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Cultura das organizações e filosofia de trabalho

Para uma organização (esportiva ou não) implementar uma filosofia de trabalho (a verdade e os princípios morais dela), com base em sua missão, visão e valores, leva um tanto de tempo. Ela é importante para a adaptação de um colaborador e o estabelecimento de uma rotina, assim como é um dos fatores responsáveis por proporcionar entrosamento em uma equipe. É a representação da cultura de uma instituição. Em muitos casos, a implementação de uma filosofia de trabalho vem acompanhada por uma cartilha de direitos e deveres do colaborador.
Parece um tanto básico, mas faz toda a diferença. Instituições centenárias, ou mais recentes porém sólidas, baseiam-se em uma cultura que se vislumbra em um primeiro momento para depois se desenvolver ao longo do tempo.
No futebol, dizem que o Corinthians possui algo parecido. Uma vez me disseram que o funcionário de chão de fábrica do clube é treinado a levar consigo a máxima “Aqui é Corinthians”. Em outros clubes, também, com a manutenção de comissões técnicas fixas nas categorias de base. Aos poucos elas passarão aos jovens atletas um jeito de atuar próprio do clube, construído em mais de um século, através de jogadores notáveis e títulos importantes. No São Paulo, o Centro de Treinamento em Cotia possui poucos funcionários terceirizados, pelo mesmo motivo (funcionários do clube se identificam com ele, têm a essência do clube).
Insisto no tema porque reconheço este ser um dos problemas do esporte no Brasil, sobretudo no futebol. Os que citei no parágrafo anterior, são algumas exceções. O problema também ocorre em outros países. Patrick Vieira não quer ser treinador na Liga Inglesa porque acredita não terá tempo suficiente de implementar uma cultura de trabalho. Ele declarou à revista “FourFourTwo”: It’s all about winning. There’s so much pressure” (Tudo é questão de vitória / É muita pressão).
Conheço um pouco dos All Blacks e a União de Rugby da Nova Zelândia. Quem é convocado para a seleção pela primeira vez ou é recrutado para trabalhar na sede da federação, passa por um período de treinamento para saber onde se vai trabalhar (ou jogar), para quem (com quem) e quem na história ajudou a fazer a instituição. Isso sustentado pela missão, visão e seus valores.

O túnel de entrada em Anfield, estádio do Liverpool FC. (Foto: Reprodução/Divulgação)

 
Voltamos ao Corinthians e especificamente a um treinador que teve muito sucesso naquele clube, o Tite. Queriam mandá-lo embora depois de uma derrota para o Tolima, na Pré-Libertadores, em 2011. Apesar do revés, mantiveram-no no cargo. Abriram mão dos resultados e da pressão (o que Vieira disse haver na Liga Inglesa (torneio que é exemplo, referência de planejamento e implementação de cultura de trabalho dentro do esporte). Com isso, tiveram tempo para estabelecer aos poucos uma equipe campeã, sem estrelismo ou protagonistas, e em que a instituição de fato parecia estar em primeiro lugar.
Não sei por quais motivos o Tite ficou no cargo. Quero muito acreditar que tenha sido uma opção feita a partir da cultura da organização.

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Em tempo mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:

“Campeões não são feitos em academias de ginástica. Campeões são feitos de algo que eles têm dentro deles mesmos: um desejo, uma visão, um sonho. Eles têm que ter a habilidade e o desejo, e o desejo tem que ser mais forte que a habilidade.”
Muhammad Ali

 

 
 

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Felipão por Mano: muda ou não muda?

