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Entre o que e o onde

Bom dia e bem-vindos ao nosso Entre o Direito e o Esporte” desse mês de agosto! Hoje vamos continuar a nossa conversa sobre a Justiça Desportiva. Hoje vamos dar o próximo passo depois de ver o que a Justiça Desportiva julga. Hoje vamos conversar sobre qual é a Justiça Desportiva que julga o que. Assim, nós vamos juntar o “que” com o “onde”.
E, para deixar tudo mais direto, esse aqui é o mapa do dia: a primeira pergunta do dia é “só tem uma Justiça Desportiva?” – e, surpresa, não; depois vamos ver como esse “monte” de Justiça Desportiva (JD) funciona no futebol – quais são essas JDs; e fechamos a semana dando uma olhada no que cada uma dessas JDs do futebol julga.
Bora lá?
E aí, só tem uma Justiça Desportiva? É… não. E por que? Essa é uma boa pergunta e que pode ter várias respostas – desde o “custo” dessa Justiça até a tal da “especificidade” de cada esporte (vai, as regras do futebol são pelo menos um pouco diferentes das regras do arco-e-flecha ou da bocha).
Calma… quer dizer que cada modalidade (de esporte) tem a sua Justiça Desportiva? Também não! Cada “entidade nacional de administração do desporto” (ENAD, ou as tais das Federações nacionais, como a CBF) tem ao lado uma Justiça Desportiva. E isso sem contar o doping que agora tem o seu próprio Tribunal de Justiça Desportiva – o TJD-AD.
Os dois pontos principais aqui para entender são: modalidade e território. Cada “ENAD” (ou Federação nacional) tem sua(s) modalidade(s) e seu território. Como é o caso da Confederação Brasileira de Desportos na Neve com suas cinco modalidades olímpicas e sua modalidade paraolímpica no Brasil inteiro.
“Tá, acho que fez sentido… mas como tudo isso aí funciona?”. Boa pergunta! Se cada Justiça Desportiva é ligada aos esportes de uma “ENAD” o tal do “Superior Tribunal de Justiça Desportiva” que a gente ouve sempre falar é só do futebol, né? Bom, é quase um sim dessa vez!
O Código Brasileiro de Justiça Desportiva “engessa” um pouco o sistema de justiça desportiva nesse ponto já que traz a ideia do nosso Poder Judiciário brasileiro para dentro do esporte. A ver: tem dois grandes “órgãos judicantes” no “judiciário desportivo-disciplinar” brasileiro, um é o tal do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (da modalidade “escolha o nome”) e o outro é o Tribunal de Justiça Desportiva (da modalidade “escolha o nome”).
O Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) cuida de todo o Brasil (como a CBF cuida de todo o futebol no Brasil) e é dividido em “Pleno” e “Comissões Disciplinares”. E cada “região” (como São Paulo com a Federação Paulista de Futebol) tem o seu Tribunal de Justiça Desportiva (TJD), também com seu “Pleno” e suas “Comissões Disciplinares”.
“Tá… tem mais de uma Justiça Desportiva. Cada Federação tem uma Justiça Desportiva do lado. E cada Justiça Desportiva é dividida em SJTD e TJD com seus Plenos e suas Comissões Disciplinares. Mas… e eu com isso?”. Fácil, é aí o que a gente viu semana passada entra em jogo!
O “sistema de justiça desportiva disciplinar brasileiro” (nome chique, né?) cuida de “toda matéria relativa a competições e infrações disciplinares” (desde briga no jogo até jogador jogando sem poder jogar). E tudo isso pode acontecer em uma competição nacional, regional ou municipal. E quem julga o que?
Tudo aquilo que acontece em uma competição interestadual ou nacional (Campeonato Brasileiro e a Copa do Brasil, por exemplo) vai para o STJD. E, quase sempre, começa em uma das Comissões Disciplinares (Nacionais), e daí vai parar no Pleno depois de uma primeira decisão quando alguém “não concordar” e apelar (apelar é um desses “pedaços de papel com coisa escrita de um jeito específico” e não outra coisa, viu?).
Já tudo aquilo que acontece em uma competição regional (Campeonato Carioca) e até municipal (Taça BH) vai para o TJD, incluindo aí as competições promovidas, organizadas ou autorizadas pela respectiva “entidade regional de administração do desporto” (como a Federação Paraense de Futebol). E segue a mesma lógica ao começar em uma das Comissões Disciplinares e depois o Pleno, só que com uma grande diferença: a decisão do Pleno do TJD pode ser apelada ao Pleno do STJD – quase um “super trunfo”.
A regra geral de hoje é até que simples: cada um no seu quadrado. E nesse “cada um no seu quadrado” é importante lembrar que a gente não pode parar no quadrado errado. Senão o que era para ser julgado, não vai ser – e não porque “não querem” julgar e, sim, porque “não podem”.
E, de novo, o nosso direito desportivo aparece no dia a dia do seu clube! É isso pessoal, convido vocês a continuar no “Entre o Direito e o Esporte”. E semana que vem vamos continuar nossa conversa sobre a Justiça Desportiva! Nos vemos na próxima sexta-feira no “quem”. Combinado? Deixo meu convite para falarem comigo por aqui, pelo meu LinkedIn ou pelo meu Twitter. Valeu!
 

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Poupar? Falta intensidade? Mesmo com a pausa da Copa? O que tudo isso significa no futebol?

