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Por que é importante jogar limpo com o torcedor/consumidor

Publicado pela CBF (Confederação Brasileira de Futebol) em março deste ano, o relatório de intermediários do futebol nacional, feito pela diretoria de registro, transparência e licenciamento da entidade, mostra que o Corinthians gastou R$ 12,88 milhões com comissões a empresários entre 2017 e 2018. O São Paulo, segundo colocado do ranking, destinou R$ 4,4 milhões a intermediários de negociações no mesmo período. Ainda que a metodologia usada para aferir esses números tenha sido criticada pela diretoria alvinegra, o documento é um exemplo de um problema recorrente no processo de estruturação da comunicação no Brasil. Enquanto as mensagens ao consumidor final não se tornarem mais claras e diretas, o nível de confiança sobre o mercado seguirá comprometido.
Uma das principais questões que o futebol brasileiro tem a resolver é a credibilidade. Se um jogador da base não vinga, faltou empresário; se um atleta com potencial não chega a um time grande, não é do esquema; se um clube é prejudicado pela arbitragem, não é o favorito do sistema para ser campeão. No fim, todas as decisões acabam encontrando eco na falta de transparência e no cenário nebuloso. Num ambiente em que tudo pode ser justificado com teorias ou razões espúrias, todo o trabalho acaba contaminado.
Essa lógica, é claro, beneficia sobremaneira a manutenção de ações que lesam clubes, federações, jogadores, profissionais e torcedores. A certeza de que existe um sistema nocivo acaba perpetuando em todas as esferas uma sensação de que é impossível lidar com isso de forma honesta. Essa mão invisível da corrupção, inimigo retratado de forma exemplar no filme “Tropa de Elite 2”, estabelece um distanciamento que também é um convite à alienação.
Decorre dessa lógica deturpada o “contra tudo que está aí” tão comum em manifestações de repúdio direcionadas à classe política. Decisões e desmandos geram revolta, mas é o afastamento do jogo que sustenta críticas às regras, ao formato do tabuleiro e ao comportamento dos dados. A aversão deixa de ser ideológica ou personalista e passa a ser endêmica, o que definitivamente não contribui para qualquer sentido de evolução ou melhoria do que está sendo feito.
A primeira questão, portanto, é quem se beneficia de um sistema tão cheio de lacunas. A segunda: quais são os caminhos para minimizar esse tipo de prática e aumentar a lisura nos negócios envolvendo o futebol nacional. Internacionalmente, por exemplo, entidades e ligas trabalham há anos com sistemas de transferências que ao menos registram movimentações financeiras e comissões. Se não resolve o problema, esse modelo cria um compromisso com aspectos tributários e com o controle de finanças das instituições envolvidas.
Além da criação de um sistema para registro de transferências, é premente a padronização de um modelo mais detalhado e claro para publicação de balanços financeiros de clubes e entidades. A divulgação dos dados é exigida por lei, mas ainda entra em um arcabouço de possibilidades e nomenclaturas que mais desinforma do que efetivamente ajuda o torcedor a entender o que está sendo feito com o clube, que no fim é seu maior patrimônio.
No Brasil, país em que o futebol é tão presente na formação da cultura popular, é clara a ideia de que o esporte é um elemento de identidade. Esse raciocínio serve, por exemplo, para justificar incentivo público à modalidade e preservar clubes e entidades. É uma das premissas basilares de todos os refinanciamentos de dívida pública feitos pelas equipes locais.
O futebol, contudo, é um elemento de identidade nacional em que o controle é exercido por um pequeno grupo, sem o menor compromisso com a transmissão da mensagem adequada ou com uma comunicação que seja efetivamente inclusiva. Enquanto for assim, o público interessado sempre terá ressalvas, e o número de consumidores também sofrerá para crescer.

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Entre o futebol e a justiça desportiva

