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Das literaturas sobre futebol

Cinco leituras, todas ótimas. Mas onde mais está o futebol na literatura? (Divulgação: Futebol Café)

 
Não foi uma, nem duas vezes: já posso contar nos dedos das duas mãos as vezes em que ouvi, apenas neste ano, uma observação que me parece bastante pertinente, ao mesmo tempo que alvissareira. O Brasil, há quem diga, ainda carece da produção de uma literatura mais ampla sobre futebol, especialmente do ponto de vista tático, e seria esta uma das razões que nos deixaram supostamente estagnados. Ou seja, precisaríamos produzir um material mais robusto, não exatamente herdeiro das literaturas estrangeiras, especialmente das ibéricas, mas sim baseado num olhar essencialmente brasileiro sobre o nosso próprio futebol.
É bem verdade que poderíamos interpretar este assunto de diversas formas, mas me satisfaço com uma: será que a suposta carência de uma literatura específica sobre o futebol brasileiro não seria fruto de uma igual carência de leituras? Veja bem, não digo que somos maus leitores, mas me pergunto se os ideais relativos ao nosso futebol, por muito tempo baseado em um empirismo incorrigível, não contribuíram para um olhar mais “prático” sobre o jogo, abrindo mão de uma reflexão teórica mais consistente. Não me admira que até hoje sustentemos o entediante debate entre boleiros e acadêmicos, por exemplo.
Em um outro texto, fiz uma citação do filósofo Arthur Schopenhauer, que retomo agora. Seu livro A Arte de Escrever é um primor para aqueles que desejam refletir sobre a natureza do ato de ler e de pensar. Schopenhauer faz uma crítica aos leitores compulsivos, uma vez que a leitura, segundo ele, é uma forma de se pensar não com a própria cabeça, mas com a cabeça de outrem, é uma forma de abdicar temporariamente do pensamento próprio em prol do pensamento alheio. Por isso, seria importante ler com parcimônia, pois a leitura excessiva seria uma forma de afrouxar os nossos músculos reflexivos, de modo que nossa capacidade de pensar por nós mesmos ficaria, no longo prazo, seriamente prejudicada.
Me parece evidente que o mesmo raciocínio também vale para o futebol, à sua maneira. Se, em algum dia, nos faltou algum tipo de leitura, isso não significa que agora devamos buscar o extremo oposto, e nos tornemos leitores tresloucados, que devoram conhecimento futebolístico, ainda que sem qualquer tipo de digestão e, especialmente, sem qualquer ajuste deste conhecimento à nossa própria realidade. Foi neste sentido a crítica que procurei tecer aqui, quando apontei que a idolatria que devotamos a um certo grupo de treinadores, especialmente estrangeiros, faz com que, na nossa prática, deixemos escapar uma parte de nós mesmos e nos tornemos uma espécie de dupla metade: metade do outro (que tentamos copiar) e metade de nós mesmos. É claro que essa conta não fecha.
É exatamente no desejo que tornar-se quem se é que faço meu apontamento literário: percebo que a minha geração está alimentando uma volúpia excessiva relativa às literaturas específicas sobre futebol. Via de regra, tenho a impressão que grande parte dos futuros treinadores e treinadoras estão lendo os mesmos livros, sobre os mesmos treinadores, nos mesmos círculos de debate, tecendo as mesmas críticas, nos mesmos espaços – sejam eles reais ou virtuais. Para além de meros leitores, desconfio que essa geração esteja formando mestres na arte de decorar biografias, esquemas, atletas e treinadores dos mais diversos clubes. Mas é disso que precisa o futebol?
Não, não é. São duas as críticas que podemos apontar aqui. A primeira: se nossos leitores e leitoras leem as mesmas coisas, sobre os mesmos assuntos, às vezes da mesma forma (acriticamente), é muito provável que todos e todas acabem por pensar de maneira muito semelhante. Este é um problema sério, pois reforça a monotonia ideológica que parece enevoar o futebol de tempos em tempos, expressa na ideia de que há uma única resposta, uma só melodia capaz de tocar a alma do jogo. A pluralidade de ideias parece desmanchar-se em nome de um único ideal, como se as próprias ideias estivessem globalizadas. Mas o jogo tem razões que escapam à racionalidade humana, ora. Se há um caminho que deve ser tomado, é exatamente o caminho contrário, do mosaico do pensar, do exercício da racionalidade própria, o que significa, portanto, que seria extremamente salutar se os novos treinadores e treinadoras não fossem submetidos aos mesmos estímulos, às mesmas leituras, mas fossem, portanto, protagonistas de leituras diferentes do mundo, de modo que o jogar de cada um fosse único, ao invés de um jogar pasteurizado, homogêneo.
A segunda crítica me ocorre das palavras do Professor Manuel Sergio, cuja contribuição é ouro puro. Para saber de futebol, é preciso saber mais do que apenas futebol. Quem só sabe de futebol, nem de futebol sabe. Para se saber de futebol, ao menos aos meus olhos, é preciso desvendar o humano, é preciso ter a coragem de mergulhar não apenas na luz, mas na escuridão da humanidade, claramente refletida na mais singular ação tático-técnica dentro de campo. É preciso e é saudável dedicar-se às mais diversas biografias de treinadores, mas não apenas a elas: também é preciso ler romance, é preciso ler poesia, é preciso ler filosofia. Para treinadores e treinadoras, também é preciso ler Rubem Alves, F. Scott Fitzgerald, Margaret Atwood, Machado de Assis, Fiodor Dostoievksi, Hermann Hesse, Cecília Meireles, George Orwell, Friedrich Nietzsche, é preciso ler os gregos, é preciso ler. É preciso porque nas grandes leituras, a despeito do gênero e dos autores, reside o humano que joga. Desvendar o jogo não necessariamente significa desvendar o humano que joga.
Mas desvendar o humano que joga é um passo enorme para o coração do jogo.
Talvez o passo que falta.

