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O que queremos do treinador Fernando Diniz? Mudança!

Meses atrás, quando o Campeonato Brasileiro de 2020 ainda estava em curso e Fernando Diniz era treinador do São Paulo, pensamos escrever algo sobre ele, sobretudo, sobre o que Diniz representa para o futebol. O tempo passou, desistimos da ideia, Fernando Diniz foi demitido e o futebol brasileiro continuou em sua rotina costumeira, ele, Diniz, sendo, inclusive, mais um número na alarmante estatística das mudanças de treinadores em equipes brasileiras.

O que, então, fez-nos voltar a debater esse assunto e escrever sobre ele? A recente declaração do jogador Daniel Alves, entre todos os atletas em atividade, hoje, o mais vencedor, com passagens pelos maiores clubes do mundo.

Em entrevista ao site do jornal inglês “The Guardian”[1], Daniel Alves disse: “o Brasil é um cemitério de treinadores e jogadores. Nosso sistema se baseia nas coisas serem sempre as mesmas. Quando você tenta algo diferente, as pessoas ficam contra você, por que se funcionar isso vai mudar o sistema”.

Justificada nossa iniciativa, voltemos ao tema central do texto. E se você esperava, ao ler o título deste texto, que defenderíamos a demissão de Diniz como treinador da equipe do São Paulo Futebol Clube, ou que entraríamos no debate recentemente colocado pela mídia acerca da nomenclatura que define o pensamento do treinador Fernando Diniz como “dinizismo” ou “dinismo”, ou então, que discutiríamos suas opções de escalação, substituições ou esquemas táticos, no comando das equipes que comandou, provavelmente se frustrará.

Entendemos que a expressão, “dinizismo” ou “dinismo”, é sacada do dicionário daqueles que temem, no futebol, mais que tudo, mudanças. Esses termos têm sido utilizados, na maioria das oportunidades, de modo pejorativo, com a intenção de depreciar o jovem e talentoso treinador e seu trabalho.   

Nossa intenção, antes de tudo, é debater sobre o que representam os pensamentos de Fernando Diniz em seu contexto mais abrangente. Se pudéssemos sintetizar em uma palavra o que representam seus pensamentos, ela seria: mudança!

E é justamente por representar a mudança, que ele tanto incomoda grande parte daqueles que integram o contexto do futebol brasileiro, sobretudo, a mídia, torcedores e dirigentes esportivos. Afinal, de que mudança estamos falando? São várias! Vamos a elas.

A primeira delas, e talvez a mais importante, é a concepção de sujeito que ele possui. Fernando Diniz não entende os atletas como peças, coisas, produtos, como máquinas que têm que render a qualquer custo. Para ele, o jogador de futebol, como outro ser qualquer, é um ser de necessidades, com emoção, com sentimento, com valores, dotado de subjetividade, e que erra, como também acerta. Diniz busca, cotidianamente, desenvolver o atleta, mas não de forma dissociada da sua condição de ser humano. Para Diniz, o jogador é, ao mesmo tempo, indivíduo e sociedade, grupo, coletivo.

A segunda mudança, mais nitidamente observável no campo de jogo, refere-se ao modo como opera (faz funcionar) o grupo de jogadores. Diniz consegue implementar algo fundamental do ponto de vista do funcionamento da equipe: constituir uma identidade grupal, sem que os atletas percam sua identidade pessoal. Em outras palavras, incentiva o trabalho coletivo, a coesão, fortalece o que popularmente é conhecido como entrosamento, ao mesmo tempo que busca e promove o desenvolvimento pessoal de cada sujeito, jogador de futebol, neste caso. Não é tarefa fácil essa de buscar a harmonia entre o indivíduo e o coletivo, daí a necessidade de tempo para realizar o trabalho. Fernando Diniz imagina a arte do futebol não apenas no talento deste ou daquele jogador, mas também no grupo; que a arte de jogar futebol esteja tanto no coletivo quanto no individual.

A própria maneira como promove a organização da sua equipe em campo reflete uma mudança drástica no pensamento habitualmente observado no âmbito do futebol profissional. Ele organiza, “desorganizando”. Ao ver um centroavante vir realizar a saída de jogo, um lateral entrando na área para finalizar ou um zagueiro para cabecear um cruzamento, por exemplo, grande parte da mídia, torcedores, dirigentes, e até alguns jogadores, se incomodam. Se incomodam, pois não compreendem sua forma de organizar. A sua organização parte da desestruturação da equipe adversária. Ele incomoda, porque muda. E se muda, gera ansiedade e, consequentemente, resistência. E como forma de resistência, há, além da estereotipia, a crítica corrosiva.

