Ainda como colunista semanal, no final de 2009, o Dr. Alcides Scaglia propôs que a detecção de potenciais jogadores inteligentes deve ser o grande objetivo num processo de avaliação de atletas. Nesta oportunidade, mencionou que atributos físicos e habilidade com bolas nos pés devem ser menos importantes que a capacidade de entendimento de jogo e de aprendizagem do padrão organizacional sistêmico dos jogos. A coluna desta semana apresentará breves informações sobre procedimentos de análise na captação de atletas, buscando contribuir com o esboço outrora proposto.
O sonho de se tornar jogador de futebol alimenta a vida de milhões de crianças e adolescentes do nosso país. Na busca do sonho, o primeiro passo de muitos é ser aprovado em uma peneira de um clube de futebol. É neste ambiente que, dia após dia, expressões costumeiras são ditas, ouvidas e propagadas (muitas vezes erroneamente) acerca das “peneiras”, dos “peneirados” e de quem as organiza.
“De mil, vira um!”
“Em vinte minutos dá pra ver se o jogador é bom!”
“Tenho olho clínico para observar jogador”
“Só pelo jeito de andar, dá pra ver que não leva jeito.”
“Ele é bom zagueiro, mas é muito baixo.”
“Jogador igual a você eu já tenho no elenco, então, pra você ficar, teria que ser melhor do que os que estão aqui.”
Com processos de captação devidamente elaborados e co-relacionados com uma boa formação, num futuro próximo, as frases poderão ser as seguintes:
“De mil, viram cinquenta!”
“Em cinco sessões de treino dá pra ver se o jogador é bom!”
“Tenho olho clínico para observar jogador, mas os olhares de mais alguns profissionais (outros técnicos, adjuntos, psicólogo) podem me auxiliar.”
“Anda todo desengonçado, mas joga bem”.
“Ele é bom zagueiro mesmo sendo baixo.”
“Jogador igual a você eu já tenho no elenco, então, te darei oportunidade para evoluir, pois você está chegando agora.”
Os procedimentos de análise têm uma estrutura semelhante, porém, possuem algumas especificações de acordo com as faixas etárias correspondentes a cada categoria, que estão subdivididas em: (1) Transição Esportiva, (2) final da Transição e inicio da Especialização e (3) Especialização.
Categorias de Transição Esportiva – 11 e 12 anos
No processo de avaliação desta faixa etária, não deve haver preocupação exclusiva com a definição de função dos jogadores, principalmente em ambiente formal. A estruturação de espaço no campo de aproximadamente 100m x 68m não permite uma boa aplicação de qualquer que seja a posição.
Quanto ao tempo de avaliação, deve-se permitir a realização de pelo menos seis sessões de treino, entre duas e três semanas, para possibilitar assimilação dos conteúdos vivenciados nos diferentes tipos de jogos. A análise das características do jogador deve compreender o potencial de execução de atitudes predominantemente defensivas, ofensivas ou ambas, pois, compreendendo as características do jogador (táticas, técnicas, físicas e emocionais), facilita posterior definição de suas regras de ação.
O predomínio de jogos deve ter dimensão e número de jogadores reduzidos. A relação com menos jogadores exige um menor nível de complexidade, o que facilita a interpretação e leitura de jogo dos praticantes.
Alguns jogos elaborados devem fugir significativamente a lógica do jogo de futebol. Para isso, retirada de alvos, aumento de alvos, utilização de perna/braço não dominantes, pontuação por número de passes, desarmes, são ferramentas que devem ser amplamente exploradas.
Alguns jogos elaborados devem assemelhar-se à lógica do jogo de futebol. É para tal prática que eles estão sendo avaliados.
A intervenção do treinador deve ser constante com o intuito de elevar a compreensão do jogo praticado. A ação centrada à bola é comportamento padrão desta faixa etária, logo, desconstruir um jogo anárquico é função do treinador.
Classificar e perceber a evolução da manifestação das Competências Essenciais (relação com a bola, estruturação do espaço e comunicação na ação) do jogo, pelo jogador, em ambientes não formais. Como destaque na análise destas competências, qualifica-se a eficiência do passe em situação de jogo, por ser fundamento predominante do futebol, o posicionamento sem bola em função das referências do jogo (alvo, tamanho de campo, bola, companheiros e adversários) além do acerto e da antecipação nas tomadas de decisão.
Após aprovação no processo seletivo, realizar inserção no grupo de jogadores, disponibilizando tempo hábil para adaptação. Uma reunião com os pais pode ser realizada para apresentação da filosofia de trabalho de clube.
Final da Transição Esportiva e início da Especialização – 13 e 14 anos
No processo de avaliação desta faixa etária, deve haver preocupação com o cumprimento de uma posição específica pelo jogador, sobretudo em ambiente formal. É necessário avaliar o nível de aplicação inicial de conteúdos ofensivos, defensivos e de transições.
Quanto ao tempo de avaliação, a realização de pelo menos oito sessões de treino, entre duas e três semanas, para permitir assimilação dos conteúdos.