Dentro da complexidade do futebol não há apenas um elemento que resulta em sucesso ou em fracasso. Tudo conta e tudo compõe, incluindo os mínimos detalhes, um trabalho que dá certo e um que dá errado. A trajetória de um treinador dentro de um clube também acompanha essa linha. Luiz Felipe Scolari não foi campeão brasileiro no Palmeiras em 2018 apenas pelo seu carisma, por exemplo. E também não viu seu time desmoronar neste ano apenas por “falta de repertório”, como disseram muitos. Tudo conta. Tudo compõe.
Para simplificar e tornar didático, quero dividir as competências de um treinador em dois grandes temas: as competências técnicas e as de gestão do ambiente. Para mim é a junção do êxito nessas duas grandes áreas que faz um treinador ganhar títulos de forma recorrente.
As competências técnicas são as específicas de dentro das quatro linhas. Primeiramente, um treinador deve ter uma ideia de jogo. Saber o que quer de sua equipe em campo em todos os momentos do jogo, com e sem a bola. Passa por isso uma avaliação inteligente do elenco disponível para que seja extraído o melhor de cada peça. Também conta aqui uma flexibilidade do treinador em seu conceito de acordo com o que a equipe for respondendo no dia a dia.
Após isso, são necessários conhecimentos de metodologia de treino para operacionalizar as ideias. E é fundamental também uma leitura de jogo apurada para entender como superar as fraquezas dos adversários e para alterar a própria equipe de acordo com as circunstâncias de cada partida.
Já as competências de gestão do ambiente tem a ver com a liderança, a comunicação e as relações interpessoais do treinador. O bom trato com o atleta, com os dirigentes e com a imprensa é fundamental para o treinador ser vitorioso. O futebol é um ambiente hostil e cheio de cobranças por natureza. Um técnico que não saiba fazer com eficácia a gestão desse cenário dificilmente terá sucesso.
Quando Felipão voltou ao Palmeiras no ano passado suas habilidades de liderança foram extremamente úteis para a equipe ganhar o Brasileirão. Em campo, ele mudou alguns conceitos, mas havia uma equipe bem treinada por seu antecessor Róger Machado. Porém, para este ano quando se esperava um trabalho de campo mais autoral de Felipão não foi possível termos um jeito muito elaborado de jogar. Nem nos melhores momentos do verdão na temporada vimos conceitos de jogo bem definidos. A qualidade técnica dos jogadores e uma imposição física deles sempre se mostraram as maiores virtudes da equipe.
Mano Menezes chega com o desafio de trazer um frescor ao vestiário e de colocar mais organização a equipe para defender, atacar e fazer transições. No curto prazo, é possível focar mais ou na questão de campo ou na gestão do ambiente. Vai do feeling de quem chega saber identificar rapidamente o problema momentâneo. Mas para um trabalho ser vitorioso no médio/longo prazo é  necessário ter competência nas duas áreas. Muitos técnicos duram pouco tempo nos clubes por sempre focar apenas uma delas.
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Sobre a amplitude como regra e a assimetria como opção

Erik Ten Hag, do Ajax: campo pequeno, ataques grandes. (Foto: Reprodução/Fox Sports)

 
O bom futebol é jogado com ideias. O mau futebol também. Quem trabalha com futebol deve acostumar-se a um problema duplo: ao mesmo tempo em que não podemos abdicar das ideias, também não há como considerá-las garantias de resultado. São caminhos menos infinitos do que o próprio jogo.
Ao longo do tempo, de acordo com os modismos de cada lugar e época, algumas ideias se cristalizam e são tidas como pré-requisitos para se jogar bem futebol. Na linguagem brasileira, uma dessas ideias atende pelo nome de amplitude. Na linguagem portuguesa, largura.
Nesta coluna, gostaria de trabalhar algumas ideias sobre amplitude, não mais como um princípio indispensável para jogar bem futebol, mas como um dos diversos caminhos possíveis na materialização de um dado modelo de jogo.
Vejamos.