Diniz sabe que o jogo de futebol, como a vida, é imprevisível. Especialmente em situações como as apresentadas no jogo de futebol, a imprevisibilidade é, para ele, a marca mais visível. Sua equipe precisa, portanto, saber lidar com o imprevisível, produzir surpresas e defender-se delas.

Aliás, estes foram, também, pontos destacados por Daniel Alves em sua entrevista ao “The Guardian”: “Diniz está à frente da maioria dos treinadores […] Suas ideias e o trabalho que está fazendo. Você pode dizer ‘ele não ganhou o título’, mas não estou falando sobre isso. Eu estou falando sobre futebol. Eu o admiro muito. Ele se preocupa com as pessoas, tem muitas ideias sobre futebol e sabe o que quer do futebol.

Outro ponto importante para entendermos o pensamento de Fernando Diniz passa pela compreensão e valorização do processo. O futebol profissional é extremamente imediatista. Quer resultados “pra ontem”! Ao confrontar essa compreensão e apostar e valorizar o processo, Diniz propõe mais uma mudança. E vale repetir… a mudança incomoda. O imediatismo no futebol brasileiro tem destruído jogadores e técnicos.

No futebol brasileiro, para construir uma equipe, os técnicos possuem jogadores jovens, inexperientes, recém-saídos das equipes de base e alguns veteranos, até com experiências internacionais, mas que já não conseguem bons contratos na Europa, embora talentosos e dedicados. Diante disso, no processo de formação e desenvolvimento da equipe, é preciso fazer um trabalho artesanal, treinar exaustivamente, conversar permanentemente com o grupo, conversar com cada um separadamente, detectar e superar suas limitações e dificuldades, entender seus problemas e ajudar a superá-los. Tudo isso demanda tempo. E um tempo que o futebol profissional precisa entender, valorizar e respeitar, mas não o faz. Não se constrói uma equipe, em que boa parte dos jovens ainda precisa aprender a ser jogador, de um dia para outro. É necessário ter tempo para isso, tempo que não costumam dar a treinador nenhum, com raras exceções.  

Os jovens jogadores em formação passam anos nas categorias de base, em muitos casos, ainda sendo treinados a partir de uma pedagogia tecnicista, driblando cones, repetindo gestos, movimentos e ações que nunca ocorrerão nos jogos. A pedagogia implementada por Diniz em seus treinos (e por poucos outros treinadores das categorias de base e equipes profissionais), já relativamente bem difundida no âmbito acadêmico, mas ainda pouco discutida nos campos de treino e debates jornalísticos, está muito distante disso. Ao defendê-la, Fernando Diniz propõe outra mudança. E novamente, como já dissemos, a mudança incomoda.

Poderiam alegar alguns leitores: “ah, mas com Diniz o São Paulo não ganhou nada!”. E sem o Diniz, o que ganhou nos últimos anos? Não é isso, portanto, o que está em jogo. Nos demais clubes também raramente se ganha. Todo torneio admite apenas um vencedor. Perdoa-se com mais facilidade a “surra” de 8 a 2 que tomou o Barcelona, do que qualquer derrota das equipes comandadas por Fernando Diniz.

Há anos cobramos do futebol brasileiro aquele estilo e desempenho que décadas atrás encantava o mundo: um futebol bonito, alegre, imprevisível, ofensivo e, quando alguém se propõe a caminhar nesse sentido e realizar as mudanças necessárias, as pessoas se incomodam e o criticam insistentemente.  

Há quem diga, principalmente parte da crônica e mídia esportiva, que os conceitos, ou filosofia, como se diz no senso comum futebolístico, trazidos por Fernando Diniz refletem-se no fracasso de suas realizações dentro de campo. Tais afirmações fundam-se exclusivamente em avaliações negativas de resultados em partidas específicas, eliminações ou os poucos títulos conquistados. Se tomarmos como referência o modelo e o sistema futebolístico que está posto, faz sentido. Sobretudo se não perdermos de vista que o futebol faz parte do sistema capitalista predatório de produção. Como dissemos acima, não se valoriza o processo e sim, exclusivamente, o rendimento e resultados imediatos, o lucro, para os quais os jogadores precisam ser, mais do que nunca, máquinas. Produtos! O modo de ver um jogador no trabalho de Diniz e no modo de produção da máquina que dirige o futebol são diametralmente opostos.