A discussão atual do futebol brasileiro está em torno dos times que poupam seus jogadores titulares, priorizando determinada competição. Abre-se uma janela interessante para falarmos sobre o mal feito calendário esportivo do nosso país, onde realmente os clubes grandes jogam demais e os clubes pequenos jogam pouco. Porém, ao mesmo tempo que reacende uma discussão importante esse assunto nos cega em outros aspectos, aumentando a crença que há atualmente no inconsciente coletivo do futebol de que é impossível jogar em alto nível duas vezes por semana.
Historicamente o estudo e a literatura esportiva no Brasil foram feitos e produzidos pelos preparadores físicos. Profissionais que estudaram, estiveram nos bancos acadêmicos e agregaram demais na evolução do esporte. Mas o viés desse conhecimento é evidentemente físico, deixando de lado e até muitas vezes retirando as outras variáveis do jogo, que são técnicas, táticas e psicológicas/emocionais/cognitivas. Ao passo que nossos treinadores tradicionalmente sempre tiveram muito conhecimento do dia-a-dia da bola e pouco de questões físicas, médicas e fisiológicas passou-se a aceitar sem muito questionar que o ‘cansaço’ corporal do atleta é que determinaria as escalações.
Vale aqui também relembrar – e é algo que eu sempre critico no futebol brasileiro – a nossa má qualidade nos treinamentos. Aqui muitas vezes se treina com preguiça, de qualquer jeito, sem cobrança e sem uma metodologia definida. Com isso, sem a tão falada intensidade no treino não há como tê-la no jogo. Estamos assim tendo jogadores que não conseguem jogar em alto ritmo nem ao menos durante 90 minutos muito menos em 180 duas vezes por semana.
Que fique bem claro que não estou criticando os preparadores físicos, que muito ajudaram o futebol brasileiro Mas o próprio papel deles nas maiores e melhores comissões técnicas do mundo já mudou. Hoje a questão física tem o seu peso, mas integrada ao jogo, as ideias e aos comportamentos. Todo e qualquer trabalho no futebol moderno é feito com bola, trabalhando a parte física a partir dos conceitos que vão nortear o modelo de jogo pretendido.
O cansaço aqui não é só físico. É mental e cognitivo também. É uma falta de concentração e até entendimento para a execução das ideias. É a ausência de treinos mais bem elaborados. E mesmo com poucas atividades dá para criar comportamentos bem interessantes. Mas para muitos a falta de competência já tem desculpa pronta: os jogadores estão cansados.
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Sobre o jogo ideal e o jogo real

Pep Guardiola: um idealismo realista? (Foto: Reuters)

 
Aos olhos de um garoto que jogava futsal, muitas coisas me soavam interessantes, mas uma, em especial, sempre me inquietava: por que todas as jogadas que ensaiávamos em cada tempo técnico sempre davam errado? Veja bem, nossas ideias eram absolutamente sofisticadas: fulano toca para sicrano, que rola metros atrás para o beltrano, que apenas pisa para o fulano, que a essa altura já passou pelos outros dois e chutou a gol. No campo das ideias, era uma estratégia infalível! Mas, quando jogávamos de fato, tudo terminava exatamente diferente, às vezes com a bola em outras redes que não as do adversário.
Precisei de tempo e maturidade para perceber a distância mais do que razoável entre nossas ideias e o jogo jogado. Existem, por assim dizer, dois jogos diferentes: um jogo ideal e um jogo real. Como jogo ideal, pensemos não apenas no jogo perfeito, sonhado, mas sim em toda a narrativa interna que o precede, onde depositamos todos os nossos desejos e expectativas mais otimistas. Como jogo real, pensemos no jogo jogado, em todas as suas dimensões, com a oposição, as contradições e a inteligência própria que parecem estar no coração do próprio jogo. Geralmente, ideal e real não estão em consonância. Vejamos.
Uma das diferenças entre o jogo ideal e o jogo real está flagrante: o jogo ideal é propriedade de quem nele pensa, o jogo ideal é pronome possessivo e estará, sempre, sob absoluto controle. Para o atleta, o jogo ideal é um gol decisivo nos acréscimos, são dois ou três dribles desconcertantes, um carrinho perfeito (para delírio da torcida) ou a mais bela defesa, decisiva. Para o treinador, o jogo ideal é domínio puro, nó tático, sincronia entre intenção e ação, elogios polpudos de imprensa e torcida, perfeita comunhão com atletas e diretoria. Uma semana de trabalho cheia, sem lesões, atletas no pico de performance, cada exercício de cada sessão nos mais perfeitos níveis de volume e de intensidade, seguidos das devidas recuperações. Todos os objetivos operacionalizados. Jogo ideal.
O problema é que o jogo ideal não se basta. É preciso sair da ilha e jogar o jogo real. E o jogo real está distante da utopia, pois é lesão e substituição, é um equívoco do árbitro, é uma falha de quem não se espera, é uma crítica absolutamente injusta. É vestiário difícil, é atleta insatisfeito, é treinador eventualmente obsessivo, é salário atrasado (às vezes no plural), é problema particular, é instabilidade extracampo, é treino que não sai como se pensa, enfim… são todas as circunstâncias que estão à margem ou no coração do jogo, prontas para interferir, em maior ou menor intensidade. Aos treinadores e treinadoras, atletas, comissão, diretoria e afins, cabe manejar essas contradições e, não bastasse isso, manejá-las em tempo real. Pois além das circunstâncias, o tempo do jogo também não é ideal. O jogo é todo real.
Assim como um cobertor curto não pode cobrir os pés e a cabeça ao mesmo tempo, o jogo real não pode atender à inteireza dos desejos de quem joga. As equipes que desejam muita posse podem não ter profundidade, as equipes que atacam em demasia podem sofrer em transição defensiva, as que abusam dos ataques diretos podem inutilizar os meias. Treinadores e treinadoras que priorizam uma equipe titular precisam lidar com a desmotivação de um ou outro reserva, mas os que valorizam os rodízios também precisam lidar com a estranheza de um ou outro atleta e da imprensa. Para o jogo real, é preciso que treinadores e treinadoras façam uma espécie de cálculo, como faziam os utilitaristas, que mostre se os bônus de um determinado modelo ou tomada de decisão compensam os ônus. Quando as contas não batem, é porque algo deve ser repensado.
Sabendo disso, me admira como as críticas de mesmo alguns dos mais sérios formadores de opinião são herdeiras do ideal, não do real. Pois as soluções do jogo estão muito longe da simplicidade: muitas vezes, substituir o jogador A pelo jogador B não basta, convocar o jogador X ao invés do Y não resolveria os problemas de uma determinada equipe (curiosamente, observações desta natureza são geralmente a posteriori), assim como descartar imediatamente um atleta em má fase, como se ele fosse um resíduo qualquer, está longe de ser uma solução adequada (afinal, o jogo real não se joga com lixo, mas com gente). Da mesma forma, me parece razoável afirmar que treinadores e treinadoras não são míopes: nós geralmente sabemos, em maior ou menor escala, sobre os problemas das nossas equipes. Mas saber basta? Todos sabemos que a vida boa é felicidade e alegria, mas isso não impede que, via de regra, a vida seja melancolia, incompletude e solidão. No processo de treino não é diferente: saber não basta. É preciso mais.
É preciso, por exemplo, que encaremos com absoluta seriedade o processo de treino. Se treino é jogo e jogo é treino, quer dizer que devemos jogar todos os dias, em maior ou menor complexidade, mas devemos jogar. Neste sentido, me parece que o treino fragmentado flerta intimamente com o jogo ideal: as variáveis estão sob controle absoluto, há tempo, espaço e tranquilidade para um ou vários chutes a gol, às vezes os adversários são fantasmas e nossa movimentação é perfeita, incrivelmente harmoniosa, e nós estamos absolutamente confiantes para o jogo. Mas o jogo é real. Sendo real, ele é oposição, é alternância, é instabilidade, é imprevisibilidade: é um mar bravo, revolto, no qual sobrevivem apenas os bons marinheiros e marinheiras, que são bons não porque tentam controlar o mar, mas porque cultivaram e cultivam um método para melhor adaptar-se a ele. Assim, parecem melhores as metodologias baseadas no jogo, pois são elas, em maior ou menor intensidade, que reproduzem as contradições do jogo real. Que reproduzem o mar, se você preferir.
O jogo real não nega, e jamais negará, o poder das ideias, pois nelas estão os alimentos da melhor qualidade para jogadores e para o próprio jogo. Mas isso não significa que devamos jogar o jogo real a partir das ilusões idealistas. As distâncias entre os dois estão para além do que podemos saltar.
E jogar o jogo real significa, também, saber até onde podemos ir.
 