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Simetrias. Se fizermos o curso de Tática, nesta mesma Universidade do Futebol, encontraremos que ‘amplitude é a distância entre os extremos de uma variação periódica’. Da física, podemos nos lembrar que amplitude é ‘o valor do deslocamento máximo da onda’. As definições de amplitude são várias, mas não é nelas que gostaria de me estender aqui. Na verdade, gostaria de fazer uma pequena curva apenas para lembrar de uma noção anterior à noção de amplitude que, ainda que discreta, está bastante presente quando tratamos dela no futebol: trata-se da noção de simetria.
Leio em uma página simples que a simetria reflexiva (aquela do espelho) pode ser vista quando ‘uma linha é desenhada sobre um objeto de tal forma que as duas metades sejam imagens especulares umas das outras’. Em um objeto simétrico, as duas metades são iguais. Aqui, não consigo deixar de pensar que se traçarmos uma linha, de um gol a outro, em qualquer um dos desenhos táticos que praticamente todos nós pensamos para as nossas equipes, talvez não haja um sequer que não seja simétrico. Todas as nossas distribuições são ordenadas, isométricas, equiláteras. Talvez porque ainda tenhamos resquícios (às vezes muito fortes, às vezes não) de um certo traço cartesiano do pensamento, de uma certa ordem matemática que aprendemos ser importante para resolução dos nossos cálculos, da nossa vida e, evidentemente, do nosso jogo.
Mas quando jogado, onde está a simetria no jogo? Aquela que desenhamos nos nossos campinhos se esvai, dissolve no primeiro segundo. A ordem existe, porque o caos gera novas ordens, mas a simetria vai se perdendo, porque o futebol é jogo, é jogo coletivo, é jogo coletivo de invasão, porque a bola é um atrator violentíssimo, que talvez seja justamente responsável por deixar o jogo assimétrico na sua raiz. Estou fazendo especulações para dizer que não acho que a simetria deva ser vista como a única forma de organização (ofensiva, especialmente) de uma dada equipe. Na verdade, tenho me convencido de que os ataques assimétricos tendem a confundir mais as defesas modernas mais do que os simétricos, exatamente porque existe uma certeza, por parte das duas equipes, que haverá uma ocupação clássica do espaço. Outro dia, em uma disciplina ao lado do professor Alcides Scaglia, achei curioso como os jogadores, que poderiam marcar pontos em três alvos distribuídos no fundo do campo, com um deles valendo quatro vezes mais do que um dos outros, estavam todos comportadinhos, distribuídos organizadamente na zona ofensiva. Simetria.
Olhando a simetria com algum distanciamento, creio que podemos entender alguns dos limites da amplitude.

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Tempo e Espaços. Ainda que estejam subentendidas, tempo e espaço são duas dimensões essenciais ao jogo de futebol (Menotti dizia que a terceira é o engano, que citarei adiante). Quando falamos de amplitude, falamos portanto de uma forma específica de uso do espaço, em um momento específico do jogo, que é o momento ofensivo, em zonas específicas do campo (há zonas em que a amplitude é mais necessária – também falarei disso abaixo). Tomemos como ponto de partida que amplitude seja ‘a ocupação do terreno de jogo em largura quando a equipe está atacando’, como conceituado pelo colega Rodrigo Azevedo Leitão, em 2008. Ao lado da profundidade, é uma das formas de se fazer o chamado campo grande no ataque, como nos acostumamos a dizer.
Vejo pelo menos duas ideias escondidas sob a noção de campo grande. Uma é que o campo grande condiciona o adversário a também defender em um espaço mais largo, o que significa que serão supostamente maiores as chances de criação de espaços intrasetoriais – ou seja, espaços entre os jogadores de um mesmo setor, de uma mesma linha. Ao mesmo tempo, manter jogadores abertos nos dois lados do campo permite, por exemplo, a possibilidade de longos passes em inversão, ou às vezes balançando o adversário para um lado quando, na verdade, o objetivo é finalizar do outro. Os colegas certamente já ouviram Pep Guardiola, em algum momento, falando sobre isso. Talvez o gol de Pedro, neste memorável Barcelona x Real Madrid, seja um exemplo pertinente neste sentido.
O ponto que me inquieta é o seguinte: a meu ver, temos entendido a amplitude não mais como uma das possibilidades de distribuição espacial, mas sim como uma regra inviolável de distribuição espacial – um princípio obrigatório para qualquer equipe que deseja jogar bem futebol. Por outro lado, há diversos exemplos, inclusive recentes, de equipes assimétricas, que abdicam da amplitude no ataque, e também jogam bem futebol. Vou até mais longe: para determinados modelos (de ataques apoiados, inclusive) alargar o campo pode ser contraproducente. E não há problema algum nisso. Na verdade, a grandeza do jogo real faz com que as possibilidades de jogá-lo bem sejam precisamente infinitas.