Entretanto, entendemos que fracassado estará o futebol brasileiro se não voltarmos a atenção para os sinais dados por Fernando Diniz e, aqui e ali, por um ou outro técnico. O futebol brasileiro atual não está pobre tecnicamente só porque nossos maiores talentos emigram para a Europa, mas também porque empobrecemos o modo de jogar. Jogar para não perder apenas é bem diferente de jogar para jogar bem. 

E é a valorização desse novo olhar que incomoda muita gente que atua no futebol profissional. Isso foge ao script tão bem montado no futebol brasileiro. O problema é que é mais fácil manter essa “cultura” do que confrontar a estrutura mecanicista, limitada e conservadora que mantém esse futebol brasileiro viciado na mesmice e na burocracia estéril.

Diniz representa o futebol atrevido, o futebol que gosta da bola e da brincadeira, o futebol audacioso, que não teme o risco e sabe que é ele que mantém a tensão encantadora do jogo. Diniz representa aquele futebol que pode vencer de 4 a 1, tomando somente um gol de um dos melhores ataques da América e pode ser eliminado em seguida, apesar da vitória, tomando 3 de um time bem menos expressivo e qualificado; representa um futebol que sabe que atacar é tornar-se vulnerável, mas que se não atacar, o jogo perde o sentido.

O grande desafio de Diniz talvez seja, como ele mesmo costuma atestar em suas entrevistas, manter a regularidade e acabar com a oscilação das suas equipes, às vezes dentro de um mesmo jogo. Enquanto não conseguirmos efetivar em larga escala as mudanças que ele representa para o futebol, Diniz precisa de resultados para provar que está certo. E neste contexto que está posto atualmente, falar em resultados, é falar em títulos. E para conquistar títulos, ele precisa de oportunidade e tempo para trabalhar. Tempo para que compreendam e assimilem as mudanças que defende.  


[1] https://www.theguardian.com/football/2021/may/01/dani-alves-barcelona-brazil-lionel-messi-manchester-city-world-cup-2022

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Diferencial do Futebol Brasileiro – um olhar sobre a iniciação no futebol

Crédito imagem – Lucas Figueiredo/CBF

Se ainda há, no futebol brasileiro, algum diferencial destacadamente positivo em comparação a outras nações, ele se situa na faixa etária entre o nascimento e os 10 a 12 anos de idade para os meninos e, um pouco mais, talvez entre 12 e 15 anos, para as meninas. Ao longo desta série de textos argumentaremos a respeito disso. Neste primeiro, porém, daremos alguns passos atrás para fazer uma análise do nosso futebol, que nos ajudará a construir esses argumentos.

Por muitos anos o futebol brasileiro dominou o cenário futebolístico mundial. Especialmente entre as décadas de 1950 e 1970, a hegemonia foi total. De 6 Copas do Mundo possíveis, o Brasil chegou à final em quatro, conquistando 3 delas. Um domínio técnico avassalador. Em outro período também nos destacamos em termos de resultados. Entre 1994 e 2002, o Brasil participou das três finais, vencendo duas. No entanto, nos últimos quatro ciclos mundiais estivemos mais distantes do topo da modalidade. Será que aquele foi o último período de glórias canarinhas? Esperamos que não. Mas é importante que façamos uma reflexão crítica e constante sobre todo o processo do futebol brasileiro, que vai muito além do desempenho das nossas seleções nacionais, masculinas, femininas e de base, embora elas deem alguns indicativos. É possível que consigamos nos próximos anos seleções fortes que cheguem às finais e conquistem títulos importantes. Mas como profissionais do futebol, queremos mais. Precisamos de muito mais do que isso.

Escrevo este texto como uma provocação para pensarmos no processo como um todo do futebol brasileiro – e, por que não, talvez, do esporte brasileiro? – como uma autoanálise nacional, que exige uma volta em nossa linha do tempo para buscarmos compreender de onde vieram os nossos sucessos e de onde vieram as nossas mazelas e traumas.

Minha intenção aqui é chamar a atenção para um período muitas vezes esquecido, pouco pensado e debatido no futebol brasileiro, que é a iniciação esportiva. O começo da vida esportiva das crianças, que, dentre elas, surgirão craques do atletismo, skate, surf, voleibol, natação, basquetebol e, em especial, do futebol. Meninos e meninas com talento extraordinário que brilha os olhos de quem é apaixonado pelo jogo mais popular do país. Ao percorrer as diversas regiões e cidades brasileiras encontramos inúmeros exemplos dessas crianças atualmente, como ocorreu, também, na história do Século XX, provavelmente, em ainda maiores proporções que nos dias de hoje.

