Segundo Anthony Giddens, no seu livro As Consequências da Modernidade, o que caracteriza o nosso tempo é a sua descontinuidade, em relação às épocas anteriores. As transformações na tecnociência, na filosofia, nos modos de vida, nas mentalidades; a globalização do economicismo neo-liberal, bem expressa numa alta competição sem freios; confundir felicidade com a posse exclusiva de bens materiais: não deixam a este respeito um rasto de dúvida.
No entanto, segundo Rawls, uma das “experiências fundamentais” da modernidade é a existência do fact of pluralism, ou seja, a existência de uma incomensurável pluralidade de valores, que reduz a cinzas qualquer unicidade normativa. Por isso, Habermas faz resultar a moral das condições e pressupostos da deliberação democrática, como se nela ressaltassem, límpidas, a dimensão moral, a ética e a pragmática, quero eu dizer: a complementaridade entre o direito e a moral.
Em Habermas, substitui-se o “imperativo categórico” por formas de comunicação e argumentação. E assim, melhor do que a minha proclamação de leis universais, devo antes submetê-las ao juízo crítico dos demais, para diálogo, discussão e aprovação final. Mas uma pergunta se levanta, imediatamente: e quem detém a palavra e nos dá garantias do bom uso da palavra? A realidade deve considerar-se sob a óptica de quatro níveis ou ordens distintos: a ordem das finalidades, a ordem dos comportamentos, a ordem jurídico-política e a ordem tecnocientífica. A competência tecnocientífica é a mais visível, embora as diferenças culturais e linguísticas. Nem um idealismo exaltante ou os preconceitos sentimentais escondem a falta de rigor, o charlatanismo, o desconhecimento dos temas em questão. Da ordem jurídico-político-organizacional ressalta a organização que dá força e sentido a quem a representa.
A qualidade do estrutural reflecte-se na qualidade das condutas individuais. Mas o comportamento também depende do “homem de bem” que se é. A lição diária dos factos ensina que, sem um rijo arcaboiço ético, há objectivos inadiáveis que não se alcançam. É preciso distinguir o bem do mal, para que o desejo do “bem comum” possa emergir de tudo o que se faz. Na ordem das finalidades, deve luzir, de facto, o “bem comum”, preparado e materializado pelo homem ao serviço do homem, para que todos os homens possam ser actores da sua história e da própria História.
Uma análise ontológica, mesmo que episódica, da prática desportiva diz-nos que o ser humano é um ser-de-relação. Ou em equipa, ou individualmente, o desportista normalmemte entra em competição, quero eu dizer: precisa do seu semelhante. E, se dele precisa, há-de respeitá-lo, ou seja, não pode fazer dele um instrumento de qualquer um dos seus objectivos. Há, aqui, um jogo de co-responsabilidade: no desporto, os adversários (e não só os companheiros da mesma equipa) são também, solidariamente, responsáveis uns pelos outros. E esta responsabilidade não resulta de uma escolha, de uma preferência individuais, porque sem ela não há desporto. Daqui se infere sem dificuldade que, no desporto (como em Levinas), a ética é a filosofia primeira. E, a este ângulo de visão, o praticante exemplar surge como alguém onde brilham excepcionais qualidades físico-motoras e psicológicas, específicas do desporto de alto nível, e simultaneamente admiráveis qualidades éticas.
A vontade de vencer é inerente à prática desportiva, mas o praticante, como ser-de-relação, há-de saber vencer e perder, que o mesmo é dizer: há-de saber respeitar e respeitar-se, como vencedor e como vencido, dado que a motricidade humana tem como objectivo primeiro o desenvolvimento de todos e de cada um dos seres humanos. O aprumo e a lealdade, no desporto, não podem significar, hoje, ausência de competição, mas recusa à instrumentalização, ao serviço da competição sórdida do economicismo triunfante, que alimenta, sem mérito nem vergonha, o “bellum omnium contra omnes” (guerra de todos contra todos). A competição, no desporto, é uma forma de diálogo fraterno, deverá ser, por isso, uma expressão corporal do primado da dimensão ético-política sobre a dimensão economicista. Assim, nasce a confiança mútua, que é indispensável à competição desportiva. “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti” poderá ser a regra de ouro a presidir ao comportamento dos atletas, dos técnicos (sem esquecer os técnicos de saúde) e dos dirigentes.