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Conexões. Vamos pensar em uma equipe que deseja um ataque mais elaborado, uma progressão curta e cheia de apoios, independentemente do corredor (central ou laterais). Neste caso, você concordará comigo que é saudável que o portador da bola, especialmente nas intermediárias, tenha um número razoável de opções de passe. Sinto que normalizamos um pouco a ideia de duas opções de passe (porque nos acostumamos aos triângulos ofensivos), mas suponhamos que nossa equipe queira mais, queira que o portador da bola tenha três ou mais opções de passe. Assim, será preciso que o setor da bola esteja constantemente povoado e que o portador tenha diversas possibilidades de conexões – ou nosso modelo terá problemas.
Os colegas Israel Teoldo, José Guilherme e Júlio Garganta, no ótimo ‘Para um futebol jogado com ideias’, caracterizam este setor da bola como o centro de jogo. Segundo eles, o centro de jogo é ‘uma referência espacial dinâmica, em forma de circunferência com raio de 9,15 metros a partir do epicentro de jogo [a bola]’. Sendo a bola, por motivos óbvios, um atrator fundamental, consideremos então que as opções de passe a que me referi acima devem estar preferencialmente no centro de jogo (ou tão próximas dele quanto possível), tendo em conta aquele esboço de modelo que estabelecemos para nossa equipe. Quanto mais opções de passes curtos/médios, melhores as chances de progredirmos por baixo.
O Ajax, que nos encantou no primeiro semestre, era uma equipe que sabia muito bem como estabelecer essas conexões a partir de uma grande flexibilidade posicional. Perdemos as contas das vezes em que David Neres atravessou o campo para criar superioridades com Hakim Ziyech. Da mesma forma, um jogador absolutamente elogiável naquele time (mas que passou despercebido) era Daley Blind, que embora jogando como quarto zagueiro, tinha liberdade para fugir da própria zona e ocupar espaços incomuns para um defensor – justamente para estabelecer as conexões necessárias à manutenção da posse. O caso de Blind é um ótimo exemplo de como a criação de linhas de passe pode solicitar um certo desrespeito ao espaço, um verso solto, uma certa desobediência. Só que a amplitude, ao menos como percebida por nós, está mais próxima do oposto, de um respeito inquestionável, uma certa disposição previsível do espaço, que também causa uma expectativa previsível do adversário. O engano, de que falava Menotti, torna-se mais raro.
Se aquela nossa equipe deseja atacar por baixo, com inúmeros apoios, haverá momentos em que não apenas jogadores mais distantes podem buscar o setor da bola (ainda que do lado oposto), como também seja preciso que outros jogadores centralizem – caso queiramos manter o equilíbrio – que não deve ser apenas defensivo. Neste caso, concordamos que a amplitude será menor.
E que mesmo assim é possível atacar bem.

O Ajax, de Erik Ten Hag, contra a Juventus, há poucos meses. A amplitude é baixa e não como uma circunstância, mas como um padrão. E havia ataques de muito bom nível.