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O que a Fórmula 1 pode ensinar ao futebol do Brasil

O Brasil recebeu há alguns dias uma etapa da principal categoria do automobilismo mundial. Nos últimos anos ela tem sido um exemplo de como comunicar um produto, ao valorizar os bastidores e as entrelinhas do “circo” da fórmula um (F1). Tudo isso feito também dentro do nosso país.

Diálogos pelo rádio durante a corrida. Provas antigas. Construção de novos circuitos. Parada dos pilotos, ao vivo, com estrelas do passado a entrevistarem as atuais, em uma “resenha de boleiro” mas do esporte-motor. As polêmicas. O espírito esportivo. Estes são alguns exemplos de como a “Liberty Media”, grupo que há poucos anos assumiu a gestão da Fórmula 1, trabalha a comunicação da modalidade. Transformar os pilotos em superestrelas e trazê-los para mais perto do público. Humanizá-los. Como consequência, a imagem do evento melhora e se conecta com a torcida.

Não que esta conexão não exista no futebol do Brasil. Sim, há. No entanto, é preciso potencializar isso. Sem redundância, há bastante potencial para. Em primeiro lugar, os clubes, os campeonatos são donos de um produto que oferece um ‘banquete’ para este tipo de ação. Os futebolistas são funcionários de um clube, vivem um dia a dia de trabalho e são pessoas que possuem rotina, família, amigos e ídolos. Dentro e fora de campo. As pessoas querem saber destas relações porque isso as conecta com os protagonistas da paixão que possuem: o futebol, o clube. Em segundo lugar, este tipo de comunicação ajuda a posicionar o produto dentro de um mercado de entretenimento esportivo cuja concorrência cresce a cada dia, ou seja, colabora com o marketing (inserir um produto em um ‘mercado’ para ser adquirido/consumido). Por que a F1 resolveu inovar? Por que perdia torcedores, quer seja pela falta de competitividade (Schumacher, Alonso e Vettel por anos campeões consecutivos) e atratividade (burocrática e distante da torcida).

Como comparação, uma vez disseram isso (desculpas à ausência de referência ao autor desta máxima, mas realmente este colunista não se lembra) e faz todo o sentido: “A Disney não vende o Mickey Mouse, e sim os desenhos animados”. Ora, pela lógica, se o Mickey é vendido, não há mais desenho. Com o futebol do Brasil passa o mesmo. A ganância dos agentes e ausência de uma gestão profissional – voltada para o mercado – dos clubes, faz com que os melhores futebolistas brasileiros partam para o estrangeiro. Por que não vemos tantos mexicanos nas principais ligas da Europa? Talvez porque quem organiza o campeonato mexicano seja um conglomerado de mídia (Televisa). Coincidência ou não, o atual gestor da F1 veio da indústria da televisão, e não do meio do esporte-motor.

“Parada dos Pilotos” em Interlagos, neste ano. (Divulgação: foto: racefans.net |Copyright: Batchelor / XPB Images)

 
Esporte é entretenimento. É negócio. Em respeito sempre ao atleta e ao torcedor.
Com tudo isso, basta olhar todo o conteúdo produzido de sons e imagens pelo canal oficial da F1 para termos dimensão do quanto que se aproveita de um fimdesemana. Um festival que celebra a corrida. Enquanto isso, no futebol, não se celebra o jogo, mas sim discute-se a demissão de mais um técnico. Talvez tenha sido o principal assunto. É preciso romper com isso.
 

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Entre o digital e a competição

Bem-vindos ao nosso Entre o Direito e o Esporte”. Essa sexta-feira tem eSports. Nessa terceira coluna do mês a gente continua nosso caminho pelos esportes eletrônicos. Hoje a gente vai dar uma olhada em como as regras do jogo aparecem “Entre o Futebol e o Digital”. E aí já vem aquela primeira pergunta: “de onde vem as regras do nosso eFutebol?”.
Afinal, se alguém organiza uma competição, essa competição segue uma ou outra regra, e é aí que a nossa conversa dessa semana vai. Em outras palavras, o (e)futebol organizado. E aí a gente vai ver três pontes entre o futebol organizado pela FIFA e o futebol organizado pela… é, isso mesmo! Gostei de ver que lembrou da nossa conversa da semana passada. Três pontes que são: as regras do jogo em si, as regras da competição, e as regras para a competição. Essas três pontes fazem a diferença na hora de fazer muito mais do que só colocar gente para jogar um jogo – que nem no nosso futebol que a gente vê na televisão (ou smartphone,tablet, ou console).
Bora lá?