Seria um erro científico apontar que essas crianças nasceram com o dom de jogar futebol. Seria, inclusive, um erro estratégico pensar assim. Pois, caso assim fosse, não teríamos o controle de potencializar ou atrapalhar esse processo. Apenas esperaríamos o talento aparecer para inseri-lo em nossas equipes. Talvez, essa estratégia tenha funcionado por muitos anos. No entanto, o mundo está globalizado e os conhecimentos sobre a formação de jogadores inteligentes para o jogo, atleticamente bem preparados e equipes competitivas está cada vez mais difundido. Por isso devemos refinar essa estratégia para acompanharmos essas evoluções, sem deixar de reforçar os nossos diferenciais positivos históricos, que nos trouxeram até o patamar a que chegamos em alguns períodos, para que o futebol brasileiro continue nos encantando e nos dando alegrias. Além disso, devemos enxergar o esporte, e o futebol brasileiro, em especial, como uma potente estratégia de educação das crianças, visando um melhor desenvolvimento humano e social de que o Brasil tanto carece.

Mas como podemos fazer tudo isso? Por que comecei o texto dizendo que nosso diferencial reside entre os 0 e 10 a 12 anos para os meninos e entre os 0 e 12 a 15 anos para as meninas? O que acontece nesse período de vida dessas crianças e adolescentes para que eles possam aparecer em escolas de futebol e clubes como talentos?

As respostas dessas perguntas estão relacionadas à forma como, historicamente, aprendemos a jogar futebol. Vale a pena fazermos essa autoanálise coletiva, para o bem do nosso esporte e, sobretudo, para o bem das crianças e jovens que se inserem nele!

No próximo texto continuaremos essa reflexão!

Até lá!

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As finanças do futebol brasileiro chegaram no limite

A última sexta-feira, 30 de abril, foi o prazo final dos clubes para a divulgação de seus resultados financeiros do ano de 2020. Em ano de pandemia, seria natural que a situação fosse ruim para praticamente todas as instituições. Com a tendência confirmada, é possível dizer que as dívidas atingiram números inéditos. A partir disso, esse texto tenta responder duas questões: Será que chegamos ao limite no valor das dívidas? Quais as consequências disso para o futebol brasileiro, dentro e fora de campo?

“Atlético-MG divulga dívida de R$ 1,2 bi e prevê redução drástica em 5 anos”. “Dívida do Corinthians cresce e chega perto de R$ 1 bilhão; veja raio-x das finanças”. “Fluminense reduz prejuízo em 2020, mas dívida vai a R$ 768 milhões”. “Inter fecha 2020 com déficit próximo a R$ 90 milhões e tem pior resultado na história”.

A partir das manchetes acima, podemos falar sem medo de errar: chegamos ao limite. Muito se fala no impacto da pandemia nas contas do último ano, porém terminar o ano com resultados negativos e dívidas crescentes é um comportamento que estamos vendo há um certo tempo por aqui. As gestões mudam, novos presidentes chegam prometendo uma gestão mais profissional, mas na prática o que vinha acontecendo eram administrações não compatíveis com o nível que o futebol atingiu como indústria. Para os dirigentes, não havia problema, já que o modelo associativo livra estes de qualquer punição.

Como em outras áreas, a pandemia veio apenas para reforçar uma transformação que já estava acontecendo, ou ao menos deveria estar. Não será mais possível manter esta forma de gerir os clubes, e alguns já se deram conta. Estas instituições conseguiram inclusive ter um 2020 menos turbulento. Grêmio e Athletico Paranaense foram dois exemplos disso, sendo os únicos grandes clubes a apresentarem superávit de R$ 38 milhões e R$ 134 milhões, respectivamente.

Outros clubes atingiram uma situação tão crítica que provavelmente levarão anos para retomar a condição de protagonistas do futebol brasileiro. É o caso de Botafogo, Cruzeiro e Vasco, que terão um 2021 ainda mais complicado disputando a série B. Essa mudança na ordem de grandeza dos clubes no cenário nacional é, provavelmente a grande consequência destes anos de má administração. Nesta década que se inicia, clubes como Ceará e Fortaleza, com gestões mais responsáveis e utilizando diversas práticas inovadoras, parecem melhores escolhas para os atletas do que os clubes citados anteriormente, onde não há garantia inclusive de receber o salário em dia.

Pensando no futuro, por onde uma instituição deve começar para sair do caminho das dívidas?

O primeiro passo é assumir a dívida e comunicar isso para todos os interessados: aos credores, com um planejamento de como o montante será pago. Apresentando um planejamento, é possível inclusive negociar algum desconto na dívida, ou estender para um prazo maior e aliviar o fluxo de caixa do clube. Tão importante quanto, é preciso comunicar a imprensa e a torcida. As cobranças por resultados e contratações atrapalham demais e colaboraram para que a situação chegasse até o limite que estamos debatendo neste texto.