A análise das características do jogador deve compreender o potencial de realização de mais de uma posição, identificando versatilidade. Caso não demonstre tais características, observar potencial de se tornar especialista da posição que desempenha.
Deve haver um equilíbrio de jogos com dimensão e jogadores reduzidos e em ambiente formal. Poucos jogos elaborados devem fugir significativamente a lógica do jogo de futebol. Alguns jogos elaborados devem assemelhar-se a lógica do jogo de futebol. Para isso, a estrutura gol a atacar e a defender deve ser mantida.
Alguns jogos elaborados devem ter relação com o Modelo de Jogo pretendido/praticado pelo treinador. A ideia de jogo do treinador deve estar presente em algumas atividades por meio de conteúdos tático-estratégicos ofensivos, defensivos e de transição relativos aos comportamentos de sua equipe.
A intervenção do treinador deve ser constante com o intuito de elevar a compreensão do jogo praticado e reduzida nas situações em ambiente formal para observar a transferência da aprendizagem.
Em relação às Competências Essenciais, a análise é equivalente à categoria anterior.
Após aprovação no processo seletivo, realizar inserção no grupo de jogadores, disponibilizando tempo hábil para adaptação. Uma entrevista com pais deve ser realizada para apresentação da filosofia de trabalho de clube, além de uma anamnese com membros da comissão técnica para identificar histórico de treino, lesões, hábitos alimentares e comportamentais.
Especialização – 15, 16 e 17 anos
Nesta faixa etária, o processo de avaliação deve observar quem é competente no exercício de uma posição.
Em relação ao tempo de avaliação, cinco sessões de treino, correspondente a uma semana, são suficientes para definir a aprovação do jogador e inserção no elenco.
Inicialmente, um questionário pode ser realizado com o intuito de descobrir em quais plataformas de jogo o avaliado já jogou e quais são as regras de ação que o mesmo entende como designadas a sua posição.
Ter o conhecimento teórico (intuitivo e/ou adquirido) de suas funções no jogo permitirá comparação com o desempenho circunscrito ao jogo.
No passo seguinte, caberá ao treinador formar diferentes equipes e solicitar regras de ação específicas para cada jogador. Com esta faixa etária, espera-se uma alta capacidade de interpretação e aplicação das informações da comissão técnica.
No jogo formal, conforme mencionado na faixa etária anterior, a qualidade das ações ofensivas, defensivas e de transiçõ
es também devem ser identificadas.
Jogos que forem realizados com dimensão e espaços reduzidos devem, posteriormente, ter suas regras transportadas para aplicação em ambiente formal de jogo. O ambiente formal é o predominante na realização das atividades.
Nenhum jogo elaborado deve fugir significativamente a lógica do jogo de futebol e todos os jogos aplicados devem ter relação direta com o Modelo de Jogo pretendido/praticado pelo treinador. Nesta faixa etária, ao menos quatro anos de formação já se passaram e bom desempenho de jogo prévio é imprescindível para aprovação no processo seletivo.
Cada sessão de treino pode ter como macro-objetivo os diferentes momentos de jogo, o que permitirá um mapeamento detalhado do nível de aplicação de conteúdos possuídos por cada jogador.
A abordagem e intervenção do treinador devem ser pontuais, principalmente quando as regras de ação desempenhadas forem diferentes das solicitadas pela comissão.
O tempo restante de formação para atletas aprovados nesta faixa etária é bastante reduzido, logo, ampla discussão interdisciplinar sobre um atleta que desperte interesse deve ser proposta para estimar seu potencial de formação integral, aliado ao perfil desejado pelo clube. Nesta discussão, devem participar psicóloga, nutricionista, fisiologista, treinadores e adjuntos, para comporem a decisão final e apresentarem o resultado à diretoria que, ao analisar o relatório do atleta avaliado, decide o investimento.
As populares “peneiras” precisam evoluir. Potenciais grandes jogadores de futebol se perdem no imenso território brasileiro devido à escassez de verdadeiros “olhos clínicos” para atletas inteligentes. Avaliar um atleta de 12 anos é diferente de avaliar um atleta com 16, já no final do período de formação. Trinta minutos de coletivo não pode ser a atividade proposta para ambos.
E, para finalizar, a obviedade e a certeza de que as melhores escolhas, lembrando que aliadas a uma boa formação, serão fundamentais para a sustentabilidade das categorias de base do clube. Foi assim com Sneijder, no Ajax, Cristiano Ronaldo, no Sporting, Neymar, no Santos, e Puyol, no Barcelona.
Por falar em Barcelona, dos atletas aprovados em avaliações do clube catalão (por seletivas, observações e captações na Espanha e em todo o mundo) e que passam a residir no La Masía, 10% debutam na equipe principal. Equipe que decidirá o título da Uefa Champions League com um número significativo de jogadores “pratas da casa”.
É a prova que de 1000, “viram” mais que um!
Para interagir com o autor: eduardo@universidadedofutebol.com.br