Fonte: Twitter, FIFA eWorld Cup

 
Começou, as regras do jogo em si. Um jogo é uma atividade ordenada, uma atividade ordenada que depende de regras, regras que dão a cara para esse jogo. Ou seja, são as regras de como se joga uma partida. É tipo marcar um gol no futebol com a mão… pode? Se a regra não diz nada, pode – mas a gente sabe que no nosso futebol não pode, né?
O nosso eFutebol também tem disso. Pode marcar gol com a mão do jogador? Não. Pode marcar gol com o jogador impedido? Não. Pode tomar um segundo cartão amarelo e mesmo assim não ser expulso depois de uma entrada por trás sem a bola? Não. Até aí é tranquilo e perto do que a gente entende por “regras do jogo”… agora, e se eu te disser que também fazem parte dessas regras alguns detalhes diferentes?
Imagina você jogado FIFA numa seletiva da sua Faculdade, imagina que nessa seletiva você resolveu jogar do jeito que você joga na sua casa, imagina que esse jeito era com a assistência na jogabilidade do jogo ligada (assist) para chutes, passes, cruzamentos… tudo. Pode? Pois é, a regra do jogo que vai trazer se isso pode ou não pode. Afinal, isso afeta o jogo em si.
O futebol é o mesmo futebol que aparece na TV, mas tem um pedaço aqui e ali que faz essa diferença aparecer – que nem doping de um atleta no jogo em si, o que não tem (do atleta virtual, e do mesmo jeito que na “versão física”) no eFutebol.
Que um jogo é um jogo ainda vai, e como esse jogo deixa de ser só um jogo e vira uma competição? Pois é, aí que entram as regras da competição. Em outras palavras, é como se joga a competição em si. Tipo no futebol que a gente vê na televisão… um time pode comprar a passagem e ir direto para o mundial de clubes? Ah, poder até pode… só que daí não vai jogar (quer dizer, quase sempre).
Essas regras aparecem na pontuação do campeonato, no critério de desempate dessa pontuação, número de times participantes… e por aí vai, igualzinho (na ideia) não importa de qual futebol a gente fala. Agora, e no eFutebol… tem mais alguma coisa que muda aí? Bom, faz já tanto tempo que a gente se vê por aqui toda sexta-feira que a gente já sabe que a reposta é sim, né? Hahaha.
Imagina esse campeonato que você estava jogando… isso, aquela seletiva. Imagina que lá você mudou tudo para o manual e foi para o jogo com a cara e coragem crente que ia arrasar e dar um 7×1 naquele mala – ainda mais que você estava com o seu controle da sorte… pera, controle da sorte? Isso, um teclado adaptado que você usa no dia a dia para treinar em casa!
Opa… rola não esse trem, amigo! O tipo de controle também faz parte das regras da competição, senão um jogador de futebol pode entrar em campo com tênis de corrida ou mesmo um de cravo de futebol americano. É aí que entram aqueles detalhes das regras da competição, o futebol é igual… e diferente também.
Tranquilo, agora fica aquela pergunta do “jogo, competição… já sei, campeonato agora. Né?”. Isso mesmo! Essas regras do campeonato são as regras de convivência que vão além do jogo e da competição em si. Aquelas regrinhas que evitam (ou tentam evitar) uma surpresa desagradável aqui e ali durante o calendário.
Falei grego, né? É tipo no futebol da televisão o seu time resolver contratar aquele atacante do rival do seu time no meio de outubro – a gente sabe que pode (mas que não vai poder jogar). E não pode porque tem um monte de regulamento que vai falar sobre mercado de transferência, marketing das equipes, modo de transmissão das partidas… e até, no caso do eFutebol, o tipo de patrocínio que pode aparecer no seu controle!
Sim, aí também tem seus detalhes divertidos que deixam o eFutebol como um futebol único e que chama a atenção por essas diferenças – mesmo quando na TV até que fica bem parecido, ainda mais se a gente assiste no streaming.
Futebol, com (e) ou sem (e), é futebol – assim, sempre vai ter as regras do jogo, as regras da competição, e as regras do campeonato. E quem decide as regras é, no fim do dia, quem organiza o campeonato, competição ou jogo. É que nem a nossa pelada de final de semana… lembra muito futebol, tem cara de futebol, e é futebol mesmo – só que não é igual ao que que a gente assiste na televisão.
É isso, gente! Obrigado pela companhia e um bom final de semana para cada um de vocês e nos vemos semana que vem por aqui na Universidade do Futebol. Fica o convite para o nosso próximo “Entre o Direito e o Esporte” desse novembro, para conversar mais sobre esse tal do “eFutebol”, e para fazer dessa coluna o nosso espaço. Nos vemos sexta-feira para dar uma olhada no mercado de transferência… dos eSports. Feito? Qualquer coisa é só me chamar por aqui, pelo meu LinkedIn ou pelo meu Twitter. Obrigado e até mais!

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Porque eu não trocaria Aguirre agora. Mas sim dia 3 de dezembro

Não sou contra demitir treinador. Sou contra a análise superficial e a falta de conhecimento para avaliar de maneira sistêmica o complexo trabalho de um técnico de futebol. Cada caso é um caso. Cada clube possui redes de relações internas e externas que potencializam ou minam determinados perfis de comando. Ou seja, não é porque um técnico não deu certo aqui que ele não pode dar certo lá. E muito menos podemos admitir o famigerado ‘ganhou é bom, perdeu não serve’. Tudo deve ser relativizado, contextualizado e profundamente analisado.
Levanto essas questões para ponderar que se fosse dirigente do São Paulo não demitiria o técnico Diego Aguirre faltando cinco rodadas para o término do Brasileirão. Mas trocaria o comando assim que a temporada se encerrasse.
Um clube de futebol é um sistema cheio de elementos que interferem diretamente no resultado dentro de campo. Ou seja, o presidente tem influência direta no que a equipe entrega dentro das quatro linhas. Porém, todos também fazem parte: o financeiro que equaciona as contas, o jurídico que cuida de contratos, o marketing que gera receita, o departamento médico que trata os atletas. Até o pessoal da portaria, rouparia e cozinha dão sua parcela de contribuição no bom ambiente da instituição. Enfim, não dá para enxergar o futebol por apenas um ângulo.
O treinador deve ser um potencializador do que o clube tem. Mais do que entender de técnica, tática e metodologia de treinamento, ele deve fazer todos os departamentos trabalharem alinhados para que o resultado em campo seja positivo. Mas sempre ressaltando: o técnico não ganha sozinho e não perde sozinho. São todos os elementos do clube que produzem ou vitórias ou derrotas. E Aguirre foi engolido pelas arestas soltas que assolam o Morumbi.
O São Paulo não ganha nada de importante há muito tempo não porque troca muito de técnico. Mas sim porque, além de trocar muito o comando, ele virou uma bagunça política. Sem falar na falta de diretriz para uma série de escolhas envolvendo membros da comissão técnica permanente, análise de desempenho, diretoria de futebol, etc. Como exemplo próximo cito o Palmeiras: estabilizado como clube vai ganhar seu terceiro título nacional em quatro anos com três técnicos diferentes: Felipão em 2018, Cuca em 2016 e Marcelo Oliveira em 2015. De um jeito ou de outro, é a instituição que está forte, independentemente do técnico.
Aguirre teve grandes momentos no São Paulo neste ano, em que pese as eliminações no Paulistão, Copa do Brasil e Sul-Americana. Não foi à toa, que o tricolor liderou o Brasileirão por várias rodadas. Suas ideias de jogo claras potencializaram por um tempo o que o grupo de jogadores tinha de melhor. Por outro lado, é indiscutível que a equipe deixou de evoluir, principalmente tendo semanas cheias de treino. Algumas decisões de escalações e substituições se mostraram equivocadas e sentia nas últimas semanas um Aguirre desmotivado, sem força no discurso, sem explicações convincentes e sem o devido comando do grupo. Não consigo enxergar como Aguirre faria diferente em 2019 com o arsenal de atuações que mostrou em 2018.
Para o São Paulo voltar ao caminho das conquistas não bastará simplesmente manter um treinador. O clube tem que evoluir em todos os aspectos. Olhar para si mesmo é incômodo. Eu sei. Mas é o primeiro passo para melhorar.