Segundo passo é pôr em prática as mudanças no modelo de gestão. É preciso que dirigentes políticos e profissionais tenham mais responsabilidade com as finanças dos clubes, montando elencos de acordo com as possibilidades. Além disso, utilizar as categorias de base não apenas em situações de emergência, mas como parte da estratégia de longo prazo dos clubes. Por fim, realizar investimentos em estrutura, como centro de treinamentos para as próprias categorias de base.

A crise financeira do futebol brasileiro chegou ao seu limite. Daqui para frente, os clubes que não modificarem sua gestão devem sofrer cada vez mais, perdendo inclusive sua competitividade dentro de campo. Quem insistir em se endividar terá que sofrer as consequências.

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Precisamos falar sobre o interacionismo II – Mais com mais dá menos

Já falamos, em conversas anteriores, que contradições epistemológicas são inerentes ao processo de ensino, aprendizagem, treinamento – porque, também, o ser humano é feito de carne, osso e antíteses. O que não impede, pelo contrário, a necessidade de refletirmos de vez em sempre sobre como tornar coerente a relação teoria-prática. Acontece que as teorias não são imunes aos paradoxos. Tudo o que é, nem sempre parece. Falemos, pois, do humanismo pedagógico, uma das vertentes sustentadas (sustentadas?) pela teoria do conhecimento interacionista e do paradigma emergente.

Voltemos, primeiro, ao fim do Século XIX. Na Europa, a segunda revolução industrial fluía a todo vapor, a burguesia emergia e tomava conta das cidades, cada vez mais urbanas. Muito interessava a esses novos donos dos meios de produção que seus herdeiros fossem suficientemente capacitados para tocar os negócios. A escola, predominantemente aristocrata, passou, também, a ser frequentada por burgueses. A chegada de uma nova classe social, pouco habituada à polidez do meio, exigiu adaptações pragmáticas nas estruturas educacionais. Resumindo a história: não dava para continuar ensinando do mesmo modo. Havia gente nova do pedaço, era preciso renovar. 

O Brasil não passou imune às transformações sociais, históricas e econômicas do período. Dom Pedro II acusou o golpe (militar) e voltou à Portugal, o império virou república, imigrantes aos montes aportaram nos litorais tupiniquins – que também viu desembarcar um jogo de bola com os pés, football, chamavam uns, outros de balípodo. O processo de industrialização por aqui, engrenou, de fato, na década de 1930. Não por coincidência, à época, a nova burguesia nacional chegou às escolas e, delas, despontou um movimento renovador, denominado Escola Nova, chancelado por intelectuais da estirpe de Anísio Teixeira, Cecília Meireles e Fernando Azevedo.

O movimento da Escola Nova ou escolanovismo pretendeu tornar os processos pedagógicos mais ‘agradáveis’. Era preciso romper com o tradicional. A intransigência professoral conservadora não mais cabia ao meio educacional, afinal. Na Educação Física, atividades de caráter militar, técnicas e acríticas, deram lugar aos jogos. Muitos dos (clássicos) sofisticados estudos sobre o fenômeno jogo nem eram conhecidos, o termo estado de jogo tardaria décadas para ser cunhado, mas os escolanovistas, sagazes, notavam a capacidade de engajamento promovida pelo jogo a quem joga. Jogar é legal, portanto, joguemos. A inserção do jogo nas aulas em detrimento de práticas reacionárias foi um marco. Uma quebra de paradigma, quiçá.

O jogo, apregoado pela Educação Física escolanovista, carregou consigo a banalização do lúdico. Não havia, a rigor, intencionalidades conscientes ou tarefas representativas capazes de criarem um ambiente de jogo e aprendizagem enriquecedores. Jogar bastava para ser e fazer diferente. Tinha-se o jogo pelo jogo e nada mais. Evidentemente, tais críticas podem soar, quase um século depois, como ‘engenharias de obras prontas’ em virtude do distanciamento histórico, da própria sofisticação da área e de transformações científicas. A problematização, porém, é válida em decorrência da potente ‘herança’ deixada por essa concepção pedagógica.