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O fim de um canal é o fim de uma era?

Conforme anunciado, o Esporte Interativo anunciou sua saída da grade de canais na semana passada. Parte da sua programação passará para o “TNT” e “Space”, que não são conhecidos pelo esporte. Ademais, segundo nota, as redes sociais também passarão a abrigar muito do seu conteúdo.

Para muitos, é o fim. A emissora tem um valor inestimável, sobretudo em sua programação especializada para o Nordeste do Brasil, haja vista o vasto mercado consumidor da região e que cresceu simultaneamente com um campeonato regional muito bem sucedido, que é a Copa do Nordeste. Recentemente, com a aquisição do principal torneio de clubes do planeta, o canal ganhou mais projeção e evidência. Com isso, a programação ficou mais recheada e, a audiência, aumentou consideravelmente. Por conta disso muitos acham um passo atrás a sua saída da grade.

Uma transmissão do futebol pelo facebook. (Foto: infomoney.com.br)

 

Por outro lado, há outros que enxergam esta manobra como sendo estratégica. Em princípio não se sabe muito sobre a migração para canais não especializados em esporte, entretanto, partir para as redes sociais significa estar em contato com uma considerável fatia do mercado consumidor com grande poder de consumo e que não está mais ligada em aparelhos de televisão, mas sim nos tablets e smartphones a fazer muitas coisas ao mesmo tempo. E muito da programação do canal está voltado para este público, que está bastante conectado com as mais diversas fontes de comunicação e interage de maneira muito intensa. Curtem, compartilham, comentam. Se gostam, falam. Se não gostam, também falam. O “feedback” é imediato, constante e não tem fim.

Diante de uma revolução nas comunicações, o conteúdo tem que estar disponível sempre que necessário e as redes sociais permitem isso de uma maneira mais instantânea. Com tudo isso, é sugestão olharmos para a saída do Esporte Interativo da grade de canais como sendo estratégica e não o fim de uma era. É parte de um processo pelo qual a mídia do esporte passa e um desafio para todos os profissionais e o resultado pode ser muito positivo para os que têm apostado neste novo formato.

Em tempo: há 1 ano fazia a estreia da coluna aqui. Quero deixar meus sinceros agradecimentos à Universidade do Futebol e também aos leitores, pela confiança e carinho. Os textos são muito parte do que vivo no dia a dia e compartilhar com vocês é uma grande satisfação. Entre erros e acertos, temos que aprender com os equívocos e aprimorar o que vai bem, sempre tocando em frente. 

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O campeonato de quem se poupa