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Breves notas sobre o processo de humanização no futebol

Heung-Min Son, em prantos: quanta humanidade existe em cada ação dentro do campo? (Divulgação: Washington Post)

 
Na última semana, neste mesmo espaço, fiz uma breve crítica à ideia de lado humano, que vejo bastante replicada ultimamente, quando se pretende falar sobre o processo de humanização de atletas, em qualquer nível. Em linhas gerais, é um termo bem-intencionado, mas que reforça (de maneira subliminar) o humanizar como se fosse secundário, lateral. É o oposto do que defendemos: o humano não tem lados e, mesmo se os tivesse, o lado humano não poderia ser comparado a nenhum outro. Atletas, antes de serem atletas, são humanos, não o contrário.
Por isso, tenho defendido aqui um debate mais rigoroso sobre o significado da humanização no futebol. Evidentemente, falamos de um aprendizado em mão-dupla: este mesmo espaço, a partir dos desafios que me cria, tem sido fundamental para refinar meu próprio entendimento.
Um dos resultados dessa troca – com leitores e leitoras ou mesmo pessoas mais próximas – é a desconfiança de que há um certo desejo por conteúdos mais ‘práticos’, aplicáveis. Bem, repare que a aplicação é menos dependente dos conteúdos, em si, do que do olhar de quem os vê. Mesmo assim, compreendo a importância de um olhar mais processual, talvez mais claro para quem trabalha no campo e precisa, de alguma forma, de resultados concretos.
Por isso, baseado não apenas nos estudos a que me dedico ultimamente, como na minha breve experiência profissional, como professor e treinador, deixo abaixo três perspectivas, três ajustes que julgo necessários caso queiramos avançar no processo de humanização – que me parece decisiva em um futuro próximo, independentemente do contexto no qual você trabalhe. Espero que os apontamentos sejam úteis e que, na medida do possível, despertem as inquietações capazes de pavimentar um caminho melhor.

***

O primeiro ajuste que aponto é um ajuste do pensar. Sendo mais claro: é preciso que nosso pensar se reconcilie ao real, não aos ideais. Por algum motivo (talvez uma herança platônica incompreendida), várias das nossas expectativas sobre o jogo, como atletas, treinadores e afins, não estão baseadas nas contradições intrínsecas ao jogo real (que é o jogo que jogamos), mas nos ideais, nos devaneios auto centrados que alimentamos sobre o jogo, ainda que eles desconsiderem a imparcialidade, a indiferença e a independência do jogo frente aos seus próprios jogadores.
Uma das grandes manifestações modernas deste fenômeno, se me permitem, reside na ideia de modelo de jogo. Tenho me convencido de que o modelo está deixando de ser um norte, uma bússola criada exatamente para nos localizar, como equipe, nos diversos momentos do jogo, para se tornar uma utopia, um ideal absolutamente distante que compromete nosso olhar crítico sobre o real. Dessa forma, estabelecemos um sarrafo maior do que nossos corpos podem saltar.
Comprometer-se com o real significa, dentre outras coisas, comprometer-se com os limites humanos: a racionalidade humana é finita e, além disso, há uma série de variáveis no processo que escapam de qualquer controle racional de treinadores e treinadoras. Não se trata simplesmente de trabalho: trata-se de reconhecer que há variáveis invisíveis, intocáveis, mas que estão ali, dentro e fora do ambiente do jogoComo dissemos anteriormente, é noite e treinadores e treinadoras precisam virar-se no escuro.
Mas o quão preparados estamos?