Após o Golpe de Estado de 1964, a Educação Física e os métodos de treinamento tornaram a abraçar a militarização, dotada pelo tecnicismo acrítico e esportivista. Professor acima de tudo e tarefas descontextualizadas, acima de todos. Nas escolas, os processos de ensino eram análogos aos praticados no alto rendimento esportivo, desconsiderando toda e qualquer individualidade biológica dos alunos. No futebol, a figura do preparador físico ganhava força. O documentário ‘Pelé’, lançado há poucos meses no Netflix, traz, como pano de fundo, algumas das práticas que regiam os treinamentos da seleção brasileira rumo ao Mundial de 1970 – e representam bem o caráter militar da atividade física na época.

Ao fim da Ditadura Militar, a própria Educação Física entrou numa espécie de crise de identidade. Era preciso, outra vez, superar o ensino tradicional. Desde então, não são poucas os modelos pedagógicos e modelos de ensino dispostos a aderir preceitos interacionistas para romper, em definitivo, com o passado – que, no Brasil especificamente, teima em desaparecer em todos os âmbitos. O tecnicismo no ensino, sobretudo no futebol, resiste. Seu enfrentamento, contudo, tem se dado por vias não exatamente novas: ressignificado, o escolanovismo pedagógico ganhou fôlego e tem se apresentado como elixir da boa vida sob roupagens outras, mas preservando a essência de um século atrás. 

Sob a égide das ‘metodologias ativas’, a preocupação com a forma se sobrepõe ao conteúdo. Alçar o(a) jogador(a) ao protagonismo e colocá-lo(a) no centro do processo de aprendizagem, é meta irretocável, mesmo que, para isso, seja preciso não incomodá-lo(a). A armadilha foi amplificada pela ascensão dos conceitos de positividade e desempenho, trazidos por Byung Chul-Han em ‘Sociedade do Cansaço’ nas relações pedagógicas: prefere-se o dinamismo de um jogo aos insossos dribles nos cones e chutes ao alvo descontextualizados por ser mais… legal. E interessante. E divertido. E recreativo. E mais suave. Iupi.

Temos, então, uma pedagogia centrada em atender, única e exclusivamente, aos anseios externos (familiares, torcedores, dirigentes) e agradar aos(às) jogadores(as). Aulas e treinamentos devem pretender, acima de qualquer coisa, o aprazível. Frustações são proibidas, os questionamentos, tolhidos, os erros, avalizados sem qualquer interpelação, as negligências, disfarçadas pelo falso afeto. Até a dor da derrota foi sufocada. Busca-se, o tempo todo, evitar o cancelamento – o da matrícula na escolinha e o moral. O(a) professor(a)/ treinador(a), botado(a) na palma da mão, literal e metaforicamente, virou refém dos likes e estrelinhas de uma sociedade ávida pelo julgamento raso.

Não suficientemente tóxico, o cenário apresentado (que em hipótese alguma se resume ao futebol ou à Educação Física) dá margem ao aparecimento de outro tipo de ‘interacionismo’ maquiado: frustrados(as) pela positividade excessiva, professores(as)/treinador(as) contrarreagem assaltando o jogo para si. A atividade dinâmica passa a ser, então, rigidamente controlada pela modulação de comportamentos, imposições verbais, estímulos diretivos, posturas típicas do behaviorismo, base do tradicionalismo pedagógico. E, voilá, temos o neotecnicismo, apresentado na última conversa: a metodologia pode até seguir baseada em jogos e fugir de tarefas analíticas, mas acaba sufocada pela didática arcaica e heterônoma. O jogador(a) joga o jogo que o professor(a)/treinador(a) quer e permite. 

O jogo é um fenômeno potente demais para ser reduzido a instrumento romântico de coerção de prazeres. Voltado ao ensino, à vivência, à aprendizagem ou ao treinamento esportivo, não deve ser apenas legal. Adquire sentido pedagógico nas intencionalidades atreladas ao gout l’effort, expressão francesa para ‘gosto de esforço’, evocada pelo Prof. Leandro Karnal em ‘Felicidade ou Morte’. Requer empenho mais até que desempenho. Jogar pressupõe desafio e desconforto, superação e subversão.

Nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, sempre aprendendo.

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O Palmeiras tem todos os motivos para não jogar bem

Crédito imagem – Palmeiras/site oficial

O ano futebolístico está atípico. Como nossa vida também está. Ou você tem feito nos últimos treze, quatorze meses, o que fazia antes da pandemia?! 