Bem-vindos ao nosso mês de agosto aqui no “Entre o Direito e o Esporte”! Esse mês nós vamos conversar sobre aquilo que a gente vê em todo campeonato, aquilo que a gente vê nos jornais, aquilo que faz a gente saber o nome até dos advogados do seu clube. Nesse mês nós vamos dar uma olhada no sistema de Justiça Desportiva aqui no Brasil.
E, para deixar tudo mais claro, já deixo aqui o nosso mapa de hoje e do nosso mês: na próxima sexta-feira vamos conversar sobre o “que” da Justiça Desportiva; na terceira coluna do mês vamos ver o “onde” dela; depois vamos dar uma olhada no “quem”; e fechamos o mês com o “como”.
Bora lá?
Justiça Desportiva o quê? Essa próxima semana é fácil, a gente vai conversar sobre o que essa tal de “JD” julga. Ou seja, vamos dar uma olhada em quais os tipos de caso que passam por ali.
Imagina o seu futebol de sábado. Deu ruim. O que é esse “deu ruim” lá? É por aí que vai a nossa conversa… uma conversa que fica muito mais divertida quando entra toda essa história de VAR, torcida organizada e “dirigente pistola”.
Justiça Desportiva onde? Na nossa terceira coluna desse mês nós vamos ver onde é que tudo isso acontece. Ou seja, vamos tentar responder umas perguntas: “só tem uma Justiça Desportiva?”; “Se tem mais de uma, como que funciona?”; “Aliás… e qual julga o que?”.
Imagina o seu futebol de sábado. O deu ruim foi ter um expulso por briga. Onde é que vocês vão decidir a “caixinha” que ele vai deixar? É bem essa a discussão da nossa terceira semana de agosto.
Justiça Desportiva quem? No dia 24 de agosto, vamos dar uma olhada em quem faz parte dessa tal de “JD”. Ou seja, quem faz tudo acontecer e quem aparece por lá quando tem um julgamento.
Imagina o seu futebol de sábado. O deu ruim foi ter um expulso por briga e que ia ser julgado por WhatsApp. Quem decide se o amigo está fora da próxima semana? É por aí que vai a nossa história… uma história que passa por nós advogados e vai até os jornais.
Justiça Desportiva como? No fechamento do mês nós vamos trocar uma ideia de como tudo isso acontece nessa tal de “JD” – claro, quando acontece. Ou seja, como um caso começa e até onde ele vai e de que jeito.
Imagina o seu futebol de sábado. O deu ruim foi ter um expulso por briga, o julgamento ia ser pelo WhastApp, e quem ia julgar eram os “três mais antigos de casa”. Como é que eles vão decidir de quanto é essa “caixinha”? É bem esse o fechamento da nossa coluna sobre Justiça Desportiva aqui na Universidade do Futebol, como um “pedaço de papel” vira um “o jogador do seu time está fora da final do campeonato”.
É… talvez o seu futebol de sábado, como o meu, não seja tão cheio de coisas assim – né? A ideia aqui é deixar esse “guia” para você… e para você usar para acompanhar o nosso campeonato brasileiro, para dar mais ideia para a resenha depois do jogo do seu time, ou para ajudar a montar a sua Justiça Desportiva no futebol de sábado. Fechou?
Fico por aqui hoje, e convido vocês a continuar no “Entre o Direito e o Esporte”. De pouco em pouco vamos seguindo nesse caminho para ver mais sobre a tal da Justiça Desportiva! Nos vemos na próxima sexta-feira para dar uma olhada nesse “que”. Deixo meu convite para falarem comigo por aqui, pelo meu LinkedIn ou pelo meu Twitter. Valeu!

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Política e incoerência de ideias trazem Felipão de volta ao Palmeiras

Quem imaginaria que depois da Copa do Mundo Luis Felipe Scolari seria o técnico do Palmeiras?! Mesmo entendendo todo o dinamismo do futebol, por essa ninguém esperava. Faltava consistência no trabalho de Róger Machado. Isso é inegável. Aliás, que fique a reflexão para ele. É o terceiro clube em que ele sai sem ter concluído o trabalho. Algo precisa ser revisto no trabalho de Róger. Mas a decisão do Palmeiras em troca-lo por Scolari tem um viés muito mais político do que técnico.
O Palmeiras está diferente desde que Paulo Nobre assumiu como presidente em 2013. Muita coisa mudou para melhor no clube. Gestão, arrecadação, imagem positiva e séria no mercado, dentre outras coisas. Porém, a inconstância no comando do futebol é uma das marcas negativas que se arrasta até hoje. Apenas Gilson Kleina – que na maior parte do tempo teve uma Serie B pela frente – ficou mais do que um ano. Kleina permaneceu de 19 de setembro de 2012 a 8 de maio de 2014. De lá para cá, passaram Ricardo Gareca, Dorival Júnior, Osvaldo Oliveira, Marcelo Oliveira, Cuca, Eduardo Baptista, Cuca novamente, Alberto Valentim, Róger Machado e agora Felipão.
Mesmo com essas trocas constantes veio a conquista da Copa do Brasil de 2015 e o Brasileirão de 2016. Mas o Palmeiras, apesar de todos os recursos que dispõe agora, não conseguiu marcar uma era vencedora no futebol brasileiro. Muito por conta dessa indefinição de comandante e de identidade. Os maiores rivais do Verdão, por exemplo, tiveram sequências bem sucedidas mantendo o mesmo profissional – Tite ganhou tudo com o Corinhians e Muricy Ramalho levou três Brasileiros com o São Paulo.
Qual futebol o Palmeiras quer apresentar? Com quais ideias? Qual o modelo de jogo a ser colocado em prática de acordo com a história e tradição do clube? É fácil para qualquer pessoa que acompanha futebol entender que mudar de Róger para Felipão é como mudar da água para o vinho.
Scolari tem uma maneira peculiar de lidar com o ambiente que o cerca que funciona muito bem já imediatamente à sua chegada. Seu relacionamento com os atletas costuma potencializar talentos. Porém, tenho muito claro que seu nome veio a tona muito por conta das eleições que o clube terá em dezembro. Seu nome causa impacto em todo palmeirense por conta das conquistas do passado. Entretanto, não há indicativos técnicos e táticos recentes que coloquem Felipão como o melhor nome para assumir o Palmeiras agora.
Mas nossos dirigentes se veem muitas vezes obrigado a ‘dar uma resposta para a torcida’. Sem pensar muito no médio prazo. Apenas nos próximos jogos. Sem muito projeto, planejamento. Talvez por isso troquem tanto de técnico.

