Categorias
Áreas do Conhecimento>Humanidades|Conteúdo Udof>Artigos Artigos

QUANDO O NOVO INCOMODA

O novo incomoda. Sempre foi assim, de Paganini a Jesus Cristo, passando por Gandhi e Einstein. Mesmo no universo cotidiano, longe da constelação dos gênios, o novo incomoda. Buscamos o igual, o comum, o conhecido que não perturba. Tudo aquilo que nos é desconhecido gera ansiedade. Ao ter que lidar com o novo, é necessário sairmos da zona de conforto que o conhecido – aquilo a que já estamos acostumados, ambientados e para o qual já adquirimos estratégias de controle e enfrentamento – nos garante. O novo incomoda, pois irá impactar toda a estrutura prévia que cada sujeito possui e, consequentemente, exigirá que esse sujeito se reorganize.  

A crítica ao futebol, feita por torcedores, dirigentes e mídia, alimenta-se do igual, do comum. Sempre que surge uma novidade, ela é vista com desconfiança. Raramente dá-se um voto de confiança ao novo, até que ele prove, de modo convincente, que é eficiente. De sua parte, a mesmice conservadora não precisa provar nada, tem o aval da crítica, geralmente, extremamente conservadora. Dá trabalho entender, adaptar-se e reorganizar-se diante do novo.

O termo “dinizismo” não surgiu para designar uma boa nova, mas para depreciar. Foi usado largamente como ironia a algo que, certamente, não daria certo, uma espécie de capricho de um jovem treinador metido a besta. Onde já se viu querer fugir ao 4-4-2, ao 4-3-3 etc.? Onde já se viu ficar “namorando” a bola em vez de ocupar, estrategicamente, os espaços do campo? Onde já se viu dizer que, antes do futebol, vem o ser humano? Onde já se viu querer ensinar os jogadores a jogar futebol, não um futebol qualquer, mas aquele parecido com o que antigamente se jogava na rua? E foi assim que “dinizismo” virou a ironia da vez, apenas aguardando o fracasso de Fernando Diniz, a fruta que apodreceria antes de amadurecer. O audacioso treinador teve que amargar as pancadas que recebeu por sua atuação no Atlético Paranaense, São Paulo, Vasco e outros, mesmo sem ter tido o tempo suficiente e reforços de bons jogadores para mostrar que conhecimento, convicção, dedicação e trabalho duro funcionam, mas precisam de tempo para se consolidar. 

E não basta que tal disposição venha somente dos dirigentes, mídia e torcedores. Os jogadores, acostumados aos mesmos treinamentos, estilos de jogo, tratamento, discursos, visões de mundo, precisam, como dizemos no futebol, “comprar a ideia” do treinador. Precisam estar dispostos e se desorganizar para se reorganizarem novamente sob outra perspectiva. É como se tivessem que, já profissionais, reaprender a jogador futebol. O goleiro passa a ter, também, papel importante nas construções das jogadas; os zagueiros não devem mais temer o controle da bola “rifando-a” para onde estiverem virados, mas sim passá-la, conduzi-la e, por que não, arriscar-se ao ataque. Todos passam a ser criadores e articuladores, não mais somente o camisa 10. O centroavante, costumeiramente estático dentro da área, transforma-se num atacante móvel, dinâmico, que não só finaliza, mas também cria, passa, marca.         

O Fluminense, com seus diretores lúcidos, apostou novamente na ideia de Diniz (a primeira passagem dele pelo Fluminense durou cerca de oito meses), deu a ele tempo e bons reforços, e ele pôde, com o apoio e disposição dos atletas, mostrar os resultados do trabalho desenvolvido por ele e sua comissão técnica. Imediatamente ganhou uma multidão de apreciadores, “dinizistas” desde criancinhas. Entretanto, vale frisar que o sucesso atual do Fluminense terá a estabilidade de qualquer jogo, ou seja, pouquíssima. Quem lida com o jogo sabe que o imprevisível é a marca mais distintiva de cada evento. Por melhor que a equipe esteja, eventualmente, sofrerá derrotas e poderá ter sequências negativas. É quando veremos se o “dinizismo” se manterá como termo apreciativo ou depreciativo. 