O calendário do futebol brasileiro é inviável. Enquanto o atual modelo reserva aos estaduais um período considerável da temporada e cria exigência de alto nível competitivo em muitos estágios do ano ao incitar a rivalidade em diferentes âmbitos, a cultura local tem dificuldade para admitir rotação de elencos e a penúria dos clubes limita a criação de grupos com nível técnico para subverter essa lógica. O excesso de jogos exige que atletas sejam poupados, mas todo o cenário contradiz e cria pressão exacerbada por desempenho. O cabo de guerra é antigo, mas ganhou força em agosto deste ano em função do alto número de partidas previstas para o período. A estratégia que mais influencia o rumo de campeonatos no país não tem nada a ver com esquema tático ou função dos principais destaques das equipes: o que decide taças é uma competição paralela sobre quem administra melhor as adversidades impostas pelo formato.
O grande exemplo nacional foi dado pelo Grêmio de 2017. Incentivado pelo início avassalador do Corinthians no Campeonato Brasileiro, o técnico Renato Gaúcho resolveu concentrar forças nas copas e poupou o elenco sempre que preciso na principal competição nacional. Perdeu uma chance considerável de brigar pelo título com a equipe paulista, que depois teve queda acentuada de rendimento, mas pôde celebrar a conquista da Copa Libertadores.
Além do caso em que os gaúchos foram bem sucedidos, a premiação da Copa do Brasil aumentou consideravelmente desde 2016, quando a Globo assinou novo contrato para direitos de transmissão do torneio. Neste ano, por exemplo, cada time recebeu R$ 500 mil apenas como taxa de participação, montante 94% maior do que na temporada anterior. A premiação do campeão chegará a R$ 68,7 milhões, R$ 5 milhões a menos do que a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) gastará com prêmios de todo o Campeonato Brasileiro no mesmo período. O Grêmio de 2017 amealhou R$ 24,7 milhões pelo título sul-americano.
Existe, portanto, uma lógica financeira para que os clubes deem prioridade à Copa do Brasil – é um certame com menos jogos e paga melhor do que o Brasileiro. Além disso, a hierarquia esportiva coloca a Libertadores, que é continental, no topo da escala de anseios – o torneio sul-americano, outrora concentrado no primeiro semestre, agora se espalha por todo o ano.
No entanto, conta também um aspecto narrativo. Qualquer derrota em um campeonato como o Brasileiro, que é disputado no sistema de pontos corridos, pode ser diluída. É difícil dimensionar, com a temporada em andamento, quais foram as partidas cruciais para apontar em que faixa a equipe vai se encaixar na tabela.
Com exceção de clássicos locais, goleadas acachapantes ou situações alarmantes (sequência de reveses ou proximidade com a zona de rebaixamento, por exemplo), o torneio de pontos corridos produz um abalo de narrativa bem menor do que as copas. Existe, portanto, um problema criado pelo ambiente para a comunicação do Campeonato Brasileiro resolver.
Se persistirem o modelo de calendário e a situação financeira debilitada dos clubes brasileiros, o foco seguirá voltado às copas. E se a cultura nacional continuar com dificuldade para assimilar a rotação dos elencos, o Campeonato Brasileiro vai ser um produto não apenas menos interessante, mas com uma dificuldade de distribuição cada vez maior.
Em outros contextos, dirigentes tomaram medidas para direcionar o contexto. Há casos de federações que limitaram o número de jogadores inscritos ou limitaram em contrato o uso de jogadores reservas, por exemplo, caminhos escolhidos para evitar que os estaduais ficassem ainda mais subjugados.
É humanamente impossível exigir de jogadores que eles tenham tantos ápices de desempenho durante a temporada (as retas finais de estaduais, as partidas decisivas das copas e todo o Campeonato Brasileiro, por exemplo). Com o atual modelo, porém, é justamente isso que se apresenta: uma demanda que supera em muito a capacidade física, mental ou espiritual de qualquer um. E a CBF, em vez de olhar para isso como uma chance de valorizar seu principal produto, adota uma passividade que tem feito o Campeonato Brasileiro perder terreno para outros produtos.
É difícil medir agora a consequência desse cenário. Contudo, há dois aspectos em que fica clara a relação: ao ser menos prioritário, o Campeonato Brasileiro perde em bilheteria e em relevância para a TV (audiência e valor de contratos, portanto). A decisão técnica das equipes acaba criando um ciclo que fará o torneio definhar em não muito tempo.
Vi em uma análise sobre a participação do Brasil na Copa de 2018 – e infelizmente não lembro o autor para dar o crédito devido – que há na eliminação para a Bélgica um aspecto mais assustador do que o 7 a 1: o entendimento de que é normal o único país pentacampeão mundial ter sido eliminado nas quartas de final. Pior do que o resultado vergonhoso é a redução de perspectiva ou de expectativa. Algo como o time que se acostumou a brigar por títulos ao longo da história e que hoje entra em competições apenas para evitar o descenso. Esse abalo de imagem é muito mais complicado do que o que acontece em campo.
Poupar jogadores é normal e acontece em todos os campeonatos. A relação com essas estratégias de elenco, porém, envolve toda a estrutura de comunicação e tem relação direta com o que os organizadores querem para si e para seus produtos. O problema não é quem poupa atletas, mas quem poupa trabalho.

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Princípio Metodológico das Propensões, segundo a Periodização Tática

O princípio das propensões, aliás é um termo do Popper que eu uso, significa que o contexto está mais propenso a X do que a Y, porque normalmente as pessoas dizem, “eu quero que faça isto ou faça aquilo”. Não! Eu quero que ele faça em função de um contexto determinado. Portanto eu tenho que parir é o contexto, não os comportamentos e isso é uma confusão do caraças das pessoas. Tenho que articular em função de como eu jogo, defendo de determinada maneira para poder atacar de determinada maneira, portanto eu estou preocupado com a transição defensiva, com a ofensiva. Portanto eu tenho que criar condições para que isso se organize de modo mais preferencial, para que haja uma familiaridade com uma determinada lógica. Portanto o Princípio das Propensões é isso, é o contexto acontecimental[1].

A comissão técnica deve estar atenta não somente à qualidade da sua ideia de jogo, mas também ao modo como ela é operacionalizada nos treinamentos ao longo da semana. Por isso, nem sempre o motivo de maus resultados está na ideia de jogo do treinador, mas na operacionalização da mesma[1].
Nesse sentido, a Periodização Tática está estruturada em determinados princípios metodológicos[2], que interagem, dão lógica e um sentido ao processo de treino, possibilitando que a equipe se desenvolva em todas as dimensões do desempenho com qualidade.
O princípio metodológico das propensões está relacionado à modelação dos contextos de exercitação, com o objetivo de criar contextos relativos ao jogar[3]que se pretende, que possibilitem o aparecimento do que se quer treinar com elevada frequência.
A ideia de propensão tem a ver com o fato de proporcionar que o contexto de exercitação seja mais propício ou provável à ocorrência de determinado acontecimento, neste caso, ao aparecimento de interações condizentes com a ideia de jogo do treinador.
Se um treinador quer aprimorar alguns aspectos da organização defensiva, como por exemplo, a coordenação e a dinâmica de pressão e coberturas da primeira e da segunda linha defensiva; o fecho do centro e a defesa do passe entre linhas, por uma razão lógica deverá criar exercícios que levem aos jogadores a estarem defendendo (da maneira pretendida) durante boa parte do tempo, tendo sempre em conta o padrão de solicitações que unidade de treino preconizada pelo Morfociclo Padrão requer.
https://vimeo.com/182921041
 

Claramente vemos que neste exercício de Diego Simeone, devido à manipulação do contexto, ou seja, as regras impostas, o espaço de jogo, a duração do exercício, o número de jogadores, o período de recuperação/exercitação e até as próprias intervenções do treinador são algumas das variáveis que permitem direcionar o contexto para o que lhe interessa, no caso os propósitos defensivos elencados no parágrafo anterior.