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Sobre a medicina do bom treinador

Jürgen Klopp (Fonte: The Week/Jan Kruger-Getty Images)

A medicina do bom treinador está ao alcance dos olhos, mas ver não basta. O treinador, como já observamos anteriormente, precisa crer que é uma espécie de médico, cuja responsabilidade está para muito além dos três pontos do fim de semana. Sua responsabilidade está na promoção da mais plena saúde dos atletas e da equipe, na contínua formação da persona que antecede os jogadores. Assim como um médico age sobre o corpo para curar uma dada moléstia, cabe ao treinador agir sobre o espírito, sobre as ideias de cada atleta e do grupo, pois atletas não são máquinas que devem gerar resultados, mas são indivíduos que precisam realizar-se no seu pleno potencial.
Mas como isso é possível? Em primeiro lugar, cabe a treinadores e treinadoras, tão logo iniciem seus respectivos trabalhos, fazer uma anamnese do seu grupo. Anamnese é outra ideia trazida pelos gregos, e significa nada mais do que lembrança, recordação: o primeiro passo para a cura do doente estaria na recordação do caminho que o levou até à doença. Isso só é possível através de um bom diálogo e das perguntas certas. Por isso a dialética, também no futebol, é uma ferramenta imprescindível, assim como a pergunta. Repare que a anamnese, nesta perspectiva, não é um processo vertical, mas uma tratativa que demanda esforço de treinadores e atletas, em conjunto. Da mesma forma como a sociedade precisa uma educação que forme governantes, o futebol também precisa de atletas que saibam ser treinadores, quando necessário for.
Feita a anamnese, cabe ao treinador intervir. A intervenção do treinador, em linhas gerais, ocorre no processo de treino. Ao medicamento de longo prazo, que tende a agir sobre uma determinada causa, ao longo do tempo, nós podemos chamar de modelo de jogo. É por isso que a anamnese é um processo vital: pois se nela houver um equívoco, pode ser que todo o trabalho seja perdido. Como um bom médico, o treinador precisa ter em vista que sua ação se dará em duas grandes frentes: acrescentar o que está em falta e retirar o que está em excesso. Assim como uma dada medicação pouco faz em doses mínimas, ou pode ser um veneno em doses elevadas, o treinador precisa agir, no processo de treino e de jogo, em busca do equilíbrio, da justa medida, pois quaisquer alterações, para cima e para baixo, ainda que soem promissoras, tendem a ser absolutamente perniciosas durante o processo e podem se voltar contra o próprio treinador, à sua revelia.
Assim como um organismo vivo só funciona a partir da interação entre os seus sistemas e respectivos órgãos, a medicina do bom treinador precisa contemplar inteiramente que, no jogo, tudo é um, e que as separações que fazemos são meramente didáticas. No momento ofensivo está o momento defensivo, na transição ofensiva também está o comportamento pós-perda. Ou seja, o processo de treino deve ser estritamente cuidadoso com as fragmentações, pois quanto mais separado o processo, mais distante ele estará da essência do jogo. Além disso, é preciso enxergar para além do que os olhos veem: assim como uma cefaleia não significa, necessariamente, um problema na cabeça, uma equipe que apresenta um determinado sintoma pode ter a natureza da sua moléstia em outro lugar, completamente diferente. É por isso que, para além do sentidos, é preciso afiar o espírito, pois também no jogo o essencial é invisível aos olhos.
Treinadores e treinadoras não estão sozinhos. Assim como um bom cirurgião é impotente se não estiver bem auxiliado, o treinador pouco pode fazer se não tiver, ao seu lado, pessoas da mais estrita confiança e qualidade. Neste sentido, me parece absolutamente razoável que o treinador, na sua medicina, esteja amparado por homens e mulheres, das mais diversas áreas e com as mais diversas experiências, com perfis distintos do seu e, não raro, melhores do que o próprio treinador nas tarefas que lhes cabem. Se o treinador tiver na sua equipe perfis estritamente similares ao seu, terá então um grupo de especialistas, fluente em um relativo grupo de moléstias, mas incapaz de tratar aquelas que fogem do seu conhecimento. O treinador não deve (não pode) saber de tudo, mas pode saber mais, caso decida não saber sozinho.
Pacientes são diferentes entre si (razão pela qual um mesmo medicamento, para uma mesma moléstia, pode não ser eficaz para dois indivíduos diferentes) e os próprios pacientes nunca são os mesmos – mudam ao longo do tempo. Isto significa que a medicina do bom treinador presume que não há uma solução inequívoca, não há um antídoto, uma kryptonita que deflagre as fraquezas do jogo e, assim, nos faça senhores dele. Treinadores e treinadoras, como pacientes que também são, devem perceber que o mundo é movimento, que tudo flui, razão pela qual diferentes trabalhos precisam de diferentes respostas e diferentes atletas precisam ser tratados na sua singularidade. Você haverá de convir que nada disso é fácil, há personalidades absolutamente diferentes em jogo, motivo por que treinadores e treinadoras também precisam de treinamento contínuo, formal ou não, para que saibam adotar, se necessário, uma postura camaleônica, pois o treinador que evita mudar ao longo do tempo se torna previsível – suas equipes idem. E a previsibilidade, como você bem sabe, não é dos mais eficazes medicamentos para o jogo.
Assim como a estética do paciente não deve ser o fim último de um bom médico (pois a boa estética não necessariamente significa boa saúde), a beleza de uma equipe não deve ser um fim em si mesmo para treinadores e treinadoras, pois a beleza do corpo pode esconder as agruras da alma, e a beleza de uma equipe também pode esconder sua real situação. Isso não significa, veja bem, um tratado sobre a feiura: significa que a medicina do bom treinador visa promover a saúde de um determinado jogar, e quanto mais saudável, mais belo tende a ser. Tendo em vista um dado modelo de jogo e suas variações estruturais, parece razoável afirmar que a beleza não está em um dado modelo apenas, mas está (potencialmente) em todos, e irá se expressar quanto melhor estiver o espírito de um determinado modo de se jogar.
Se o modelo de jogo é a medicação essencial e as estruturas são subjacentes a ele, perceba que a medicina do bom treinador pode dar um passo à frente, pensando em mais mudanças estruturais a cada jogo (linha de cinco, linha de quatro, losangos, triângulos…) desde que o modelo esteja suficientemente consolidado. As mudanças de estrutura podem ser amparadas pelo modelo. Já o inverso não é verdadeiro.
Mas sobre isso conversamos outro dia.