O jogo não é um milagre, tampouco um evento que pode ser totalmente controlado. É um fenômeno lúdico interpretado por alguns animais e, especialmente, pelos seres humanos, que encontram, sobretudo no imprevisível, a oportunidade de viver em estado de graça. Por ser tão especial, é fugidio, instável, imprevisível, efêmero. Há que se desfrutar largamente dele enquanto acontece, porque o jogo nunca promete estabilidade. Diniz não é o único treinador talentoso no futebol brasileiro, tampouco o único a propor um novo jeito de olhar, compreender e praticar o futebol; há outros que acreditam em diferentes modos de jogar. A maioria não chega ao sucesso, ao reconhecimento. São destruídos antes que possam mostrar os frutos de seu trabalho. Mas Diniz é, de fato, um grande profissional e uma pessoa extraordinária. Não há segredo no que ele faz. Fernando Diniz trabalha muito, trabalha duro e se permite ser criativo, ser diferente, ser, acima de tudo, humano.

Texto por: João Batista Freire e Rafael Castellani

Categorias
Áreas do Conhecimento>Humanidades|Conteúdo Udof>Artigos Artigos Colunas Colunas -

O futebol como negócio

Crédito imagem: Reprodução/Conmebol

Ainda ouviremos, vinda de quem dirige o futebol brasileiro, a frase de Michael Corleone dita no filme O poderoso chefão: “Não é nada pessoal, são apenas negócios.” Com ela, nossos ilustres dirigentes responderiam aos reclamos da torcida brasileira a respeito da decadência do futebol pátrio, com seus espetáculos insuportáveis. De fato, eles, que dirigem o futebol e outras coisas no Brasil, sabem que não precisaria ser assim tão ruim o jogo de bola por estas bandas, mas, com muito menos trabalho e com igual ou maior lucro, para que melhorar?

Talvez nem tenham nada contra o povo brasileiro, sobretudo a parcela admiradora e torcedora do nosso futebol, mas são apenas negócios. Não se trata de futebol, especificamente. Poderia ser qualquer outra atividade profissional, como exportação de carne, reciclagem de lixo, venda de franquias, não importa, desde que produza lucros astronômicos. Portanto, por que não o futebol? Das práticas sociais esportivas, certamente a mais lucrativa no cenário brasileiro; seu peso na economia brasileira não se limita ao Esporte e assume importância considerável.

Não é de hoje que o futebol assumiu ser, além de uma prática social que expressa, de modo hegemônico, nossa cultura corporal, uma poderosa arma política e de rentabilidade econômica incomparável. Em sua tese de doutorado, a professora Mariana Martins (2016) já corroborava essa compreensão, e ainda acrescentava que há um mercado que gira em torno do futebol, que atua, então, como um meio de valorização de outros negócios.  

A transformação dos estádios em arenas multiusos, a espetacularização das transmissões das partidas e a apropriação do futebol como objeto de marketing foram outras mudanças efetivadas que o transformaram, acima de tudo, num negócio.  

Há ainda outra abordagem que poderíamos fazer a partir desta compreensão do futebol enquanto negócio. O futebol, por vezes, não é somente um negócio para os empresários, patrocinadores, clubes, emissoras de televisão e investidores (dentre outros), mas é também uma importante fonte de renda para as famílias, certamente, que visualizam na carreira do seu filho (e quem sabe, no futuro, da sua filha) uma possibilidade de ascensão social.

Dessa forma, muitas famílias investem na carreira do seu filho. Destinam os recursos limitados que possuem para que ele possa treinar, comer melhor, viajar para fazer testes/peneiras, comprar uma boa chuteira. E não é raro que larguem até mesmo seus empregos para terem maior disponibilidade para cuidar integralmente da sua carreira e fazer dele, seu filho, um ídolo do futebol profissional. 

Pois é… para ter o futebol como um negócio, e muito rentável, é preciso transformar os jogadores em celebridades.  O público vive de mitos, de heróis, de ídolos! Mas empresarialmente falando, isso é coisa fácil de resolver: mitos e ídolos podem ser fabricados a qualquer momento, basta incensar um jogador por algum tempo, produzir vídeos apenas com suas boas jogadas, congestionar as redes com as imagens do escolhido e, pronto!, está feito o herói. O público também vive de escândalos, de denúncias, de jogadas e arbitragens duvidosas. Há muita coisa para empolgar a torcida; nem só de futebol vive o futebol! Se o futebol é, então, uma mercadoria e um negócio, ele precisa de produtos. É aí que entram os jogadores. Mas esse debate vamos deixar para um próximo texto.