Nesta situação, pelo fato de existir uma linha que divide o espaço de jogo, não permitindo que quem defende “invada” o campo da equipe com posse, propicia que quem defende faça inúmeros movimentos de pressão, cobertura, fecho do centro e do espaço entre linha. Tudo isso com a ajuda de corredores demarcados, que auxiliam os jogadores a ocupar o melhor espaço durante o exercício.

Ainda que o foco esteja, neste caso específico, voltado para a organização defensiva, isso não significa que os propósitos ofensivos não sejam contemplados, pelo contrário. Deve-se atacar em função da maneira pretendida, e, inclusive, neste caso específico, os dois jogadores mais adiantados devem apresentar boa mobilidade, abrir linhas de passe e ter um bom perfilamento corporal na hora de receber o passe, pois só podem dar 1 toque na bola.

Quando treinei a equipe Sub-20 do Joinville, uma das preocupações era de que a equipe sempre estivesse bem compactada quando estivesse defendendo, principalmente em situações de marcação em bloco médio e baixo.


 
O vídeo acima se trata de um contexto criado em treino, que levasse os jogadores a estarem permanentemente próximos e compactos quando estivessem sem a posse da bola, de maneira natural, sem que a comissão técnica precisasse, obrigatoriamente, ficar intervindo neste sentido.
O espaço de jogo foi dividido em seis faixas e, só seria válido roubar a bola se a equipe estivesse ocupando duas faixas em profundidade (exceto quando a pressão fosse feita no campo do adversário – bloco alto, onde se poderia ocupar todas as faixas do campo ofensivo). Ainda, existem três corredores que ajudam na orientação espacial dos jogadores, tanto para atacar, como para defender.
Isto é, em função da manipulação do espaço e de uma simples regra, de maneira natural, os jogadores foram levados a estar sempre próximos um dos outros para defender, facilitando o pressing, os encurtamentos e a aquisição da ideia de jogo.
No vídeo abaixo, podemos ver a transferência dos conceitos treinados[1]no exercício anterior em competição: estar permanentemente compactado em bloco médio/baixo.

 
Portanto, o princípio das propensões tem a ver com a contextualização dos propósitos que se querem alvo de repetição sistemática, sendo que o que se pretende é que as preocupações de momento do treinador apareçam regularmente em treino, em vez de outras quaisquer – a todos os níveis. Não se trata de quantificar ações, mas de criar contextos de exercitação ricos, que levem à uma determinada dominância de interações relativas à ideia de jogo do treinador, fazendo com que os jogadores assimilem, incorporem e somatizem estes propósitos.
Conforme coloca Tamarit[1], para garantir que em cada dia do Morfociclo aconteça efetivamente o que queremos que aconteça – a todos os níveis, é fundamental que se produza uma redução sem empobrecimento, ou seja, uma redução sem perda do padrão identificador – a ideia de jogo, que será qualitativa e quantitativa ao mesmo tempo, garantindo que a aquisição pretendida aconteça da melhor forma possível.
Vale a pena destacar que o princípio metodológico das propensões não tem como finalidade propiciar a vivência exacerbada somenteda ideia de jogo do treinador nas suas diferentes escalas (macro princípios, meso princípios e micro princípios), mas também promover com elevada frequência o aparecimento de um determinado tipo de contração muscular (predominante), da matriz metabólica implicada, determinadas dinâmicas de desempenho e recuperação, da intensidade máxima relativa a vivenciar, e um conjunto de outras coisas, segundo o dia do Morfociclo.
 
 
[1]TAMARIT, Xavier.Periodización Táctica vs Periodización Táctica. Editorial MBF. Espanha, 2013.
[1]Ainda que o foco central da comissão técnica, para este dia em particular, fosse o aprimoramento de elementos defensivos, a equipe com a posse da bola deveria jogar igualmente em função dos propósitos da nossa ideia de jogo, como por exemplo, quando o adversário estivesse defendendo num bloco mais baixo, circular a bola para tentar abrir espaços no rival; Se o adversário estivesse com a linha mais alta, pressionando em bloco alto, tentar explorar o espaço deixado nas costas no menor tempo possível, sem perda de qualidade nas ações.
[1]TAVARES, José Fernando Ferreirinha. Entrevista. In TAMARIT, Xavier. Periodización Táctica vs Periodización Táctica. Editorial MBF. Espanha, 2013.
[2]Princípio Metodológico das Propensões, Progressão Complexa e Alternância Horizontal em especificidade.
[3]Jogar:O jogaré o tipo de futebol que uma equipe produz. São regularidades que identificam uma equipe. Escrevo em itálico para diferenciar um jogarde um “Jogo Geral”.
[1]FRADE, Vítor Manuel da Costa. Entrevista. In. TAMARIT, Xavier.Periodización Táctica vs Periodización Táctica. Editorial MBF. Espanha, 2013.

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Entre o Jogo e a Justiça Desportiva