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Futebol é festa, alegria e deve ser com bastante respeito

É desagradável observar que cada vez mais tem se advertido as comemorações dos gols, por irreverentes e inofensivas que sejam. Para os olhos de uma maioria. Ao mesmo tempo, o torcedor na arquibancada tem uma atuação cada vez mais limitada, quer seja por questões legais ou por segurança.

Sinal da mudança dos tempos. Sim, muita coisa mudou. Esporte é espetáculo a ser ofertado e consumido. Dentro de uma relação comercial, há inúmeros regulamentos a serem seguidos, legais e de segurança. Ao longo dos anos, o esporte de rendimento – especificamente o futebol – tornou-se muito caro. Paralelamente, as opções de lazer também, e o futebol concorre com elas. Para atrair mais torcedores (cada vez mais tratados como consumidores), os estádios precisam possuir instalações à altura de cativá-los, bem como apresentar um jogo atraente. Para isso, os investimentos em futebolistas, comissões técnicas, categorias de base, recursos humanos, inteligência e centros de treinamento também são muito urgentes. Com base nesta relação e organização, o torcedor não pode ficar em pé (pelo menos o que sugere o regulamento dos estádios), levar faixas e instrumentos musicais (salvo com base em recursos jurídicos), manifestar-se e, em casos extremos, apoiar a sua equipe quando joga como visitante.

Ora, segundo Elias & Dunning (1986), o esporte é um dos poucos lugares em que uma pessoa pode expressar suas emoções sem ser julgado. Há hoje muito mais competitividade e briga muitas vezes sem ética, pelo topo. O “meu” é o melhor, em detrimento – e eliminação – do “seu”, tornou-se discurso. Muito distinto é pensar que a coexistência, a compreensão dos altos e baixos de uma equipe e de um profissional, são saudáveis.

Em 1993 esta comemoração de Viola foi desrespeitosa e rendeu polêmica. Atualmente seria inaceitável e renderia punição. (foto: esportes.R7.com)

 

Paralelamente, a sociedade também mudou. São inúmeros os motivos para esta mudança, mas as décadas de impunidade, corrupção, desgoverno, desrespeito ao próximo e ao serviço público explicam em parte reações exacerbadas e a intolerância. O que antes era brincadeira, tornou-se exagero, capaz de explicar o engessamento do torcedor nas bancadas e as comemorações dos futebolistas. Muitas vezes, o simples fato de o atleta da outra equipe celebrar um gol, dentro dos limites da decência e respeito, é razão suficiente para que muitas pessoas reajam de maneira agressiva: a felicidade do próximo é inaceitável. 

Com tudo isso, é preciso fazer uma reflexão sobre o que se quer como povo e nação e onde se quer chegar. A atuação em coibir as comemorações dos gols e a manifestação da cultura do torcedor é, em boa parte, culpa da própria sociedade. A intolerância e desrespeito tomou proporções tão extremas a ponto de precisarem tomar medidas como estas no futebol, que vão completamente contra o espírito e essência do esporte. Diferente de simplesmente ter-se a consciência de que um dia se perde e no outro se ganha, de que amanhã é outro dia, se aprende com ele e de que a vida segue.

 

Referência:
ELIAS, Nobert e DUNNING, Erich. A Busca da Excitação. Lisboa: Difel, 1986