Categorias
Áreas do Conhecimento>Humanidades|Conteúdo Udof>Artigos

Por uma Pedagogia da Autonomia no futebol – Quem treina, educa

Crédito imagem – Site Puc Goiás/Reprodução

O debate, promovido por intelectuais da Pedagogia do Esporte, acerca da necessidade urgente de devolver o fenômeno jogo a quem joga, tem causado alguma disjuntura, principalmente quando levada ao alto rendimento – o que não significa que seja caro e muito potente. Dar conta da profundidade que o tema exige em duas, três ou quatro folhas de papel é missão ingrata, presunçosa, até. Como teimosia pouca é bobagem, destilaremos algumas milhares de palavrinhas nesta e nas próximas conversas na tentativa de amenizar algumas distorções epistemológicas e desvendar os porquês do incômodo com as denúncias de sequestro do jogar pleno.

(Folha de papel, não. De Word. Começamos errado, que os não-cringes me perdoem. A culpa (mais uma) é do Paulo, o famoso camarada recifense, que, em meio ao oásis de criatividade do escriba, ajudou a parir este texto, mas tem certa fama de transgressor, vide o retrato antigo). 

Embora a ideia de que treinadores e treinadoras de futebol sejam, acima de tudo, pedagogos e pedagogas do esporte, soe pretensiosa, há um inconsciente coletivo, que alimenta a premissa quando, por exemplo, esses profissionais são chamados de ‘professores’ ou ‘professoras’. São aqueles e aquelas que ensinam a executar gestos, sob as bençãos do tecnicismo utilitário, com foco total e uno no produto final, a bola na rede, por isso, técnicos e técnicas. Que treinam, ensinam, mas, mais do que isso, educam – mesmo sem saber que o fazem. É justamente por esse ‘sem querer querendo’ que antes de oferecer a carta de alforria ao jogador e a jogadora, é preciso apresentá-las aos e às que ficam à beira do campo e da quadra tenham mais consciência do papel formativo que possuem.

Vale o contraponto: nossos pressupostos esportivo-pedagógicas não são ingênuas a ponto de excluir a importância de colocar a redonda na casinha, do resultado, da vitória e das técnicas para execução dos movimentos, que fique muito claro. Nossas problematizações envolvem, sim, o reconhecimento de que, todos e todas, somos vítimas das epistemologias da prática racionalistas, que assumem o dom e a empiria como condições fundamentais para o jogar bem futebol. E, via de regra, de uma educação bancária, que incute positividade para oprimir, que rotula atitudes e coisifica afetos para sufocar palavras, que faz do questionar, ato de indisciplina e fruto da desordem e caos.

Temos, então, um paradoxo: o que é o jogo, senão o puro suco do caos?

Há um ditado popular que diz mais ou menos assim: ‘de boas intenções, o inferno está cheio’. Desconfio que, em algum momento nessas conversas pedagógicas, delineamos que bons propósitos não asseguram, automaticamente, boas práticas. Porque se pressupormos algum compromisso com o processo formativo humanizado, parece importante nos atermos à qualidade epistemológica desses propósitos: eles levam em conta o que treinadores e treinadoras supõem ser o mais adequado à aplicação e subordinação de jogadores e jogadoras, como avatares de videogame? Ou dialogam com os saberes culturais e cognitivos e dissabores daqueles e daquelas que jogam? O sim pr’uma resposta e o não à outra, demarcam a não tão sutil diferença entre intenção e intencionalidade.

Trocando em miúdos: pedagogicamente falando, mais do que saber onde queremos chegar e como, precisamos conhecer os porquês de fazermos o que fazermos. São os motivos, sustentados pela nossa segurança epistêmica, os demarcadores de uma prática pedagógica munida de intencionalidades. Podemos pensar, por exemplo, em uma atividade com estafetas, até cones, à primeira vista materiais baluartes d’um treinamento tecnicista, para, a partir deles, estruturar ambientes de jogo e de aprendizagem que contenham o dinamismo, a complexidade e a lógica desafiadora que tarefas que fragmentam gestos e descontextualizadas, do ponto de vista tático, não dispõem.