Bem-vindos ao nossoEntre o Direito e o Esporte” de agosto aqui na Universidade do Futebol. Hoje nós vamos continuar nossa conversa sobre a “fina arte” do direito desportivo, vamos continuar nossa conversa sobre o jogo fora do jogo, vamos continuar nossa conversa sobre a Justiça Desportiva. Nessa sexta-feira nós vamos ver o nosso“o quê?”.
E para deixar tudo mais tranquilo de seguir, o nosso mapa de hoje é esse: vamos começar com o atleta e a Justiça Desportiva, depois vamos ver do seu time e a Justiça Desportiva, e fechamos com aquele bom “e o que mais?”.
Bora lá?
Afinal, o que a Justiça Desportiva (JD) julga? A JD julga o que acontece em uma competição (tipo o Brasileirão), inclusive as “questões disciplinares” (tipo aquela voadora no meio de campo, sabe?). Agora… na prática, o que isso quer dizer? Vou dar 03 exemplos do que a JD julga quando o jogador do seu time dá uma de feliz.
Imagina que o jogador do seu time sabe que aquele 1 a 0 está ótimo, que o seu time está cansado, e que o outro time tem a vantagem de jogar em casa. Imagina que o jogador do seu time resolve chamar a responsabilidade – fora de campo. Imagina que o jogador do seu time consegue atrasar a volta do intervalo em uns 30 minutos. E aí? Pois é, o seutime pode ser punido pela Justiça Desportiva, e punido com uma bela multa! De R$ 100 até R$ 100.000 por minuto. Que tal?
E se o jogador do seu time perde a cabeça em campo e fala um absurdo para um outro atleta? Ainda mais daqueles bem absurdos, sabe? Agora além da multa, que é de R$ 100 até R$ 100.000, o jogador do seu time vai ser suspenso – de 05 até 10 partidas. Por isso é bom nunca falar m* em campo!
Agora, o que acontece quando o jogador do seutime não só falou m* como também foi para cima do árbitro e deu um belo soco na cara quando o juiz anulou o gol de empate aos 47 minutos do segundo tempo depois de parar 5 minutos da partida para ver o VAR? É… aí é um pouco pior até! Esse jogador vai ser suspenso, e vai tomar um gancho de pelo menos 180 dias.
A Justiça Desportiva julga tudo que acontece entre os 22 jogadores em campo – e isso antes, durante, ou (até) depois da partida. Mas é só isso que a JD faz?
Aí tem mais! A Justiça Desportiva também está lá para garantir que qualquer coisa que tenha dado de errado antes, durante, ou depois da partida não saia sem um puxão de orelha pelo menos. E aí temos mais 03 exemplos: os torcedores, os funcionários do clube (inclusive o jurídico e/ou o registro), e os árbitros.
Jogo pegado. Mas não dentro de campo. Jogo pegado. E, sim, nas arquibancadas. Em vez do jogo jogado no campo, deu um desentendimento entre a torcida por algum motivo. Virou uma desordem. Invadiram o campo. E, ainda, jogaram de Toddynho até cadeiras no gramados. E aí? O seu time, mandante da partida, devia ter tomado as providências necessárias para evitar tudo isso… e se não fez nada, o que acontece? Multa, de R$ 100 até R$ 100.000 e a tal da perda de mando de campo – que vai de 01 até 10 partidas!
Acabou a partida, conversam com os torcedores, e… “atchou”, tudo começou porque falaram lá na rádio que escalaram um jogador irregular! Lá no meio da torcida estavam os responsáveis pelo jurídico e pelo registro do time. E aí? Os torcedores perderam a cabeça (o que não pode) porque sabiam que o time ia ser multado (advinha o valor?) e ainda perderia os pontos daquela partida – aliás, se perdesse a partida em campo também ia ficar com “-3” (menos três pontos, sim!)… pois é!
Só que… tudo bem. No fim do dia o árbitro esqueceu de “relatar na súmula” tudo o que aconteceu. Mas é o juiz, né? Então sussa, sem problemas, e tranquilo! Segue o jogo e todo mundo sai feliz com o jogo remarcado para a próxima semana, né? Então… não é bem assim! O juiz, digo, o árbitro vai ser punido também! E vai levar uma multa de R$ 100 até R$ 1.000 e ser suspenso de 30 até 360 dias.
É por isso que a Justiça Desportiva é “onipresente”. Tudo o que acontece passa por ela alguma hora… o que o seutime não fez, o que o atleta do seu time fez, o que o jurídico do seu time esqueceu de fazer. E isso sem contar a torcida, o árbitro, o delegado da partida… e o que mais? Ah, sim! Para fechar a coluna de hoje, deixo mais 03 exemplos de “causos”. Valeu?
Imagina que é a final da Copa do Brasil. Imagina que O cara do seu time é a lenda de um país lá longe. Imagina que lá longe, três dias depois da nossa final, é jogo de classificatória para a Copa do Mundo. O jogador do seu time foi convocado. O jogador do seu time tem que ir para lá longe amanhã. O jogador do seu time não vai jogar a nossa final. E vai lá o presidente do seu time e “tranca” ele numa sala e não deixa que ele vá – contra a vontade dele. Pois é… aí vai ter multa, de R$ 100 até R$ 100.000 para o presidente do seu time – afinal, quem nunca.
Essa estratégia absurda e não recomendada não adiantou e o seu time jogou sem a estrela da noite. Perdeu. E o presidente do seu time ficou “pistola” e resolver sair quebrando tudo no estádio dos amigos. Quebrou tanto que… foi parar na súmula e virou caso da Justiça Desportiva – te juro! E o que aconteceu com ele? Sim, multa de R$ 100 até R$ 100.000. E mais, indenização pelos danos causados (vai pagar tudo). Só que não acabou… o presidente vai ser suspenso de 30 até 180 dias! – logo, amigos, não sejam essa pessoa.
Na hora da denúncia para a Justiça Desportiva, descobriram mais uma! Além de tudo isso, quando era levado para fora pelos seguranças, o presidente ainda conseguiu cuspir. Isso soltar um perdigoto. E, pior, acertar o árbitro da partida! E aí? Aí o mínimo de gancho é de 360 dias. Esse aí não volta mais, não!
Essa tal de JD é um ponto importante no nosso futebol. E lá são vários os tipos de pena para quem faz besteira e atrapalha o nosso jogo. Só hoje nós vimos que a Justiça Desportiva pode dar uma multa, suspender por partida, suspender por tempo determinado, tirar pontos, tirar mando de campo… ufa, um monte de coisa! Aliás, pode até excluir alguém de um campeonato. E é por isso que esse tema é importante para nós, que gostamos do nosso futebol.
Por hoje é isso! Fico por aqui e convido vocês a continuar no “Entre o Direito e o Esporte”. Semana que vem passamos para o próximo ponto da nossa Justiça Desportiva! Nos vemos na próxima sexta-feira no “onde”. Fechou? Deixo meu convite para falarem comigo por aqui, pelo meu LinkedIn ou pelo meu Twitter. Valeu!