***

Um segundo ajuste importante é o ajuste do olhar. Sendo específico: um ajuste do olhar sobre o jogador.
Quando um atleta toma uma decisão em campo – uma ação tática, digamos – aquela não é uma ação apenas tática, é uma ação humana. Não creio que uma ação humana deva ser vista apenas como expressão das interrelações entre tático, técnico, físico e afins – isso está mais ou menos claro – mas sim algo maior: qualquer ação em campo é uma espécie de sintoma, é um rastro deixado pelo atleta, um sinal de algo mais profundo. O erro em um passe vertical forçado, ou uma distração na recomposição defensiva têm um significado anterior, são signos absolutamente particulares, que justificam aquela ação, daquele atleta, daquela forma. Se nos ativermos apenas aos sintomas (ou seja, às ações), desconfio que possamos nos equivocar, pois não é nos sintomas que reside uma patologia. É preciso investigar as causas, enxergar na escuridão.
(este, aliás, é um dos motivos que me fazem ter ressalvas com as metodologias de ensino/aprendizagem baseadas na técnica, como veremos abaixo. Elas agem sobre os sintomas).
Assim, nosso olhar deve perseguir o não-visto, a causa oculta. Isso não significa, sob hipótese alguma, que a função de treinadores e treinadoras seja, ao menor sinal, tirar conclusões taxativas, criar rótulos: além do caráter reducionista, atitudes neste nível são meras ilusões, opiniões distantes da verdade. O passo que proponho – imagino que os leitores e leitoras concordarão comigo – é o passo do reconhecimento diário da humanidade oculta nas ações tático-técnicas. Apesar do discurso politicamente correto que se ouve aqui e ali, isso ainda não ocorre. É preciso uma prática regular, reflexiva, para que nosso olhar seja de fato menos fragmentado, menos específico, mais humanizado.
Sem isso, caminhamos a passos largos para tratar nossos atletas como coisas, não como gente. E a humanização está no extremo oposto da coisificação.

***

Finalmente, acho preciso um ajuste do jogar. Neste caso, um ajuste metodológico: treinamentos baseados em jogos me parecem absolutamente mais humanizantes, em qualquer nível (iniciação, especialização ou rendimento) do que os métodos analíticos. Por ora, ofereço três argumentos:

  1. I) o método analítico, para além de fragmentar o jogo, fragmenta o próprio pensamento do atleta. Quando treina repetidamente um passe curto com o pé direito, o atleta está reforçando as estruturas cognitivas que sustentam os passes curtos com o pé direito. Mas o passe curto com o pé direito não é um fim em si mesmo: é um dos inúmeros instrumentos para se jogar bem.

Quando nossas metodologias enfatizam somente os instrumentos, separadamente, posso inferir que entendemos nossos atletas não como pessoas unas, dotadas de sistemas fisiológicos, cognitivos e morais em absoluto diálogo, mas sim uma série de compartimentos que, trabalhados e preenchidos separadamente, podem alcançar um fim maior. Veja bem, eles até podem fazê-lo, mas seria essa a solução mais realista? Será que a vida é uma série de histórias que se preenchem separadas ou de histórias que se fazem em intersecção?
Quanto mais separado o pensamento, me parece, menos humanizante ele será.

  1. II) o treinamento analítico é cúmplice do acerto. Se eu erro todos os meus passes curtos, não treinei bem. Se eu acerto todos – mesmo sem qualquer oposição, sem pressão externa, sem um objetivo coletivo, tive um ótimo dia! Em alguma medida, isso me lembra uma espécie de linha de produção, um apertar de porcas da bola, hiperespecífico, que nos traz novamente à crítica feita acima.

No jogo, repare que há uma diferença importante: o jogo (quando bem feito) não apenas permite, como induz o jogador à experiência do erro. Por quê? Porque no jogo, no jogo jogado, não há controle. Não há controle, há pura e simplesmente fluidez, constrangimento, tomada de decisão… e erro! Se o errar é humano, e se é a experiência do errar que permite o salto cognitivo para os acertos em base regular, por que a fuga do erro? Por que não aceitar o erro como parte inexorável do processo? Por que não encará-lo, exatamente como fazíamos na pedagogia da rua?
Em alguma medida, sinto que a fuga do erro cria atletas razoavelmente inseguros, não apenas desacostumados, como desconfortáveis com o erro no jogo formal, o que compromete não apenas a percepção do próprio jogo como, por conseguinte, a experiência existencial de cada um de nós. A ausência de linearidade, a sobreposição de erros e acertos, são parte da vida vivida e, neste sentido, fica claro que não apenas treinamos atletas para as situações do jogo mas, além disso, treinamos pessoas para os desafios existenciais dos quais não se pode fugir.
Este me parece o sentido da humanização.

  1. III) ou seja, para além da função puramente pedagógica, perceba que o jogo tem uma função existencial. O jogo, não se esqueça, opera na base da suspensão temporária da realidade. O jogo é uma forma de escape!

Metodologias baseadas em jogo – desde que com o devido rigor metodológico – permitem aos atletas a completa entrega ao mundo do jogo, o assim chamado estado de jogo. Entrar em estado de jogo é euforia, é licenciar-se do real através de elementos reais (repare na aparente contradição), e a riqueza deste processo é mais do que admirável, porque ao mesmo tempo em que nos damos ao direito da aprendizagem, o fazemos mediante um pequeno empréstimo, uma fuga requerida pela nossa própria sanidade mental. O jogo, em qualquer contexto, é uma experiência absolutamente terapêutica.
Que não se encerra em quem joga: repare que também é terapia para quem conduz o processo. Imagino quantos são os leitores e leitoras que, quando dão seus treinos, se esquecem inteiramente da vida externa, dos problemas que afligem a todos nós, por pura e genuína entrega ao jogo. Se a embriaguez, literal ou metafórica, é tão procurada, por que não embriagar-se regularmente do jogo, entregar-se sinceramente a ele, explorando sua riqueza ética e estética?

***

Repare apenas, por fim, que em momento algum negamos a técnica. Muito pelo contrário! Humanizar também é deslocar: a técnica, estanque, é prata.
Mas a técnica, viva, é ouro puro.
 