A intencionalidade pedagógica adquire sentido, de fato, quando não objetifica relações. Reverenciar os saberes e identidades de cada jogador ou jogadora, o fato de que são sujeitos inacabados, imperfeitos e imprecisos e, mais importante, oferecer espaços de diálogo e escuta, ao seu modo, conferem a fadada – e menosprezada – humanização nas relações. Pasmem, tudo isso não significa que não possamos exigir empenho, fazer cobranças, buscar e primar pela vitória. Nunca foi sobre ser legal ou precaver displicência, como já dissemos por aqui. É fazer, no fim das contas, o mínimo: destilar empatia, respeitar o próximo como gente e partilhar experiências, sob um olhar plural e sensível ao mundo.

O fazer, portanto, não é mais importante que o saber-agir e o saber-ser: forjar aquilo que pensamos, propomos e somos, em ato consumado, desembocado pela didática. Por isso, dentre outras coisas, insistimos tanto (e continuaremos a insistir) na confissão crítica de crenças, concepções e valores que nos tornam aquilo que somos – e o amigo Hudson Martins sopra no ouvido para que não confundamos esses processos de ‘auto-identificação’ como sinônimos de filosofia de treinadores e treinadoras. Da comunhão entre teorias e práticas, emerge a práxis, palavrinha que fez parte de outras conversas, que representa a efetivação d’uma pedagogia, que seja entendida como ciência da prática educativa, também atrelada ao esporte e ao ato de ensinar como prática social complexa. 

O reconhecimento das limitações do outro, passa pela confissão honesta das nossas. Ao supormos que alguém, com a incumbência de liderar indivíduos sob pressão constante admita fraquezas, confrontamos ao que parte da cultura esportiva, embebecida por ideais corporativos, neoliberais e recheados de positividade requer. Algo que soa violentamente contraditório dado que o esporte é uma atividade essencialmente antropológica e uma das mais belas formas de expressão da condição humana: ‘exemplo de vitórias, trajetos e glórias’, mas também de dores, fracassos e impotências, moradas das ‘situações-limite’ – e são nelas, que constam os pontos de partida rumo à desnaturalização de nossas situações existenciais. Pelo esporte e, mais especificamente o futebol, resistimos, esperançamos e transcendemos.

O libertar do jogador e da jogadora por uma Pedagogia do Jogo que emancipa e humaniza, infere, assim, que treinadores e treinadoras desvelem suas próprias ontologias – ao desenvolverem suas possibilidades e potencialidades de existência – e axiologias, os motivos de suas ações enquanto valores, sejam eles morais, éticos ou estéticos, de modo a não reduzirem seus saberes ao campo das ideias ou ao cumprimento de protocolos meramente instrumentais e justificados pela tradição.

Na prática, a teoria não é outra, afinal: o ato de ensinar (futebol) consciente e não ingênuo exige que coloquemos nossas marcas e afetos nele.

Espero que tenha dado pro gasto, Paulo. Qualquer coisa, a culpa é tua – como sempre.

Categorias
Áreas do Conhecimento>Humanidades|Conteúdo Udof>Artigos

As epistemologias nossas de cada dia II – O empírico e a técnica

‘E você, jogou aonde?’

Em nossa última conversa, retomamos brevemente o conceito de epistemologia e como essa ciência se articula com os processos didáticos e metodológicos no ensino e treinamento do futebol. Falamos também sobre o quanto a teoria do conhecimento inatista, àquela que concebe o mundo – e o esporte – entre aqueles e aquelas que receberam alguma dádiva dos céus ou receberam vultuosa herança genética e são, portanto, essencialmente talentosos e talentosas, especiais, os e as que passam a vida tentando encontrar o dom que lhes foi atribuído e os e as pobres mortais.

No papo de hoje, apresentamos uma outra teoria do conhecimento, a empirista, que mesmo sustentada pelas mesmas lentes paradigmáticas do inatismo, concebe os processos de aprendizagem de maneira totalmente oposta. Expliquemos.