Mas há dois perigos que rondam o sistema desportivo: a barbárie e o angelismo. A barbárie, quando os atletas deixam de ser pessoas/cidadãos e passam a ser governados pelo “despotismo iluminado” de dirigentes corruptos ou mal informados. O respeito pelos atletas não pode provir tão-só de “ordens superiores”, ou da ordem jurídica estabelecida, mas de um imperativo moral. No desporto, há o primado absoluto da pessoa sobre a lei. O angelismo acontece, quando se pensa que uma lei, um manifesto, um discurso, as conclusões de um congresso resolvem, por si sós, uma situação concreta. O verdadeiro motor da acção, da motricidade humana, reside na consciência reflexiva e na vontade livre e responsável das pessoas (neste caso, dos praticantes). Não faltam tratados, congressos, publicações e todo um galante florilégio de conclusões sobre a ética no desporto e… a corrupção e a violência permanecem. Porquê? Entre outros motivos, porque não se preparam, pedagogicamente, os alunos e os atletas a serem agentes morais, para além de praticantes de admiráveis qualidades físicas e técnicas. Enganam-se os que pensam que os atletas são singelos títeres, nas mãos dos dirigentes e dos técnicos, ou das leis sem espírito (lembram-se do Espírito das Leis, de Montesquieu?).
O Homo Sapiens-Sapiens é um ser que sabe que sabe e sente, por isso, a necessidade imperiosa de criticar, isto é, de saber, em profundidade, quem é, onde está e para onde vai. Posto isto, podemos adiantar que não é o desporto o novo ópio do povo, o ópio do povo é o desporto institucionalizado pelo neoliberalismo dominante, que demasiadas vezes reduz as pessoas a coisas e os sujeitos a objectos. Já há 96 anos, Jaime Cortesão alertava, em A Águia (Outubro de 1912) que “não é o regime, nem a agricultura, nem a indústria, nem as finanças que verdadeiramente estão em crise – o que em Portugal, há alguns séculos, está em crise é o Português”. Enfim, há que preparar também as pessoas para que as estruturas se transformem.
Posto isto, propõe-se:
1. Que o desporto escolar inclua, no conteúdo das suas matérias, não a gramática epistemológica das ciências empírico-formais, mas a das ciências hermenêutico-humanas, onde toda a objectualização é ilegítima. E, por isso, onde uma cultura anti-dualista e anti-colonialista e anti-imperialista seja essencial e fundante.
2. Que o ensino universitário do desporto assuma, semsubterfúgios, um paradigma decorrente das ciências hermenêutico-humanas e onde o agente do desporto, como ser-de-relação, se estude como
factor de desenvolvimento da pessoa, do grupo, da sociedade.
3. Que a teoria e metodologia do treino não esqueça nunca os aspectos éticos e políticos da prática desportiva. Sem ética, o espectáculo desportivo pode transformar-se num espaço de violência e de corrupção, dada a alta competição em que decorre. Quando o treinador Jorge Jesus sustenta que “o fair-play é uma treta”, acentua que a ética movimenta-se com dificuldade num desporto que reproduz e multiplica as taras do economicismo triunfante.
4. Que se reconheça, no atleta, o sujeito ou a pessoa, com um valor incomensurável, em relação ao valor de todos os campeonatos e taçasdas federações internacionais ou dos Jogos Olímpicos. É o praticante a origem e o fundamento de toda a significação do Desporto. A expressão “jogo de vida ou de morte” deverá erradicar-se do vocabulário desportivo. A morte do ser humano é a morte do próprio Desporto.
E. Levinas, no seu Autrement qu’être ou au-delà de l’essence, acolhe com bons olhos a desconstrução do humanismo actual, pois este, ao rejeitar o Absoluto, “não é suficientemente humano”. Direi o mesmo do desporto actual que, ao articular-se absolutamente fora do sujeito, rouba ao praticante o estatuto de “primeira pessoa”, para transformá-lo em mera unidade intercambiável. A própria consciência reflexa não é mais, para os novos humanistas, do que o resultado do processo de interiorização de uma ordem que lhe é totalmente exterior. Só que o novo humanismo, ao diluir o ser humano num mundo onde a globalização neoliberal impera, põe o Desporto em questão. Este é um tema que nunca vi tratado pelas instâncias internacionais que se ocupam desta problemática. Falam tanto de ética desportiva, sem darem conta se ela é possível com as estruturas onde o próprio desporto assenta.
*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.
Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.
Esse texto foi mantido em seu formato original, escrito na língua portuguesa, de Portugal
Para interagir com o autor: manuelsergio@universidadedofutebol.com.br