu opero. É fácil para o sistema me tratar como descartável. Não existe ônus ao dirigente. Está muito fácil mandar treinador embora. Eles vão continuar dando o ar na cabeça do treinador, demitindo e não pagando. ”
Para finalizar, a PARTE 4 concluirá o estudo, ponderando os caminhos para uma possível reformulação prática na gestão humana e esportiva da área técnica de um clube profissional de futebol no Brasil.