 
Localização. Sinto que parte razoável dos nossos ideais sobre a largura ganharam corpo com o recente sucesso de Pep Guardiola – que vários de nós tentamos emular. Como os colegas sabem, Pep é um grande entusiasta do chamado juego de posición, muito embora Juanma Lillo, um dos seus grandes mentores, tenha alertado, no livro Pep Guardiola: A Evolução, que a nomenclatura mais adequada seria juego de localización, uma vez que a palavra localização seja, segundo ele, a que melhor relaciona a posição e a situação com uma intencionalidade tática.
Sobre a amplitude, vamos recorrer a uma citação do próprio Guardiola, no mesmo livro:
“(…) se o seu lateral não corre para cima e para baixo por oitenta metros sem parar, você tem de se adaptar a isso. Se colocar o extremo por dentro, meu lateral sobe, mas se meu lateral não está em condições de subir com todo o vigor, então tenho que colocá-lo por dentro para que jogue, e abrir o campo com o extremo. Porque você não pode atacar com profundidade se não tiver amplitude. É impossível. E tem de adaptar seu ataque a essa realidade. Agora, se tenho um lateral que é uma máquina, que vai para cima e para baixo sem parar… Mas minha teoria (e creio que o futebol será assim nos próximos tempos, e só falo do jogo posicional e não de outro modelo) é que não existem feras capazes de resistir toda uma temporada indo para cima e para baixo, correndo oitenta metros a cada ação. Ou talvez eles aguentem uma temporada, mas na seguinte já sofrem e na terceira não aguentam.”
Repare comigo duas coisas: Pep admite que fala a partir do juego de posición – e não de qualquer outro lugar. É importante fazer este adendo porque tanto Pep não foi tão influenciado por nenhum outro modelo (lembre-se da sua formação no Barcelona e do Dream Team com Johan Cruyff), quanto nós, brasileiros, não fomos exatamente educados a partir deste modelo. Grossíssimo modo (e para não me estender aqui) acho razoável dizer que o futebol brasileiro, na sua construção histórica, foi mais bola do que espaço. Veja bem: ele também foi espaço, mas foi mais ainda mais bola. Jonathan Wilson, no cultuado A Pirâmide Invertida, faz uma observação necessária neste sentido, sobre o Brasil de 1982 (que há quem questione porque não teria amplitude):
“Desse modo, a formação era um 4-2-2-2, com uma forte coluna central flanqueada por dois laterais ofensivos, Leandro e Júnior. Em um contexto europeu, a análise indicaria um time sem amplitude para os lados, mas o Brasil tinha tanta fluidez e qualidade com a posse da bola que criava a amplitude com o próprio movimento.
A segunda coisa na fala de Pep é que ele diz que é ‘impossível’ atacar com profundidade se não houver amplitude. Bom, Guardiola é genial, mas será mesmo que é impossível? Com as citações que fiz acima, me fica mais ou menos claro que é impossível ter profundidade sem amplitude se olharmos a partir da localização. Mas a localização não é a única forma de olhar para o jogo. A partir da localização, a amplitude é obrigatória em toda a fase ofensiva – ou em parte dela, como veremos abaixo. Em outros olhares, a amplitude pode ser facultativa e contextual. Vejamos.
Este gráfico está disponível no Relatório Técnico da última Copa do Mundo da FIFA. Nele, estão dispostas as larguras médias (amplitudes) de cada uma das 32 seleções. Repare que aquelas que obtiveram os melhores resultados, inclusive a França, não foram necessariamente as que tiveram as maiores amplitudes.

 
Largura Contextual. Pense comigo em uma divisão do campo em quatro zonas horizontais (você pode visualizá-las na página 363 deste artigo). Os professores Israel, Garganta e José Guilherme, no mesmo livro que citei no início, chamam essas zonas de setor defensivo, setor médio defensivo, setor médio ofensivo e setor ofensivo – considere os nomes que achar razoáveis. Como você e eu sabemos, mesmo Pep Guardiola, para quem a amplitude é fundamental, considera que ela passa a ser secundária em uma das zonas. No caso, é a zona ofensiva, onde ele julga necessária uma certa liberdade para que os jogadores façam o que bem entenderem. Isto está claro neste famoso vídeo de Thierry Henry, explicando parte do pensamento guardiolista. Ou seja, o próprio Guardiola reconhece que, na última parte do campo, a amplitude passa a ser secundária ao movimento – o alvo está no meio, afinal. Vocês sabem que até outro dia (talvez até hoje) Thomas Tuchel, agora treinador do Paris Saint Germain, montava pequenos campos em forma de hexágonos, justamente para condicionar os atletas a centralizarem as jogadas de ataque nos metros finais.
Nas duas primeiras zonas, setor defensivo e médio defensivo, creio que devemos colocar outra variável em conta: o risco. Os riscos de reduzir a amplitude no campo ofensivo são válidos para desequilibrar a defesa adversária, mas não acho que o mesmo aconteça nas duas zonas defensivas. Especialmente contra equipes que pressionam bem, creio que devemos sim alargar o campo, ainda que laterais ou pontas, a meu ver, possam ter liberdade para buscar o jogo nas faixas que julgarem haver espaços a ocupar, de acordo com a posição de companheiros e adversários (sobre isso, falei um pouco neste texto). Creio até que podemos imaginar um postulado próximo do seguinte: quanto mais próxima a bola estiver do gol adversário, menores serão as necessidades de amplitude. Repare bem, não é que a amplitude será obrigatoriamente menor, mas ela pode ser flexibilizada. Neste sentido, desconfio que a amplitude não seja geral, mas sim contextual (depende da altura da bola no campo) e, além disso, seja gradual – haverá equipes com alta, média e baixa amplitude. Assim como não há equipes sem ideias, não há equipes sem amplitude.
Creio que o grande pulo do gato esteja no setor médio ofensivo. Ali, a meu ver, há infinitas possibilidades de ataques que abram mão da amplitude e que se organizem em função da bola, não da organização do espaço. Este é o grande ponto: pode haver ótimos ataques com elevada amplitude, mas também pode haver ótimos ataques com baixíssima amplitude, valorizando a interação dos jogadores em zonas mais próximas da bola e aumentando a densidade na periferia do centro de jogo inclusive como forma de proteger-se em uma possível transição do adversário. A meu ver, é nesta zona que vivem as maiores possibilidades de uma eventual desobediência, de um uso mais livre do espaço, onde podemos questionar mais livremente os ditames da posição.