Trazendo para o futebol brasileiro o mais afetado é o Palmeiras. Observe que usei a palavra “afetado”. Sem juízo de valor. Pelo simples fato de que o time de Abel Ferreira foi o mais vencedor da última temporada. Jogou mais – em quantidade e em muitos momentos em qualidade – do que todos os outros. Isso é excelente sob o ponto de vista das conquistas. Chegar até a final da Copa do Brasil e ser campeão trouxe a disputa da Supercopa. Ganhar a Libertadores levou a equipe ao Mundial de Clubes e a Recopa. Excelente. Mas e o desgaste que tudo isso trouxe? A excessiva carga de jogos? A conta está chegando agora…

Discutir o calendário do futebol brasileiro é uma questão ‘pra ontem’. Passou da hora. Há anos estamos enxugando gelo. Nos moldes atuais não está bom pra ninguém: o clube grande joga muito e o pequeno joga pouco. E a situação atual do Palmeiras chega a ser surreal. 

Não consigo cobrar ideias de jogo muito elaboradas de Abel Ferreira pelo simples fato de ele não ter sessões mínimas de treino. Logo ele que vem da escola portuguesa que valoriza tanto o treinamento… e mesmo assim o Palmeiras ainda é capaz de aplicar uma sonora goleada em cima do Del Valle pela Libertadores…

Entendo o lado passional do torcedor e a vitória de ontem não significa muita coisa hoje, mas será perfeitamente normal e aceitável se o Palmeiras for eliminado na primeira fase do Paulistão. Pode-se ponderar sobre várias coisas: que o grupo do Verdão é muito complicado no estadual, que alguns jogadores que tiveram oportunidades não foram tão bem e etc. Entretanto, quero trazer uma visão mais macro das coisas. O descanso físico e mental é fundamental para todo atleta performar bem. Isso porque a fadiga não vem só do corpo e sim também da cognição. Volto na questão do treino de qualidade para um jogo de qualidade. Mas quando esse Palmeiras treina?! Sem pormenorizar se o uso que se faz hoje da palavra intensidade é o correto ou não, mas como ter um jogo intenso com tantas partidas em sequência?! E o risco de lesão que isso gera?

Estamos falando de competição. De esportistas profissionais. Que tem a busca pela vitória no DNA. Ninguém do Palmeiras entra para jogar mal e perder. Todavia precisamos de elementos básicos para cobrar um nível de jogo satisfatório. Eu que sou tão crítico com a qualidade do que é apresentada por aqui e cobro tanto o conhecimento e a ciência para a evolução nos detalhes que fazem a diferença para um jogar mais refinado, tenho que admitir: o Palmeiras tem todos os motivos plausíveis e justos para não jogar bem.

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O que podemos aprender com a NFL e o draft?

Crédito imagem – Tony Dejak/ AP Photo

Termina hoje, sábado dia 1º de maio, o chamado Draft 2021 da National Football League (NFL). Para os que ainda não sabem ao certo o que isto significa, o Draft é um evento que dura três dias e ocorre anualmente, servindo ao único propósito de recrutamento de jogadores universitários elegíveis para ingressarem, profissionalmente, na renomada NFL, uma liga esportiva composta por 32 times e que se divide em duas conferências: a National Football Conference (NFC) e a American Football Conference (AFC).

Não é novidade que a NFL vem ganhando cada vez mais fãs no Brasil. No entanto, pouco se comenta sobre o Draft. Acompanhada por milhares de espectadores ao redor do mundo, o evento é o principal modo de recrutamento dos talentos vindos das universidades, momento em que são selecionados por volta de 200 novos jogadores que mais se destacaram no futebol americano universitário.

Os direitos de transmissão do Draft são negociados, e a crescente popularidade do evento movimenta interesses decorrentes dos inúmeros patrocínios e comerciais transmitidos durante os intervalos, pois as marcas dos mais variados produtos e serviços pagam valores substanciosos para terem alguns segundos de visibilidade.

O Draft ocorre desde 1936, mas nos últimos anos cativou, de maneira surpreendente, a atenção do público em geral, uma vez que NFL soube explorar o seu potencial.

Com torcedores extremamente apaixonados pelos seus times, o evento possibilita a todos assistirem, em primeira mão, se os seus respectivos times conseguirão draftar – o que significa o ato de contratação dos jogadores durante o Draft – algum novo fenômeno ou o jogador que os demais times almejavam.

Até mesmo a ordem da escolha dos jogadores torna a dinâmica interessante: são sete rodadas (rounds) e a primeira delas determina a sequência das demais. Além disso, a ordem é baseada no desempenho dos times na última temporada, iniciando-se pelos times que tiveram o pior desempenho e seguindo para os que mais se destacaram.

Desta forma, busca-se criar mais chances para que os times que não se saíram tão bem na temporada consigam se reerguer com a ajuda dos novos talentos. Nessa lógica, os dois times que participaram do Super Bowl (que é a final disputada entre os times vencedores de cada conferência) são colocados no final da fila para a escolha.