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Neymar não pediu desculpa

Seja pelo alcance, pelo carisma, pelo potencial midiático ou pelo perfil controverso, o fato é que Neymar repercute. Absolutamente tudo que ele faz atinge um número gigantesco de pessoas de perfis totalmente diferentes. A despeito de falar quase exclusivamente apenas com sua bolha, o atacante do Paris Saint-Germain se comunica com um público bem mais amplo e mais diverso. Por isso, não foi nada surpreendente o resultado da campanha publicitária da Gillette que foi veiculada no último domingo (29). No texto, o camisa 10 reconhece o abalo de imagem sofrido com a Copa do Mundo de 2018 – o Brasil foi eliminado pela Bélgica nas quartas de final e viu seu principal jogador virar chacota mundial pelo estilo histriônico e pelo excesso de simulações. Neymar só não pediu desculpa.
O vídeo de 1min30 em que diz coisas como “a real é que eu sofro dentro de campo”, “eu ainda não aprendi a te decepcionar”, “eu ainda não aprendi a me frustrar” e “dentro de mim ainda existe um menino” esbarra em um problema basilar: é impossível estabelecer qualquer tipo de conexão com um material que não é minimamente crível e não conversa sequer com o nicho. E isso acontece apenas por “ser publicidade”, “ler um texto criado por outro” ou “não mostrar a cara em um momento tão relevante”. Foi o segundo pronunciamento de Neymar depois da Copa do Mundo de 2018, e o primeiro aconteceu em um post na rede social Instagram – apenas texto, sem qualquer oportunidade de olho no olho.
Do ponto de vista da Gillette, a estratégia tem muitos acertos. Em primeiro lugar, a marca conseguiu pegar carona no alcance de Neymar e fez sua mensagem viralizar. Segundo o jornal “O Globo”, o atacante cobrou R$ 1 milhão pela campanha, que foi veiculada no intervalo comercial do dominical “Fantástico” (o custo da inserção não está nessa conta). No entanto, o maior ativo que ele ofereceu ao processo foi a distribuição: o material foi divulgado nos canais do próprio jogador e amealhou mais de 1,2 milhão de visualizações nas primeiras 24 horas (com mais reviews negativos do que positivos, é verdade, mas até essa rejeição foi mais direcionada ao atleta do que à marca).
Para Neymar, a comunicação também é uma bola de segurança. O jogador já havia recorrido anteriormente a comerciais para falar sobre suas questões comportamentais. Em 2011, quando ele tinha 19 anos, uma campanha da Nextel o apresentou como um personagem controverso, mas em um processo de evolução pessoal. Aquele contexto era mais favorável ao atacante, diga-se: o material tinha versões similares com outras personalidades, o que personalizava menos a discussão, e ainda se tratava de fato de um garoto. Agora, aos 26 anos e depois de duas Copas no currículo, é bem mais difícil para ele esse apelo à imaturidade como se fosse elemento de empatia e não de crítica.
A campanha também não é novidade do ponto de vista de gestão de imagem de celebridades. Ronaldo, quando teve questões na carreira, também recorreu ao “Fantástico” para dar sua versão. A diferença nada sutil é que o Fenômeno fez seus discursos em entrevistas, ainda que tenha combinado previamente abordagens, roteiros e reações. Não é simplesmente o espaço que determina a autenticidade do material – a publicidade pode passar uma mensagem verdadeira e o jornalismo mal feito pode ser maléfico para a gestão de imagem.
Mas Neymar não é como seus antecessores, que usavam a mídia como intermediário para conversar com o público. O atacante do PSG controla seus próprios canais e seu discurso, o que simboliza uma geração diferente e também ajuda a explicar por que ele tem uma relação bem menos próxima com canais de comunicação. As mensagens partem da bolha e conversam com a bolha, ainda que reverberem no lado externo. E o que mais acontece com esse conteúdo, aliás, é que as críticas mais severas sobre modus operandi partam justamente de quem está fora da redoma.
O que chama atenção no comercial da Gillette é que a mensagem não funciona nem com a bolha. É um conteúdo que não conversa com quem está a milhas dos “tóis” e dos “parças”, mas tampouco funciona para o séquito do atacante. Ainda que a companhia tenha alegado que o material é fruto de pesquisa, o tom é absolutamente errado em qualquer ótica.
Chico Buarque sugeriu certa vez a criação de um ministério do “vai dar m…”. A função da pasta seria basicamente a de apresentar ao presidente da República uma visão mais comedida e discutir possíveis problemas de cada decisão. Se houvesse um consenso para cortar pela metade o salário mínimo, por exemplo, caberia a esse núcleo levantar os argumentos contrários e avisar que “isso vai dar m…”. O jornalista André Barcinski fez sugestão similar há alguns anos, quando disse que quase todos os problemas em redes sociais seriam resolvidos com um botão “tem certeza?” antes da publicação de qualquer conteúdo. É impressionante que ninguém tenha feito esse papel com Neymar.
Dias antes de o comercial ter sido veiculado, a rede social Facebook desmontou um esquema de fake news que envolvia páginas e perfis falsos no Brasil. Desabilitou a rede que até então era supostamente ligada ao MBL (Movimento Brasil Livre), e o grupo, além de ter assumido a autoria do conteúdo, resolveu protestar contra o que classificou como censura. Horas depois disso, a rede “O Boticário” publicou em seus canais uma campanha sobre o Dia dos Pais e foi acusado por internautas de cometer “racismo reverso” por ter retratado uma família em que todos os integrantes eram negros.
O que esses dois casos têm a ver com Neymar? Em ambos, o fato ganhou menos repercussão do que a percepção. Não há nada de novo com as fake news; novidade é você poder se fechar em uma bolha e consumir apenas os temas do seu agrado e as versões com as quais você concorda, independentemente do assunto. A segmentação de canais possibilita que os militantes de esquerda tenham pouco ou nenhum contato com as mensagens da extrema direita, e vice-versa.
Como consequência, as redes sociais intensificaram a produção de conteúdo segmentado. Há uma clareza maior sobre canais, públicos e que tipo de mensagem funciona com cada grupo. É nesse aspecto que a mensagem de Neymar falha tanto: os clichês enfileirados no comercial da Gillette simplesmente não conversam com nenhum grupo. A quem se destina aquela mensagem?
É nítido o trabalho que o estafe de Neymar tem feito depois da Copa para reconstruir a imagem do atacante. Contudo, o que mais chama atenção nesse projeto é a falta de um norte: até aqui, o atacante parece atirar em diferentes direções: alterna estratégias inovadoras com ações ultrapassadas, não constrói conteúdos eficientes com nenhum grupo e não cria uma figura empática independentemente do receptor da mensagem.
A reconstrução de imagem de Neymar pode até funcionar no médio ou no longo prazo. Enquanto ele seguir totalmente despreocupado com seus interlocutores, porém, esse processo vai ser muito mais complicado e tortuoso.