O inatismo pressupõe que todos os nossos saberes, competências, habilidades são determinados, concebidos para, durante a vida, serem aperfeiçoados: conhecimento é manifestado, assim, de dentro para fora. O Empirismo inverte os sinais. Empirismo faz alusão à empiria, termo que remete ao grego experiência, mas não àquela de sentido larrossiano – muitas vezes evocada neste espaço pelo Hudson Martins. Trata-se da experiência-vivência, mesmo: aquilo que passa.

O modo ‘empírico’ de conceber as relações humanas é tão antigo quanto à teoria do conhecimento inatista. O Empirismo foi impulsionado lá no Século XVII e teve como icônicos entusiastas dois britânicos: Francis Bacon, político, ensaísta e tido como um dos fundadores da ciência moderna e John Locke, filósofo, tido como ‘pai’ do liberalismo econômico. Ambos rejeitavam a incerteza e reduziam os fatos e saberes ao real e ao palpável, àquilo que poderia ser comprovadamente enxergado com os olhos e experimentado: um literal ver para crer, de fazer inveja ao Tomé bíblico.

Locke, inclusive, considerava a alma humana uma tábula rasa: vazia, desprovida de impressões ao nascer, que seria escrita de acordo com nossas vivências.  Quanto mais velhos ficamos ou maior quantidade de situações vividas em determinado contexto, mais sábios, fatalmente, seremos. O conhecimento é adquirido, portanto, de fora para dentro.

O Empirismo, durante os três séculos seguintes, firmou as bases do modus operandi de vida ocidental, seja na política, na economia, na saúde, nas relações sociais e, claro, na educação. Ofereceu uma roupagem moderna à visão de mundo fragmentada e dicotômica: a existência do certo ou errado, o bom e o mau, o vencedor e o perdedor, a teoria e a prática, os que sabem e os que não sabem, o que muito bem convinha num mundo repartido por muros ideológicos de concreto e cortinas de ferro. No Século XX.

No contexto educacional, o Empirismo sustenta abordagens pedagógicas que se pautam em modelos de produção industrial (sim, falo do fordismo e do toyotismo) e da psicologia comportamentalista – vale uma pinçada em ‘Sobre o Behaviorismo’,

obra de Burrhus Frederic Skinner. Superá-las pressupõe um rompimento epistemológico (ou brusca mudança das lentes de contato) que tem exigido, há décadas, constantes esforços de pedagogos e pedagogas globo afora, materializados pela busca de caminhos, na relação de aprendizagem, em que o(a) professor(a)/treinador(a) não mais seja o ‘senhor(a) do ensino’ e o(a) aluno(a), colocado em plano de protagonismo e nobreza deixe de trabalhar de forma mecânica. 

Na cultura esportiva e no futebol, o Empirismo é soberano. O(a) treinador(a), mais velho, mais experiente, ensina ao jogador(a), mais novo, tido como menos capaz, ao mesmo tempo em que é julgado(a) como mais competente que o outro através, e tão somente, dos resultados (como pede o produtivismo industrial). Para consegui-los rapidamente, fraciona, mecaniza e induz comportamentos nos treinamentos através do mecanismo punição-recompensa (olha a psicologia comportamentalista, aí), mesmo que descontextualizados às tarefas do jogo – essencialmente imprevisível e caótico.

São esses os pressupostos que regem posturas banais no mundo da bola. O treinamento baseado em repetições de gestos é o que deve nortear a formação do(a) atleta para que os gloriosos tempos de ‘futebol-raiz’, com ênfase desenfreada na técnica, torne a dar as caras. Afinal, hoje ‘tá chato’ ver jogo. O Fulano, que nunca jogou profissionalmente, não pode ser melhor treinador que o Siclano, ídolo, ex-jogador consagrado, que chupou milhares de laranjas no vestiário e vai transmitir, quase que por osmose, tudo aquilo que fez e viveu em campo. E se não der certo Siclano, chame Beltrano porque ele, sim, bota ‘ordem’, (esse belo eufemismo para medo) e vai fazer com que o time corra mais e jogue ‘com empenho e vontade’. Puro empirismo.