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O futebol europeu conhece nossas joias antes de nós

Lembro de que há alguns anos lamentávamos que os clubes europeus vinham ao Brasil e levavam nossos jogadores que estavam no auge da carreira. A queixa dos torcedores era de que quando os melhores atletas atingiam o ápice técnico e físico vinha algum time de fora e pagava uma fortuna para leva-los.
Nosso futebol continua sendo exportador. Mas agora não é mais no auge que a Europa vem buscar nossos melhores jogadores. E sim na base, nas categorias menores. Na adolescência deles. Não é acaso o Real Madrid contratar Vinícius Junior com 16 e Rodrygo com 17 anos. Ou Gabriel Jesus com 19 anos já ser do Manchester City. E agora Eder Militão com 20 ser do Porto. Esses jogadores muitas vezes nem estão maturados fisicamente. Mas já despertaram a atenção de quem faz futebol em alto nível no mundo e que, definitivamente, não está nesse jogo para rasgar dinheiro.
Primeiro ponto a ser destacado é a evolução da análise de desempenho. Esses gigantes clubes mundiais possuem departamentos de inteligência que contam com o que há de melhor em capital humano e tecnológico. Há observadores técnicos fazendo análise de mercado em todo o mundo. E esse tipo de scout é feito desde o sub-11. A Europa conhece nossos jogadores antes de nós.
Outro aspecto importante é que a maioria dos nossos técnicos de base e até mesmo dos times profissionais não está atualizada com o que há de melhor para formar e potencializar jogador. Há um leve movimento de melhora nesse aspecto, mas ainda estamos pelo menos vinte anos atrasados com relação ao alto nível mundial. Na base, o técnico do sub-13, por exemplo, ganha menos do que o do sub-17. E o jeito para crescer na carreira muitas vezes é ganhando jogos e campeonatos. Então o objetivo passa ser ganhar e não formar; E depois no profissional grande parte dos técnicos apenas suga os atletas e não busca melhora-los em suas deficiências. A desculpa é que não há tempo. Quando na verdade falta conhecimento para potencializar as virtudes e ajustar as fraquezas.
Os clubes europeus atentos a essa defasagem dos nossos profissionais e até observando as condições dos jogadores brasileiros que chegavam já com mais de 23 anos sem algumas valências técnicas, coletivas e até cognitivas de jogo decidiram vir buscar os atletas cada vez mais jovens para que eles pudessem terminar por lá o processo de formação.
Há garotos de 13, 14, 15 anos aqui no Brasil sendo observados por analistas das principais potências do futebol mundial. São avaliados itens como trato com a bola, resolução dos problemas de jogo, capacidade de se comunicar dentro de campo com e sem a bola, potência física e padrão de resposta mental às adversidades que a complexidade do futebol traz.
Se a maioria desses itens for atendida os jogadores serão comprados por muito dinheiro e com pouca idade. O aprimoramento eles fazem por lá. Bem melhor lapidar um jogador enquanto há tempo. Dinheiro, inteligência e metodologia para isso não falta no alto nível do futebol europeu.
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Sobre o treinador que educa

Bielsa, nos tempos de Marselha. (Foto: Eurosport)