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Jogar bem

“Como a equipe irá jogar?”
As possibilidades são muitas e esta é uma questão fundamental, que cabe (salvo algumas exceções[1]) ao treinador definir, ainda que em termos gerais, no menor tempo possível.
Quais serão os padrões (em termos coletivos, num nível macro) que a equipe deverá apresentar quando estiver atacando, defendendo e realizando as transições?
Ser mais defensivo ou ofensivo (enquanto padrão)?
Controlar a bola ou o espaço (enquanto padrão)?
Marcar em bloco alto, médio ou baixo (enquanto padrão)?
Marcação zona, mista ou individual (enquanto padrão)?
Atacar ou Contra-Atacar (enquanto padrão)?
Ataques rápidos ou ataques continuados (enquanto padrão)?
Particularmente, penso não existir certo ou errado e sim opções e escolhas, que devem ser coerentes e ajustadas às características do contexto e fundamentalmente dos jogadores, com o que um conjunto de indivíduos pode realmente produzir.
Assim, em minha opinião, o “jogar bem” está intimamente relacionado à equipe conseguir colocar em prática uma ideia de jogo que seja capaz de potencializar e expressar o talento e as qualidades dos jogadores, ao mesmo tempo que esconda suas debilidades e fragilidades, fazendo a equipe ser forte e competitiva.

À esquerda o Leicester City de Claudio Ranieri, campeão da temporada 2015/2016 jogando um futebol direto, com bolas longas, mais defensivo e de ataques rápidos/contra-ataque, e à direita o Manchester City de Guardiola, campeão da temporada 2017/2018 do mesmo campeonato inglês, com o famoso estilo de jogo de Pep Guardiola. “Futebóis” diferentes no estilo e na estética, mas ambos de qualidade. Foto: Reprodução Web.

 

Portanto, o treinador deve conhecer de futebol e suas diferentes e variadas possibilidades, para depois, de um enquadramento/”diagnóstico” inicial, tomar partido pela ideia que mais se ajusta às necessidades e possibilidades da sua equipe.

Isso, se pretender a obtenção de resultados, é claro.

[1]Em alguns clubes, em função da sua história e cultura, o estilo de jogo (em níveis gerais) não se altera.

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Entre o registro e o jogo

Bom dia, e bem-vindos ao nosso Entre o Direito e o Esporte”! Hoje vamos fechar o mês de julho. Essa semana nós vamos conversar sobre o “recomeço” que é chegar em um novo time. Nessa coluna a gente vai ver o que fica “entre o registro e o jogo” nesse “passo-a-passo” das transferências no futebol profissional brasileiro.
E, para deixar tudo mais tranquilo, esse é o mapa de hoje: vamos começar dando uma olhada nas regras para o registro do atleta profissional; depois vamos ver alguns desafios na hora desse registro; e, depois, fechamos com… aquele tal do BID!
Bora lá?
A gente já viu que depois da negociação, tudo que vai para o papel tem que ser registrado. E por que isso? Fácil! Se não registrar o jogador, ele não pode jogar. Só que, como tudo no direito desportivo, aqui também tem umas regrinhas que é bom a gente saber – são as regras de registro.
É tipo quando a gente quer abrir uma conta no banco, sabe? Pode ter o dinheiro na mão e o que for… nada vale se não tiver um papel assinado que foi registrado lá no sistema que vai te gerar um número, te gerar uma conta, e te gerar um cartão. E tudo isso segue um “rito”, um “procedimento”… um caminho escrito por alguém em algum lugar em alguma hora.
E, no nosso caso, o caminho é o seguinte: aquele jogador que vai para o seu clube tem que ser registrado na Federação local (que faz parte da CBF, como aqui em São Paulo é o caso da Federação Paulista de Futebol) da qual o seu clube é filiado (tipo o Santos Futebol Clube aqui). Esse jogador tem que ser registrado para poder jogar qualquer partida oficial!
Simples assim? Quase lá! Pega o caso do Santos, imagina que o clube vai registrar um jogador brasileiro transferido de outro clube brasileiro. O “time da baixada” vai solicitar o registro do atleta na FPF. Essa solicitação tem que ter um monte de documentos. Documentos que vão desde o contrato de trabalho (CEDT) até a carteira de trabalho (CTPS). Isso sem contar todas as taxas (sim, trazer um jogador é caro) da Confederação Brasileira de Futebol, da Federação Paulista de Futebol (nesse caso) e da FAAP (Federação das Associações de Atletas Profissionais).
Esse registro é “efetivado” (começa) com a inclusão do contrato de trabalho no Sistema de Registro da CBF. E lá tudo isso vai ser analisado, e a Diretoria de Registro e Transferência pode pedir a complementação da documentação (“ops, faltou o exame médico”) e/ou a retificação de informações (“é Barracco com dois ‘c’”). E, acredite, isso acontece!
Agora, beleza, fez o registro e parou aí… né? Então é fácil, mesmo! Calma lá, como a gente sabe, tem sempre um desafio aqui e ali no caminho. Um dos documentos importantes é o tal do “passaporte desportivo” (PD) do atleta – lá que tem tudo, inclusive onde e por quanto tempo aquele atleta jogou. Esse PD tem que ser atualizado pelo clube novo… e, ah, aí tem chão!
Imagina que o jogador já tinha sido registrado por 3 clubes na mesma temporada, pode? Não e aí “dá ruim”. Imagina que o jogador já participou de competições nacionais por 2 outros clubes, pode? Não e aí dá ruim. Imagina que ninguém percebeu isso e “sem querer” o jogador foi inscrito e jogou uma partida pelo seu clube, pode? Não e aí dá ruim – e nesse caso muito ruim.
Respira, respira… nada disso aconteceu e está tudo certo, calma! Deu tudo certo, o pedido foi encaminhado, e não teve nenhuma surpresa… até que o seu rival disse que fechou com o mesmo jogador e “subiu” o contrato dele no sistema antes! É… deu chapéu e o que vale é o pedido que foi recebido em primeiro lugar (desde que esteja tudo em ordem).
Beleza, isso também não aconteceu. Só que o jogador (brasileiro) vinha de fora (Portugal?). É… então, precisa de mais um documento! O Certificado Internacional de Transferência ou CIT. Esse documento tem que ser recebido pela CBF para que o registro do jogador esteja em ordem – e isso pode demorar… bastante.
Mas… tranquilo! Veio o CTI e está tudo certo. Só que o jogador não é brasileiro no fim das contas! E aí, é só mandar os documentos de sempre e tudo certo? Pois é, não. Aí entra a “história do visto de trabalho” (é… precisa de uma “permissão” do nosso Governo) e de alguns outros documentos (como o RNE – o Registro Nacional de Estrangeiros, que é o R.G. dos “gringos brasileiros”). Se tiver tudo isso em ordem, está tudo certo!
Tudo certo? Quer dizer que, finalmente, aquele jogador vai poder estrear pelo meu time?! Quase! Ainda falta um último detalhe… aquele tal do BID!
O Boletim Informativo Diário da Confederação Brasileira de Futebol é como se fosse um “jornal de classificados”. Sabe? Lá a gente vê todas as transferências (na verdade, registros) de todos os clubes brasileiros. E só quando a carinha daquele jogador aparece lá é que ele pode jogar pelo seu time!