Já corroboramos, em algum momento, com esses exemplos bobos – e é bastante possível que sejam centenas de dezenas de milhares os/as ainda concordaram. Porque, como dissemos, o Empirismo cumpre muito bem o que presume muitas das concepções do paradigma analítico-sintético, colocado à mesa desde o início de nosso processo de formação – na escola, na igreja, na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê.  Questionarmos tais concepções no momento em que o Interacionismo, terceira das três teorias do conhecimento que compõem a série, está posto e consolidado em outros lugares da Terra, a redonda e não a plana, é um dever pedagógico:

– teçamos críticas ao tecnicismo e não à técnica. O tecnicismo é a concretização industrial-produtivista chancelam ações repetitivas e descontextualizadas nos treinamentos, dentre outros motivos porque ‘sempre foi assim’, A técnica, fundamental ao jogo, pode e deve ser trabalhada junto à tática;

– vivência, em qualquer área, é importantíssima. Aprendemos a jogar, jogando e a treinar, treinando. Parece-nos importante, no entanto, nos atermos à qualidade, e não à quantidade, das experiências e tarefas que constituem nossos saberes, que adquirem novos sentidos a todo momento;

– há grande diferença entre ‘correr certo’ e ‘correr mais’. A ‘vontade’, desprovida de processos bem definidos na estruturação de modelos de jogo que potencializem rendimentos dos(as) atletas, tem prazo de validade curto.

O Empirismo carece de desconstrução – e toda a desconstrução envolve processo. Demanda, de acordo com o contexto, respeito ao tempo e a história do próximo. Não nos custa, porém, dizer que tal qual o mullet no cabelo, o discman, o computador com o sistema operacional Windows 95, a Brasília amarela e o voto impresso, o Empirismo na pedagogia, no esporte e na Pedagogia do Esporte foi tendência, teve lá sua utilidade e até parece tentador saudá-los em favor de um romantismo – às vezes mal-intencionado.

Mas no frigir dos ovos, é apenas cafona e sem sentido.

Categorias
Áreas do Conhecimento>Humanidades|Conteúdo Udof>Artigos

Conto dos sonhos – O retorno dos super-herois

Crédito imagem: Bruno Ulivieri/AGIF/CBF/Divulgação

“O dia em que a terra parou”, já cantava nosso poeta, Maluco Beleza, Raul Seixas.

Nas águas de março de um ano histórico, uma inesperada e necessária pausa de vida. Mas, como é complicado, difícil e complexo viver um momento histórico mundial, sem precedentes na nossa trajetória. Talvez, nem Freud explique. E se explicasse, o que ele nos diria? 

O mundo parou e quem imaginaria que a grande paixão mundial também? Pois é! Inacreditavelmente, a partida de futebol precisou ficar suspensa por longos meses. Nesse instante, os corações inquietantes dos atletas, principalmente da garotada em formação, pulsaram forte. Os sonhos foram interrompidos, desejos foram postergados, ações, comportamentos, vontades e anseios foram repensados. 

Quantas perguntas se fizeram, quantas perguntas os fizeram? O que me aguarda no futuro próximo? Quando retornarei ao campo? Quando poderei pisar no gramado? Quando poderei fazer o que mais amo? Quantas inquietações foram necessárias e quantas perguntas sem respostas tivemos por tantos dias. 

Sonho, caracteriza-se pelo “ato ou efeito de sonhar, conjunto de imagens pensamentos ou de fantasias que se apresenta durante o sono”. Desta vez, por ironia do destino, o sonho aconteceu ao despertar, aconteceu nas noites mal dormidas de uma incerteza constante e até na falta do paladar. “Se esperamos viver, não apenas de momento a momento, mas sim verdadeiramente conscientes da nossa existência, nossa maior necessidade e mais difícil realização será encontrar significado nas nossas vidas.” Essa passagem do escritor Bruno Bettelheim, retirada do livro: “A Psicanálise dos contos de fadas” reflete bem o sentimento desses atletas sonhadores vivenciados nessa pandemia reflexiva. 