Em teoria, essa dinâmica estimula a competência no esporte, uma vez que possibilita o equilíbrio técnico entre as equipes. Para ilustrar, no Draft de 2021 o primeiro time a escolher foi o Jacksonville Jaguars, e os últimos, o Kansas City Chiefs e o Tampa Bay Buccaneers, atuais campeões.

Assim, o Draft ganhou importância para o desenvolvimento dos times e para o teor comercial ao longo dos anos – quanto mais competitivo for o esporte, maior será o público –, além de constituir uma importante parte da cultura desportiva dos EUA. Consequentemente, o evento reflete, a seu modo, uma representação do “sonho americano”, pois possibilita que jovens atletas emerjam do anonimato – e muitas vezes da pobreza – para se tornarem referência de toda uma geração e serem coroados em rede nacional, garantindo-lhes contratos milionários.

Essa expectativa acaba que se desdobra em incentivos às categorias de base do futebol norte-americano. A título de exemplo, a própria NCAA Football – o principal campeonato nacional de futebol universitário nos Estados Unidos – faturou US$ 913 milhões no ano de 2013. Por sua vez, a CBF faturou R$ 436 milhões no mesmo, o que é, comparativamente, muito inferior.

Não bastasse isto, os 123 times que participam da NCAA reportaram uma receita combinada de US$ 3,2 bilhões (na época, isso equivalia a 7 bilhões de reais) em 2013 ao Departamento de Educação dos EUA, enquanto no Brasil a elite do futebol arrecadou menos da metade (R$ 3,1 bilhões).

Em termos de público, o futebol americano da NCAA também impressiona, levando, em média, 50 milhões de torcedores aos estádios. A conferência Sudeste, a mais forte dos EUA, tem em média de 70 mil por partida, e a Universidade de Michigan movimenta 100 mil torcedores em média durante a temporada, lembrando que isso não é a NFL (a liga profissional), mas apenas o futebol americano entre universidades.

Até hoje, esses números não param de aumentar. Quem estuda em uma universidade cria vínculos e constrói sua identidade, pois enxerga no esporte um caminho para visita-la, reviver bons tempos e torcer pelos times da casa. Trata-se de um vínculo diferente em relação ao torcedor de um time de futebol brasileiro, e muitos ainda não perceberam o seu potencial, inclusive financeiro.

Com tudo isto em mente, propomos uma reflexão: o que podemos aprender com a NFL e o Draft? Ora, a popularidade do futebol norte-americano, a publicidade envolvida e os números movimentados apenas reforçam a necessidade de criação de incentivos concretos e relevantes em nossas categorias de base, pois há, aqui, um imenso potencial ainda não explorado.

Isto é surpreendente quando se leva em consideração que o Brasil é conhecido por ser “o país do futebol”, e a causa disto certamente não é falta de público, pois se fosse realizada uma comparação com os torcedores norte-americanos no quesito amor ao esporte, a paixão dos torcedores brasileiros não deixaria nada a desejar.

E mais: como poderíamos nos inspirar em uma nação que transformou um esporte em um espetáculo e em matéria-prima para um negócio multibilionário? Poderíamos aplicar um conceito similar em nossas peneiras? Afinal, as peneiras nada mais são do que uma seleção que os clubes fazem para descobrir novos talentos que ainda não começaram a carreira profissional.

Sabemos que a realidade no Brasil é complexa: o governo não subsidia de maneira adequada a prática dos esportes, e os investimentos vindos da iniciativa privada ocorrem a passos lentos. No entanto, o potencial de desenvolvimento esportivo e econômico existe, e podemos começar aos poucos, com maiores incentivos, construção do sentido de unidade e lealdade ao clube e valorização da jornada de cada jogador até a ascensão às categorias profissionais.

Sem dúvidas, trata-se de um árduo trabalho a ser desenvolvido no decorrer de anos. Afinal, a própria NFL demorou anos para transformar o Draft e suas “categorias de base” no que são hoje. Mas é inegável o sucesso de seu empreendimento, que deve servir de inspiração para outros esportes, atletas e torcedores.

No caso do futebol brasileiro, cuja modalidade tem alcance mundial e muita força na América Latina e na Europa, o seu potencial é significativo e merece ser explorado mediante investimentos adequados, estratégias de marketing certeiras e comprometimento perene por parte dos gestores. Quem sabe daqui alguns anos também tenhamos um evento no estilo Draft, à brasileira, similar ao da NFL – e até uma palavra própria, que seja nossa, para nos referirmos a ele?