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Liberdade Ofensiva. Para pensar um pouco além dos ditames da posição, é necessário considerar a noção de liberdade – que destaquei sutilmente durante o texto. Veja bem, liberdade não é anarquia. Vejo que dar liberdade a determinados jogadores no momento ofensivo significa que, de acordo com os problemas do jogo (que são infinitos), o próprio atleta está livre, tem autonomia para tomar as decisões que julgar adequadas, desde que vinculadas ao modelo de jogo construído. O ponta pode atravessar o campo e criar superioridades numéricas no lado oposto. O lateral pode entrar em diagonal, o zagueiro pode criar uma linha de passe muitos metros adiante. Em uma dada zona do campo, um atleta pode julgar adequado abrir mais o campo, mas na mesma zona, em uma outra situação, o atleta pode se sentir confortável fazendo o oposto. Ou pode ser que em um dado ataque, aquela nossa equipe deixe um lado descoberto, testando os limites defensivos do adversário.
Esses movimentos, que às vezes partem mais da bola do que do espaço, podem ser terríveis para marcações zonais ou individuais. Como não temos muitas individuais puras, consideremos aqui as individuais no setor. Se sou um lateral-esquerdo e marco o atleta que entra no meu setor, como me comporto quando a equipe adversária se desloca inteira para o lado contrário, sem que ninguém sobre no meu setor? Claro, posso centralizar, mas repare que fazendo isso, fui indiretamente obrigado a ocupar um outro setor que não o meu. Esta é outra potencial vantagem na ausência de amplitude: condicionando o próprio ataque, ela condiciona a defesa adversária, só que de uma forma mais incomum do que aquela disposição que abre o campo para gerar espaços por dentro.
Mauricio Pochettino, em recente entrevista ao site argentino Enganche, fez uma fala muito bonita sobre sua visão da liberdade no momento ofensivo. A meu ver, ela está diretamente relacionada às possibilidades de organização ofensiva (lembrando que a ordem no jogo nasce do caos) e às possibilidades de superação da amplitude como regra. Deixo a citação no idioma original:
“Al final, el jugador de hoy te demanda desde lo táctico, porque tiene más conocimiento que antes. Y esto ocurre debido a las redes sociales y al material disponible para todos mediante la tecnología. El jugador de hoy quiere que quien le entrena le otorgue conocimientos tácticos. Por mi parte, dentro de esa táctica o estrategia vive la idea de dejarle al futbolista la libertad para que encuentre la inspiración. Y eso no solamente se trabaja. Eso se demuestra mediante la filosofía que utilices para jugar de una manera determinada. Si me preguntas a mí, la flexibilidad táctica es la que hace que el futbolista pueda encontrar la inspiración y que pueda tomar las decisiones propias que pueden hacer que un equipo sea impredecible.”
 

Um recorte de West Ham v Norwich, jogado no último sábado. O Norwich (de cinza) tem se destacado por um jogo apoiado, elaborado, muito gradável. O jogador mais abaixo na imagem é Lewis – lateral-esquerdo! Repare a concentração dos jogadores no lado direito e como isso condiciona o posicionamento do West Ham.