Retornar ao futebol, retornar as atividades presenciais, trouxe de volta a esperança desse “novo normal”, desse “novo sonhar”, só que agora de um ponto diferente, talvez com muito mais significados, talvez com muito mais cores e muito mais vida na caminhada de cada um. Acompanhar sua chegada, vê-los adentrar no Centro de Treinamento, o mundo desejado e almejado por muitos, mas ainda para poucos (e bem poucos), me fez sentir que vale a pena  continuar o trabalho! Eles retornaram, se colocaram à disposição para o novo de novo, demonstraram em seus olhos as pupilas dilatadas, de tanta euforia, felicidade e turbilhão de sensações e emoções.  

O desejo de pisar naquele velho tapete sagrado, desejo de uma família por trás – de um pai, de uma mãe – desejo de um mundo melhor, de uma vida melhor, desejo de muitas mudanças.  

Momentos históricos nos fortalecem, momentos desafiadores nos tornam mais fortes. Será? Foi assim que senti e presenciei o retorno desses super-heróis. Eu falei super-heróis?! Sim! Eles chegaram e voltaram com suas capas invisíveis, sorrisos por trás das máscaras e muita força para salvar o mundo, salvar o outro e salvar a si. Guerra de gigantes, sonhos de meninos e, que nesse conto, nessa história narrada, o final ainda é incerto, o super-herói ainda não salvou o mundo, mas nesse mundo do “salve-se quem puder”, onde ainda estamos vivendo uma pandemia, onde as doses homeopáticas são diárias, seu final feliz ainda é incerto, mas muito possível.

Sejam bem-vindos, meus meninos, meus garotos sonhadores! O que o futuro nos espera? Quais sonhos serão realizados? Ainda não sei. Mas a psicóloga e filósofa da vida que vos fala garante que passaremos por tudo isso juntos. Viveremos tudo isso mais uma vez, se preciso for…

E como diz a letra da música da Banda Skank, “Bola na trave não altera o placar, bola na área sem ninguém pra cabecear, bola na rede pra fazer o gol, quem não sonhou, em ser um, jogador de futebol?”

Categorias
Áreas do Conhecimento>Humanidades|Conteúdo Udof>Artigos

Sobre as lentes de contato (humano)

Tá, ‘seo’ Feola, só falta combinar com os russos” – Garrincha

Na coluna passada, falamos da interdisciplinaridade como uma das certezas da vida. Pois bem, essa afirmação – que para alguns soa presunçosa – não nasceu de uma árvore de devaneios interiores. Ela tem fonte e viés epistêmico e está sustentada por um modo de enxergar a vida vivida e as relações humanas, ao admitir que o mundo gira, o tempo passa – e o tempo também voa “para a poupança Bamerindus continuar numa boa”.

O trocadilho de gosto duvidoso do parágrafo acima pode nem fazer muito sentido para um montão de gente, então segue a explicação. A poupança Bamerindus não continua numa boa, porque esse banco, de origem paranaense, deixou de existir ainda no século passado. Mudou, foi comprado, virou outro. E é exatamente disso que trataremos no presente texto: mudança, metamorfose, não-linearidade, interação, inconstância, emergência.

O ato de ensinar/treinar é, tal qual o jogo, imprevisível – um dos motivos pelos quais entendemos porque há tanto sentido nas metodologias pautadas em jogos no futebol, por exemplo. A prática pedagógica tende ao caos, à desordem, justamente porque não é possível controlar todos e todas, tudo que a cerceia, seja lá qual for o contexto. Desde o drible improvisado do atacante ao erro bizarro do goleiro, do chute pouco provável no último minuto, passando pela expulsão relâmpago até a dividida no treinamento que provoca a lesão ou a contaminação coletiva de um vírus contagioso. Todas essas situações que podem emergir, meio que sem mais, nem menos e provocar mudanças bruscas na condução do(a) professor(a)/treinador(a) em meio aos jogos ou treinos.

Por essas e algumas outras, desconfio que o professor(a)/treinador(a) que afirma, com contundência, que possui 100% de controle em suas ações e intervenções é ou demasiadamente ingênuo(a) ou desconhece a própria natureza de sua prática enquanto pedagogo(a) do esporte e do futebol.

Há também uma terceira possibilidade – que não necessariamente exclui as anteriores: a de que esse ou essa profissional esteja simplesmente sustentado(a) por um outro paradigma.