Fonte: BID/CBF

Como a gente viu todo esse mês, tem um monte de coisa entre a primeira notícia na internet de que o seu clube quer trazer aquele jogador do outro time e a estreia daquele jogador pelo seu time. E esse “monte de coisa” está “Entre o Direito e o Esporte”.
Por hoje é isso, pessoal! Deixo um bom final de semana para todos e convido vocês a continuar aqui comigo na semana que vem quando vamos começar um novo mês. Um novo mês em que vamos conversar sobre a Justiça Desportiva. Até sexta-feira! Enquanto isso, é  só falar comigo por aqui, pelo meu LinkedIn ou pelo meu Twitter. Abraço e fui!

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Tempo de trabalho e organização ofensiva

O futebol brasileiro retornou após a pausa da Copa do Mundo e não consegui ver muita coisa diferente do que vinha acontecendo antes. É claro que eu não esperava ver, por exemplo, um jogo de posição executado brilhantemente como o do Barcelona de Guardiola. Até porque ideias complexas levam anos para serem bem entendidas e bem executadas. Porém, no fundo eu tinha uma esperança de ver algo mais elaborado, principalmente em termos de organização ofensiva que é hoje o maior desafio dos técnicos brasileiros. Até aqui me decepcionei.
Tenho em mente que pela lógica básica do jogo de futebol é muito mais fácil defender do que atacar. Para simplificar, uma equipe pode ter quase cem ações ofensivas e terminar o jogo sem marcar nenhum gol, ou no máximo marcar dois, três gols. Ou seja, a defesa se sobressai quase sempre em mais de noventa por cento das oportunidades. Por essa evidente dificuldade, os conceitos ofensivos devem ser muito bem trabalhados. Mas aqui no Brasil ainda vemos muitos treinadores usarem o fraco e simples expediente de ‘deixar o talento decidir’.
Com mais de um mês sem jogos oficiais, com os jogadores mentalmente frescos, era a oportunidade ideal dos treinadores buscarem evoluir no jogo com a posse de bola. Reconheço que melhoramos aqui no cenário nacional em conceitos defensivos. Hoje no Brasil as equipes marcam de maneira muito mais compacta, organizada e conceitual. Mas precisamos evoluir no que mais importa, que é no momento que nosso time tem a posse de bola.
O coletivo deve potencializar o indivíduo. Para atacar bem é necessário ter boas ideias. Há diferentes formas de atacar no futebol: ataque direto, ataque posicional, contra-ataque…em todos eles há conceitos por trás: ultrapassagem, profundidade, amplitude, apoio, etc. Passou da hora de os nossos profissionais mostrarem mais resultados ofensivos. Capacidade e conhecimento metodológico eles têm. O próximo passo é a operacionalização. O pretexto de que não houve tempo de trabalho não cola dessa vez.
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O futebol entre o saber, o não-saber e o saber que não se sabe

Fonte: Iniesta Surrounded

 