 
No início desta coluna, falamos de ideias. Bom, no mesmo livro Pep Guardiola: A Evolução, que citei acima, há uma citação de Noel Sanvicente, ex-treinador da seleção venezuelana, que cabe aqui:
“É que o futebol, no fundo, é um debate entre ideias, um debate ideológico. Por isso o fundamental não é tanto ganhar ou perder, mas o caminho que você escolhe e as razões pelas quais você o escolheu. A riqueza do futebol reside no intercâmbio de ideias que se produz constantemente.”
De alguma forma, espero ter trazido ideias que possam nos fazer refletir sobre a localização da própria amplitude. Do ponto de vista teórico, fico pensando se a amplitude/largura não estaria mais para um sub-princípio (ou algo do tipo) do que para um princípio. É uma discussão que deixo para vocês. Do ponto de vista prático, penso se as boas equipes passariam a não mais ter amplitude como uma regra, mas sim como uma das possibilidades de organização ofensiva, sabendo das vantagens do campo grande, mas também sabendo que pode haver situações em que o campo pequeno talvez resolva problemas que sequer imaginamos.
Continuamos em breve.

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Boas finanças para um bom futebol

Estão em andamento as reuniões entre integrantes dos clubes da série A e da série B do Brasil para implementar, a partir de 2020, as regras para um “fair-play” financeiro. Em outras palavras e sem estrangeirismos, um jogo limpo financeiro, uma normatização para boas condutas no uso dos recursos dos clubes de futebol. Para que não gastem mais do que arrecadam. Os que descumprirem com as regras, serão punidos.
É o que acontece no futebol europeu: o Barcelona já foi punido por conta disso e o Milan está excluído de torneios intercontinentais por infringir as normativas de lá. Na França existe já esta regra há muito tempo: os clubes não podem terminar o ano “no vermelho”. Era inclusive uma explicação do porquê o futebol francês não ser tão badalado quanto o dos vizinhos Espanha, Alemanha e Inglaterra. Isso mudou com a entrada de investidores estrangeiros, por exemplo, árabes no Paris e russos no Mônaco.
Ingênuo pensar que boa conduta financeira é apenas não gastar mais do que se arrecada e apenas isso. Vai além. O “fair-play” financeiro, a prazo, fará com que os clubes otimizem os seus gastos e priorizem alguns setores, não apenas para os resultados dentro de campo, mas sim resultados organizacionais que proporcionem um alicerce sustentável para a existência do clube futuramente. Favorecerá o desenvolvimento dos seus colaboradores e os seus recursos internos. Com o tempo e com as restrições de orçamento, estabelecerá identidade e cultura de trabalho na instituição, que passará a recorrer mais às categorias formativas. Com o passar dos anos, estes jogadores da base subirão ao plantel principal com esta filosofia e com esta identidade de trabalho. Um bom futebol: sem constantes trocas de treinadores e contratos de poucos meses com futebolistas.
Nessa linha de pensamento, o profissionalismo será valorizado, o cumprimento de metas, a gestão em torno do ambiente do mercado, o trabalho com vistas ao seu público-alvo (sua torcida) e não para grupos de influência internos, que valorizam quem põe mais dinheiro uma vez que as contas não fecham, já que são necessários os resultados esportivos. Custe o que custar. Essa lógica equivocada do “custe o que custar” compromete obviamente as finanças dos clubes e geram mais desavenças organizacionais que afastam quaisquer lampejos de profissionalismo. Exemplos dessa falta de gestão no futebol do Brasil são vários e afetam grandes instituições.

Foto: Reprodução/Divulgação

 
Há quem possa dizer: “meu time não é banco. O meu clube não é banco para fechar ‘no azul’”. Ora, exemplos não faltam de péssimas gestões que arruinaram clubes. O torcedor que diz isso quer ver a existência do clube comprometida? Não. Quer ver a gestão do clube do coração nas mãos de um “cartola” que, à moda antiga, investe recursos sem fim em troca de favorecimento político e que, aos poucos, “manda” neste clube? Com o tempo este torcedor acaba se afastando. Certamente não quer isso.
Assim sendo, o “fair-play” financeiro é mais do que boas práticas na lida com os recursos dos clubes. É um ponto muito a favor para a governança, profissionalismo, comunicação e transparência das entidades esportivas. Especialmente as do futebol, a fim de valorizar o produto (o esporte), atrair e cativar mais torcedores e investidores.

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No passado mês de agosto completei 2 anos como colunista neste espaço. Quero agradecer à Universidade do Futebol pela confiança e a todos os leitores pela paciência e “audiência” na leitura desta partilha de ideias e reflexões. Obrigado pelo carinho!

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Em tempo mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:

“Esforce-se não para ser um sucesso, mas sim para ser de valor”.
Albert Einstein