Sejamos, pois, didáticos: o paradigma representaria, tomando emprestado algumas noções conceituais do “Pensamento Sistêmico“, da Maria José Vasconcellos, das “Estruturas das Revoluções Científicas“, de Thomas Kuhn e “d’O Método“ de Edgar Morin, as lentes de contato que, com o perdão da redundância, contatam ser humano e mundo. Ao ser validado e interpretado por uma comunidade científica, o paradigma passa, tal qual um farol, a iluminar sociedades, por meio de leis, regras, crenças e concepções de vida supostamente coerentes.

Então, quando acreditamos, enquanto professor(a)s/treinador(a)s de futebol, que somos capazes de controlar tudo, tudinho, o que nos passa nos ambientes de ensino, vivência, aprendizagem e rendimento, é bem possível que estejamos guiados por um modo de pensar associado ao paradigma analítico-sintético, chamado também de tradicional ou dominante, dada sua influência sobre as sociedades que habitam o planeta nos últimos séculos.

Esse paradigma, concebido junto ao Racionalismo cartesiano e aos métodos empiristas nos Séculos XVI e XVII, propõe a explicação dos fenômenos por princípios como o da simplicidade: fragmentamos, nos treinamentos, o todo (o jogo) em partes (ações técnicas) que nem sempre possuem relações entre si, baseadas na relação causa-efeito. Suponhamos: ao treinarmos finalização de modo analítico temos crença que, a despeito do isolamento dessa ação com as situações problemáticas do jogo, o/a jogador/a terá essa ‘habilidade’ potencializada durante as partidas. É o que costuma nortear também os famosos ‘onze contra zero’ e a maioria das jogadas ensaiadas – e pouco importa se elas não foram combinada com os russos.

Outro princípio característico do paradigma analítico-sintético é o da objetividade, que no futebol pode ser caracterizado pela convicção (mesmo sem provas) de que a análise d’um jogo é passível de descrição pura, simples e objetiva, e não de interpretações subjetivas, até mesmo afetivas. O que manda é a estabilidade, materializada, justamente, pelo controle e previsibilidade de toda e qualquer situação que ronda o/a professor/a e treinador/a e seus comandados/as, geralmente pela manipulação de comportamentos.

E a interdisciplinaridade, fica onde? O que significa o papel dos departamentos de fisiologia na prevenção de lesões ou da análise de desempenho, ao monitorar as características – fortes e fracas – do adversário e da própria equipe senão a tentativa de obter o máximo controle sobre quem joga?

Existe um filósofo contemporâneo que cunhou a expressão ‘chegar é uma coisa, passar é outra’. Tentar, nesse caso, não implica em conseguir controlar o jogo, dentre outras coisas porque ele também é feito de carne e osso. Parece-nos possível – e legítimo – minimizar riscos, prever e corrigir situações, sem que haja presunção, no entanto, em domá-las por completo. Trata-se de tornar o imprevisível um pouco menos imprevisível.

Ao afirmarmos que o jogo é incontrolável e, por consequência, ações de jogadores/as e as intervenções pedagógicas de quem ensina/treina, estamos fardados por um outro tipo de ‘lente’: a do paradigma complexo/sistêmico, que contempla o mundo de forma não-linear, pouco causal, como lugar inerente à mudanças e interações constantes e parece dar conta de explicar um bocado de ressignificações nas próprias relações humanas e no jogo de futebol ao assumi-los como indomáveis em essência.

A ‘troca de lentes’, porém, não é simples e costuma ser incômoda. O paradigma analítico-sintético influenciou e continua a persuadir nossa existência e ignorá-lo por completo ou não reconhecer sua benesses, inclusive científicas, beira o imprudente. Romper com ele está para além da simples aplicação, por exemplo, de metodologias ativas, pautadas no jogo, ou em premissas conceituais das chamadas novas tendências da Pedagogia do Esporte, sem entender minuciosamente o contexto a que estamos inseridos. Exige disposição para o auto-conhecimento e empenho para desconstruir e ressignificar parte de nossa identidade, tanto a pessoal, quanto a profissional – diria aquele apresentador de TV – como se ela, aliás, fosse assim, repartida.

Mas isso é papo para outro dia. Afinal, o tempo passa, o tempo voa…