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Liga Rebelde

Eis que os principais clubes da Europa juntaram-se nos últimos tempos e, de maneira – que não mais é – secreta, estariam a organizar uma liga continental, em detrimento das suas ligas nacionais (La Liga/ESP, Lega Calcio/ITA, Bundesliga/ALE, Premier League/ING e Ligue 1/FRA) e também da Liga dos Campeões da UEFA, que tem a chancela da entidade máxima do futebol daquele continente. Chamaram-na “Super Liga Europeia”. Alegam que os campeonatos locais não possuem competitividade (os campeões são previsíveis), mesmo a “champions” que nas últimas temporadas teve o Real Madrid como campeão.

É, em primeiro lugar, um excelente produto. Não há dúvidas disso, é incontestável. São as instituições mais ricas e competitivas do planeta, a saber: Paris, Manchester City, Real Madrid, Manchester United, Barcelona, Liverpool, Arsenal, Juventus/ITA, Chelsea, Bayern de Munique, Milan, Dortmund, Olympique de Marselha, Atlético de Madrid, Inter de Milão e Roma. Por que afinal gostariam de romper com os campeonatos nacionais e a liga dos campeões?

Uma hipótese é o de ganhos comerciais. Um campeonato mantido dentro deste grupo de clubes, sem acesso ou rebaixamento, permite, em um primeiro momento, maiores receitas, porque teríamos sempre estas equipes que por si só chamam muito a atenção. Claro, com o tempo ela vai exigir competitividade e um clube vai ser mais protagonista que o outro. Solução para isso seria a inclusão de mais clubes, que obedeceriam parâmetros e garantias esportivas e financeiras, em modelo semelhante ao das franquias nas ligas da América do Norte. É possível até mesmo fazer um ‘draft‘ de futebolistas que se candidatariam a jogar nesta competição, da mesma maneira como ocorre nos Estados Unidos. Seriam montadas “super equipes” exclusivas para este torneio. Uma equipe “B” poderia disputar a “champions” e uma equipe “C” o campeonato nacional.

No entanto, a UEFA e as respectivas ligas locais permitiriam isso? Certamente com equipes menos competitivas o nível do jogo nestes torneios também cairia, por isso, caso este projeto avance, haverá um entrave bem forte para que ele não seja executado.

Bayern de Munique em comemoração à conquista da Liga dos Campeões da UEFA de 2013. (Foto: EPA)

 

Diante disso, de um modo ou de outro a iniciativa destes clubes acima mencionados evidencia o que o “The Guardian” outrora chamou de ‘Disneyficação’ do futebol: os clubes da Europa hoje são organizações globais sem um vínculo local genuíno (ou cada vez menor). Não há competitividade suficiente entre eles e os demais. Entretanto, é um alto preço político a ser enfrentado por estes clubes porque a confederação do continente e as ligas locais podem puni-los. Ao mesmo tempo, perdê-los é má opção porque o poder de barganha dos clubes está nos interesses comerciais que eles atraem para os campeonatos. A ver, portanto, como vai se desenrolar este caso.

Em tempo: é fato que lá (na Europa) ainda há um espaço muito maior para negociação do que se isso acontecesse por aqui, na América do Sul.

 

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Entre o Jogo e o Campeonato

Bem-vindos ao nosso Entre o Direito e o Esporte”. Nessa sexta-feira vamos continuar a nossa conversa sobre o “eFutebol”. Esse fenômeno que fica entre o jogo e o digital, esse fenômeno que fica entre a tradição e o novo, esse fenômeno que fica entre o direito e o esporte.
Hoje nós vamos conversar sobre quando os eSports viram um esporte, um esporte que tem seus campeonatos, campeonatos que alguém tem que organizar. Né? Assim, a gente vai dar uma olhada em três pontos de vista aí: a comunidade, o futebol associativo, e as publishers.
Bora lá?

Fonte: FIFA

 
PES vs FIFA, sempre fica aquela briga quando a gente fala sobre qual que é o melhor. É sempre uma escolha que vai muito de cada um. Uma escolha que vai de cada um que vai juntando mais outro aqui e ali até que forma uma comunidade. Pois é. Essa mesma comunidade organiza os seus jogos.
Desde idos dos arcades até hoje e passando pela internet discada e pelas lan-house, campeonato de jogos digitais sempre existiu. Essa comunidade de jogadores já se reunia em campeonatos do mesmo jeito que lá atrás um monte de gente se juntava nas várzeas de São Paulo para jogar bola do lado dos rios Tietê e Pinheiros.
Hoje isso tem uma dimensão diferente, é só jogar lá no google torneios de eSports amadores e a gente vê que é até bem parecido com a “Taça das Favelas” que é organizada pela Central Única das Favelas ou a antiga Copa Fox Kids que era organizada pela Walt Disney Company. A comunidade continua, só que mesmo aí o jogo vira esporte organizado.
Aí é quando você me diz “tranquilo, mas… e a Copa do Mundo FIFA de eSports?”. É, essa comunidade com fãs num tempo em que o acesso ao FIFA e ao PES fica cada vez mais fácil leva o eSports para entre a tradição e o novo e foi assim que veio a FIFA eWorld Cup do FIFA feito pela EA Sports.
O eFutebol foi “colocado para dentro” das associações, que nem aconteceu antes com o futsal, o futebol de areia e o futebol de sete. É um jeito do tradicional ver esse novo e se adaptar – afinal, se é futebol… por que não? A FIFA criou sua competição de eSports (de FIFA), a CBF criou o seu e-Brasileirão (de PES), e a Federação Paulista de Futebol criou o seu Paulistão League (de PES).
Essas competições mostram que cada vez mais os eSports, e o eFutebol, passam a fazer parte do dia a dia do esporte como um todo. Aí deixam de ser “só um jogo” e passam a ser um esporte (mais) organizado – e muitas vezes até mais do que vários esportes tradicionais.
Ainda mais que… uai, só tem o campeonato mundial de FIFA porque a EA tem parceria com a FIFA? Bom, fora essa frase pra lá de confusa já deu para ver que tem mais coisa aí. Né? Pois é, as publishers também entram no jogo e fazem a organização de competições. Exemplo disso é a Konami, que é responsável pela distribuição do PES (como o “selo” de uma gravadora de música, sabe?).
A Konami organiza o PES League World Tour, sua competição oficial de eFutebol. Afinal, PES e FIFA são jogos diferentes – assim como futebol de campo e futebol de areia. Os eSports têm esse lado diferente de quando a gente fala do futebol… o futebol de campo foi inventado algum dia e são várias organizações que fazem seus torneios (desde a comunidade em geral até a FIFA).
Agora, o FIFA da EA Sports e o PES da Konami são parte da propriedade intelectual de seu “criador” (ou do investidor que colocou o dinheiro para que esse jogo fosse feito), e aí a história muda um pouco já que o “dono” tem uma força diferente nesse jogo de quem organiza o eFutebol.
E é bem aí que a gente vai continuar semana que vem, com uma pergunta: afinal, quem é que faz as regras de um campeonato de eSports?
É isso, gente! Bom final de semana para cada um de vocês e nos vemos semana que vem por aqui na Universidade do Futebol. Convido a ficarem comigo no “Entre o Direito e o Esporte” nesse nosso mês para conversar sobre o “eFutebol”, nessa próxima mais sobre a “o jogo como eSport”. Feito? Deixo meu convite para falarem comigo por aqui, pelo meu LinkedIn ou pelo meu Twitter. Obrigado e até mais!
 