“Só sei que nada sei”
Sócrates

 
Muito se falou, durante o último mês, sobre a importância da assim chamada dimensão mental para futebolistas em geral, especialmente no alto rendimento. Por algum motivo (talvez pela persuasiva aparência do chamado moderno), parece haver aqui uma leve camada de ineditismo, como se a relevância do treinamento da mente fosse uma descoberta recente (o que soa assustador, aliás). Da mesma forma, percebo um viés razoavelmente reducionista neste discurso. Por isso, proponho aqui um outro debate, mais humanizado. Vejamos.
Por uma série de razões (alguma delas pretendo tratar em breve), temos uma tendência a organizar nosso conhecimento por áreas, dividi-las em caixas muito bem delimitadas. No futebol, parece razoável afirmar que, em linhas gerais, nos acostumamos a quatro grandes caixas: tática, técnica, física e mental (incluo aqui os respectivos sinônimos). Os leitores e leitoras concordarão comigo que avançamos consideravelmente no entendimento das três primeiras caixas, mas talvez não exatamente na última. Duas breves justificativas seriam: I) o rendimento é utilitário, de modo que um determinado saber será valorizado na mesma medida da sua ‘utilidade’, pensando no resultado; e II) o futebol ainda convive com os resquícios da ruptura mente/corpo que, neste caso, enfatiza o segundo em detrimento do primeiro.
Aqui, temos um problema: ainda que esgotemos as possibilidades epistemológicas de cada uma das áreas, poucos serão os progressos se elas não dialogarem entre si. Quando se fala que é preciso trabalhar apenas a dimensão mental, interpreto que é preciso trabalhar em uma das caixas, a parte que falta. Mas talvez o ponto não esteja ali, pois para além de cada parte, estão as relações entre elas. É bem verdade que essas relações, possivelmente, escapem ao conhecimento humano (uma vez que a racionalidade é limitada). Mas, ao mesmo tempo,, enfatizar uma das áreas de um ser, pouco acrescenta à sua percepção, porque ele só existe integrado, uno.
É por isso que defendo, ao invés de somente uma preparação mental, mergulharmos em uma preparação humana. Em um futuro próximo, imagino clubes e federações investindo fortemente na contratação de mais e mais psicólogos. Veja bem, é evidente que psicólogos devem ser parte essencial do corpo técnico de qualquer clube que trabalhe com formação/rendimento, e quaisquer atletas, desde a mais tenra idade, em muito se beneficiariam de um bom acompanhamento psicoterápico (ainda que muitos o recusem, baseados em uma virilidade questionável). Mas nosso problema não se resolve somente contratando profissionais da área. Há mais trabalho a ser feito.
Este trabalho está personificado em Sócrates, que promoveu uma verdadeira revolução moral em Atenas quando instituiu o seu método de investigação da realidade. Em um período dominado pelos sofistas – os artistas da retórica, que julgavam ser possível ensinar o que não se sabe -, o método socrático não parte da retórica, mas da dialética, do diálogo. Ao invés de responder, Sócrates pergunta. Assim como Fenarete, mãe do filósofo, fora uma parteira de corpos, Sócrates desejava ser um parteiro de almas. Através das perguntas certas, com um método rigoroso (exortação, indagação, ironia, maiêutica) ele permite ao interlocutor descobrir a verdade por si próprio, a partir da contemplação interior. Assim como quem dá à luz é a parturiente (e não o obstetra), quem gera a verdade é o próprio sujeito, mais ninguém.
O grande ponto, leitores e leitoras, é aqui temos uma subversão absoluta do locus da verdade. A partir daqui, a verdade não mais estará no objeto, mas sim no próprio sujeito, razão pela qual todas as tentativas de imposição de um dado conhecimento são vistas não apenas como inverídicas (pois o sábio é aquele que sabe que não sabe), como também violentas, pois castram, em absoluto, a autonomia do sujeito. A função do educador (leia-se, do treinador) seria outra: seria induzir o educando (atleta) a descobrir as próprias soluções, seja através do diálogo, seja através de cada uma das sessões de treino, por exemplo. Enquanto o atleta não for convidado à visitação de si, dentro e fora do jogo, ele ainda será vítima das próprias amarras e será, no jogo, apenas uma ou mais partes de si mesmo, não será inteiro. Várias caixas preenchidas não formam um ser integrado.
Isso significa que talvez seja urgente repensar o lugar da pergunta no processo de treino e de jogo, ao longo do tempo. Processos que se alimentam das perguntas (ao invés de respostas pasteurizadas) podem ser o combustível que falta para que o atleta, na sua inteireza, investigue as soluções por si mesmo, seja um exímio resolvedor de problemas, através das suas próprias ferramentas (que são únicas e complementares às de jogadores e treinadores). Talvez este processo nos permita avançar em uma das nossas grandes platitudes: formar indivíduos, ao invés de meros atletas. Nós, treinadores, devemos ser artistas dos problemas. Os jogadores são os artistas das resoluções.
Assim, caminhamos para uma formação muito mais humanizada, que dá ao humano o que lhe pertence, e que lhe permita ser mais do que é. Atletas não são, atletas estão: mudam ao longo do tempo, assim como todos nós e as próprias coisas. Cabe a nós decidirmos se seremos espectadores passivos da mudança, meros sofistas da bola, ou se seremos parteiros, que dão aos atletas, ao invés de meras instruções, o direito de gerarem a vida e o jogo por si próprios, o que não apenas não invalida, como potencializa os resultados em campo.
Me parece um caminho irresistível.