 
Neste fim de semana, às vésperas da estreia do Leeds United na Championship (segunda divisão inglesa), houve alguma comoção quando soubemos que Marcelo Bielsa, novo treinador da equipe – e de quem sou profundo admirador – lançou mão de outro dos seus métodos razoavelmente originais. Bielsa procurou, junto à diretoria, saber quanto tempo o torcedor médio do Leeds precisaria trabalhar para conseguir comprar o ingresso para um jogo qualquer. Quando soube da resposta (são três horas), fez com que seus jogadores passassem o mesmo tempo recolhendo o lixo das dependências do clube, para que eles sentissem, de alguma forma, o sentimento dos torcedores. No mínimo, um exercício de empatia.
Medidas como essa não são exatamente novas. Na verdade, elas não apenas existem desde sempre, como existem, muitas vezes, longe dos holofotes. Mas me parecem substancialmente importantes na formação do caráter do jogador. Rapidamente, me lembro de Per Mertesacker, respeitável zagueiro alemão, que trabalhou em um hospital para doentes mentais quando ainda jogava nas categorias de base do Hannover (anos mais tarde, Mertesacker admitiria que o futebol profissional feriu os seus próprios limites mentais). Repare a importância dessa educação na transição da adolescência para a vida adulta, pois nesta fase há fortes traços de idealismo, ao lado de uma percepção razoavelmente autocentrada da vida, que faz com que cada atleta, no seu íntimo, sinta que está destinado para o sucesso e que este surgirá, inevitavelmente, em algum lugar do futuro. Mas para treinadores e treinadoras, além das atribuições tático-técnicas que nos cabem, é preciso trabalhar, ainda que sutilmente, o mundo real que está para além do ideal, o mundo do fracasso, da moléstia, dos limites. O mundo da vida, se você preferir.
Neste sentido, Bielsa me parece grande. Me lembro de uma fala, nos tempos de Marselha, apresentando aos jogadores as contradições entre o sucesso e a felicidade. A essa altura, é provável que alguém pergunte se isso ganha jogos (ou algo do tipo), mas não é disso que se trata: este tipo de fala – que ilustra parte das minhas próprias pretensões como treinador – não parece exatamente interessado em um fim, mas denota uma preocupação latente e sincera com o humano que se esconde no atleta, dele indissociável. Agir apenas sobre o atleta é importante, mas também é como deslizar pela superfície: para respostas profundas, me parece imprescindível superar a barreira do atleta e chegar ao humano, ao emaranhado de contradições e possibilidades que estão adormecidas em cada ser, e que podem levá-lo à plenitude caso sejam despertadas, descobertas! Mas isso é uma arte, e treinadores e treinadoras precisam ser trabalhadores diligentes, que exercitam sua arte com refinamento, para não vitimar nossos atletas nem pela falta, nem pelo excesso.
Para além de um treinador, Bielsa me parece um educador. Na verdade, treinadores e treinadoras são educadores da mais fina espécie. Seja na iniciação, na especialização ou no rendimento, estamos no domínio de um processo educativo, que evidentemente objetiva o melhoramento esportivo mas, para tanto, não pode perder de vista a humanidade dos atletas. Quando entra em campo, o jogador não entra pela metade (não deveria), ele entra inteiro. Ele carrega suas crenças, seus valores, seus medos, sua história e todas as variáveis que, ainda que não estejam visíveis (nem para ele próprio), fazem dele único e, assim, um mistério a ser desvendado pelos treinadores e treinadoras e por todos os envolvidos no processo. Como afirmamos recentemente, o jogo real não tem uma bula, um password que nos leve ao seu final, pois o jogo é jogado por gente, e gente, na sua complexidade, não se define em frases feitas.
Para além de um humanista, Bielsa me agrada por ser atemporal. Acompanhei com atenção o ótimo trabalho feito no Athletic Club, quando transformou um clube tradicionalmente conservador em pura coragem e risco, que envolveu o Manchester United, no Old Trafford, como raras vezes se viu. Para além da tática, as boas equipes carregam um espírito, um sentimento coletivo que vive em cada parte e que vivia naquele tempo, na sua alternância entre uma linha de quatro ou de cinco defensores, de acordo com o adversário (dois centroavantes, linha de cinco, para sempre ter sobra), no movimento puro desde os primeiros instantes da temporada, nos desmarques ininterruptos, no pressing inegociável. Mas aquela equipe também era, em diversos momentos, marcação individual, era ligação direta para Fernando Llorente e Gaizka Toquero, era o que deveria ser, porque Bielsa, em alguma medida, me parece um poliglota, um treinador que sim, valoriza um determinado idioma (o idioma da posse), mas que sabe vários dialetos dentro dele, pois o jogo não se encerra em vocábulos restritos, mas exige léxico variado, para momentos diferentes. É preciso que não sejamos apenas um, é preciso ser vários, de acordo com o contexto, com o adversário, com nós mesmos. Bielsa me parece fazer isso bem.
Ao mesmo tempo, nossos elogios não são míopes e aqui também ressalto o outro lado de Bielsa: o perfeccionismo eventualmente constrangedoras exigências em todos os níveis, um sentimento razoavelmente controladoros valores inegociáveis e diversas outras características que não são apenas passíveis de crítica. Elas fazem dele humano. Como treinadores e treinadoras, é preciso que saibamos lidar com o outro lado, com as sombras que nos acompanham onde vamos, pois elas também são parte do nosso ser. Embora sejamos escravos da força, me pergunto se alcançar o humano (de que falei acima) também não significa a vulnerabilidade, a percepção de que, embora grandes, somos possíveis, e este sentimento pode ser o que nos une como indivíduos e como equipe. Não sei se são essas as intenções de Bielsa, mas sei que ali, como em qualquer outro ser, também há fraquezas, sejam elas perceptíveis ou não.
Por fim, falamos de um treinador idolatrado, referência para vários colegas de ótimo nível (Mauricio Pochettino, Eduardo Berizzo, Diego Simeone, Pep Guardiola, Mauricio Pellegrino…), mas que não traz consigo o argumento dos títulos – no profissional, são poucos. Ou seja, pode ser que no resultado não esteja nossa principal mensurável de sucesso, afinal, só há um vencedor, mas bons trabalhos não faltam. O jogo tem razões que nos escapam, e talvez nelas esteja o motivo porque mesmo os bons (eventualmente os ótimos) podem não estar amparados pelo resultado – ao menos pelos títulos.
O que não significa que eles não estejam amparados. Talvez por algo maior.

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Vale a pena VAR de novo

O vídeo-árbitro (VAR) voltou em evidência com a sua utilização na Copa do Brasil na semana passada. No geral o balanço foi positivo. Favoreceu o bom andamento das partidas e esclareceu pontualmente a arbitragem. Em alguns casos percebeu-se algo raro (e que não deveria ser): atletas a fazerem gestos de concordância com as marcações (mesmo contra a própria equipe). Seria este um sinal de mudança em termos de ética, tanto cobrada na sociedade brasileira, cuja ausência é percebida em muitas ocasiões no futebol?

Sim, é. O recurso do vídeo inibe a malícia e a dissimulação, passíveis de punição. Ao mesmo tempo exige comportamento ilibado por parte do futebolista. Ele está sendo monitorado instantaneamente por mais pessoas, e o seu comportamento observado em nível nacional e internacional. Ou seja, qualquer algo negativo não será nada bom para a sua imagem pessoal, visto em outros textos desta coluna como importante para um atleta. A prazo, percebe-se que cavar uma falta ou exigir algo da arbitragem para favorecer – injustamente – a sua equipe, é desperdício de energia. Em outras palavras, preocupa-se mais em fazer o movimento para confundir aquele que apita e gasta-se mais energia para gritar e gesticular com o árbitro. Na verdade, esta energia deveria estar sendo dirigida ao jogo, em controle emocional para concentrar-se no que tem que ser feito, que é fazer gols.

Com o tempo a impunidade não será mais o tema e mais justiça haverá nas marcações dos lances capitais. O comportamento antiético não será “premiado” e a conduta honesta, valorizada (em realidade deveria ser a constante). Tornar-se-á rotina e, em um outro momento, hábito. Como consequência disso, a fluidez no jogo e aumento do tempo de bola em disputa. Menos tempo de paralisação (afinal não se gasta mais energia em discutir com o árbitro) e maior concentração na parte técnica e tática, o que favorecerão todo o espetáculo de que se constitui uma partida de futebol.

O respeito às regras, ao jogo e ao torcedor favorecem o andamento de uma partida de futebol. (Hollywood Reporter/Photo by Ian Walton/Getty Images)

 

O normal seria não precisar do VAR para que tenhamos exemplos de boa conduta no futebol de rendimento no Brasil. Como dizem alguns, a honestidade não deveria ser uma virtude, deveria ser uma constância. Entretanto, o próprio jogador e o clube precisam se perguntar como querem ser reconhecidos pela sociedade: pelos resultados a qualquer custo ou pelas boas atitudes e bons exemplos, sobretudo para os mais jovens que replicarão este comportamento e serão “o futuro da nação”? Infelizmente, é o recurso do vídeo – que apareceu muito tardiamente – que poderá ajudar com esta questão. Com tudo isso, no entanto, antes tarde do que nunca.