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Quem tem pressa se frustra e não entende

Quando um jovem jogador como Helinho, 18 anos, entra na equipe principal do São Paulo em um clássico contra o Flamengo e após apenas alguns minutos em campo marca um golaço, todos se perguntam e se indignam: como esse garoto não teve oportunidade antes? Parece óbvio para muitos que se alguém faz sucesso nas categorias de base repetirá também o mesmo desempenho no profissional. Afinal, é a mesma coisa, dizem os mais apressados. Porém, uma análise mais sistêmica e um olhar um pouco mais atento para a própria história mostram que as coisas não são tão simples assim.
Há dois fatores que mudam por completo a dinâmica de um jogo profissional se comparado a um de base: imprensa e torcida. A presença desses dois elementos age diretamente na esfera emocional da partida – dentro de uma visão sistêmica entendemos o jogo como técnico, tático, físico e emocional, tudo junto ao mesmo tempo. As competências exigidas e as relações do ambiente profissional são bem diferentes do que acontece em um jogo do sub-20, por exemplo.
Por isso, a observação do dia a dia, principalmente comportamental, é fator decisivo para saber quando um jogador está pronto para fazer a transição. Entender se após um erro esse menino crescerá ou ficará abatido. Ou então avaliar se sua personalidade é focada em aprendizado e crescimento ao invés de soberba e autossuficiência.
Já vimos jogadores arrebentarem nas categorias de base e sumirem no profissional. Ou então atletas despontarem em equipes de cima de maneira tardia, após os 20 anos – vale sempre também avaliar a maturação física, que varia de ser humano para ser humano. Ou seja, cada caso é um caso. Neymar com 17 anos já se sentia a vontade no profissional do Santos. Taison foi arrebentar apenas no sub-23 do Internacional.
Não há todos os elementos para analisar se um jogador está pronto ou não apenas vendo seus jogos – com o perdão do contraditório que isso possa parecer. Por mais que o campo ‘fale’ e no final das contas é o que se produz dentro das quatro linhas que contará, há inúmeros outros fatores envolvidos que na maior parte das vezes fica oculto para quem está de fora.
Portanto, torcedor: segure a ansiedade e tenha calma e confiança que se um técnico do profissional não coloca a joia da base para atuar é porque ainda falta alguma coisa.
 

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Uma crítica ao ‘lado humano’ do futebol

Jose Maria Gimenez, em prantos durante e após o jogo contra a França: apenas um lado ou a expressão de toda uma humanidade? (Divulgação: UOL Esportes)

 
No último fim de semana, tomo conhecimento da belíssima história do garoto Gabriel Poveda, do Guarani. Gabriel foi titular pela primeira vez em um jogo do profissional – o que, aliás, já seria motivo de enorme felicidade. Não bastasse isso, fez seu primeiro gol, abrindo caminho para uma vitória que não vinha há cinco jogos. Logo após o jogo, Gabriel foi flagrado em um dos corredores do Brinco de Ouro, emocionado, agradecendo aos pais por ‘nunca terem duvidado nem desistido’ dele, como relatou a (ótima) repórter Livia Laranjeira.
Alguns colegas interpretaram a história como um exemplo tácito da importância de se olhar o assim chamado lado humano do jogador. Neste texto, farei uma breve crítica ao termo lado humano. Pretendo demonstrar, ainda que brevemente, como se trata de um termo pernicioso – por mais bem-intencionado que seja.

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Não deveria surpreender a existência de um movimento, aparentemente discreto, mas crescente, que entende que a importância do processo de humanização das relações no futebol. Por humanização, poderíamos divagar por definições mil, mas fiquemos, por ora, na seguinte: humanizar significa não tratar o atleta como uma coisa, como um objeto utilizado para um determinado fim. Humanizar o processo significa tratar o atleta como um humano, dotado de história, afetos, desejos e limites. Livre, autônomo. Significa tratá-lo como gente, não como um animal qualquer.
O debate sobre a humanização me parece urgente, e me alegra saber que há clubes e profissionais interessados em encará-lo. Na última semana, em evento desta mesma Universidade do Futebol, soube de algumas medidas práticas adotadas pelo Flamengo, através do seu executivo Eduardo Freeland. Ao mesmo tempo, nesta fase de aparente transição de uma visão animalesca para uma visão humanizada, acho importante alimentar uma espécie de rigor, um cuidado que não faça dos nossos atos bumerangues, mas flechas, capazes de ir até o alvo, e nele ficar. Daí as minhas ressalvas ao suposto lado humano.
Minha primeira impressão é que o uso do termo lado carrega uma leve referência da geometria, de modo que o humano parece comparado à uma forma qualquer. Quadrados, trapézios, triângulos (nas suas diversas variações), não se sabe ao certo, mas estaria ali uma figura, uma representação de lados diversos, sendo apenas um deles o lado humano. O problema, evidentemente, é que pessoas não são formas geométricas. Mas, supondo que fossem, estariam mais próximas de qual delas? Certamente, de nenhuma das que citei acima. Provavelmente estaríamos muito mais próximos dos círculos, pois o círculo carrega uma qualidade bastante peculiar, inexorável: no círculo, as extremidades são todas absolutamente equidistantes do centro. Os círculos não têm lados.
Além disso, o termo lado me soa pernicioso por outra razão. Quando falamos de um lado humano, fica subentendido não apenas que há outros lados, mas que os outros lados são tão ou mais importantes do que este lado humano. Não por acaso, a maior parte das reminiscências sobre o humano acontece exatamente em situações extraordinárias, como a do garoto do Guarani. Na ausência do estímulo – que pode ser uma história tocante -, será que estamos realmente treinados para perceber o humano? Será que somos capazes de considerar a humanidade que reside ali, às vezes calada, adormecida em nome da paranoia resultadista que nos aflige? Talvez não. Talvez precisemos de mais treino, treino do olhar e do espírito, para fazer a transição para um olhar que não se resume a lados, mas que percebe o humano antes e através daquilo que, de fato, são os lados! – o tático, o técnico, o físico, o mental. Assim como não se trata um enfermo pelos seus sintomas, mas pela causa da enfermidade, não se trata um atleta apenas pelas ações táticas, técnicas ou físicas, pois são todas sintomas, sinais de uma humanidade latente. É preciso, assim, olhar cada atleta nas suas causas.
Não por acaso, tenho uma afeição considerável pela Pedagogia do Esporte e pela Filosofia – ambas oferecendo soluções práticas, para um olhar humanizado que se reflita regularmente no campo. Ao invés de nos resignarmos aos lados, sugiro, ao menos por ora, termos como humano, humanidade, ser, humanitude, palavras mais abertas. Todas elas reforçam não apenas uma visão ampla do ser, inteira, como também (repare aqui) entendem que o humano não é feito apenas de luz, mas também é feito de trevas. Será que estamos treinados para olhar na escuridão?
Qualquer ação em campo é humana, reflete um caleidoscópio interno, um mundo de cada jogador. Não há lados, há o ser. Ser que não é, mas que está.
E, para o ser, há caminhos mil.
 

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Sociedade Anônima Futebol Clube

Dia desses o autor desta coluna foi convidado para entrevista em programa de rádio para comentar sobre alguns aspectos da transformação do departamento de futebol profissional do Botafogo Futebol Clube (Ribeirão Preto) em sociedade anônima, aprovada por unanimidade no conselho deliberativo do clube. Não é um cenário novo no futebol do Brasil. Entretanto, tem tudo para ser bem executado. Proporciona inúmeras oportunidades para a gestão, para o marketing do futebol, e, sobretudo, em benefício para torcedores e atletas.

Em primeiro lugar, com esta iniciativa o clube está mais voltado para o mercado. Dependerá cada vez mais da satisfação e do retorno das partes que investem no clube: acionistas e torcedores. Presume-se que todo o investimento feito terá que ser otimizado a não depender de um mecenas – como aconteceu anos antes com o rival o Comercial Futebol Clube – ou interesses que não coincidam com os que a organização possui, pautados pelos valores, visão e missão, como já tratamos em outros textos por aqui. Por isso as receitas e despesas exigirão extrema austeridade e, consequentemente, transparência. Os desempenhos, esportivo e financeiro, serão minuciosamente analisados: para gerar mais rendimentos financeiros, a organização dependerá do rendimento esportivo, a fim de cativar a torcida através de equipes competitivas e um bom recinto para o jogo, para que o público possa acompanhá-lo; além de, a prazo, colocar um futebolista no mercado em grandes praças do futebol nacional e internacional.

Os torcedores podem se beneficiar disso, com melhores equipes e melhor estádio. Uma instituição voltada para as atuais demandas, majoritariamente relacionadas ao conforto e à segurança. Os atletas também, haja vista que, como em uma empresa, poderão ter maior noção do que é ser colaborador, sobre fazer parte de um projeto maior, que diz respeito a uma organização, com visão, orientação e entendimento sobre as suas tomadas de decisão.

Este projeto do Botafogo tem tudo para ser a celebração do profissionalismo que tanto se almeja no país. Já acontece em outros clubes-empresa e já aconteceu em outras instituições de série A e série B do futebol do Brasil. Entretanto, um dos poucos e senão o único sendo aplicado em importante centro econômico do interior do país, em clube centenário, com atuante massa associativa e relevante palmarés.

Estádio Santa Cruz, do Botafogo Futebol Clube. (Foto: Fernando Gonzaga)

 

Portanto, o projeto do “Botinha” tem tudo para ser bem-sucedido. À sua torcida, é preciso paciência, uma vez que os resultados podem não vir imediatamente. Igualmente à consolidação do projeto: levará tempo. Como tudo na vida. Entretanto, o clube seguirá existindo com consistência e solidez, a deixar um legado com algo que pode ser referência no futebol do Brasil.