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Sobre o lugar do modelo de jogo na formação do caráter

Fabinho, hoje no Liverpool: educado nos modelos de jogo e no método do Paulínia FC. (Foto: Reprodução/ig)

 
Todos nós estamos acostumados, em algum nível, a ouvir que nosso trabalho no futebol não deve apenas formar atletas, mas deve também formar pessoas. Se vocês me dão o privilégio da leitura regular, sabem que normalmente escrevo diversas coisas neste sentido, particularmente aqui e nesta outra coluna. Ao mesmo tempo, preciso dizer que esses discursos soam muito bonitos, às vezes são fáceis de se verbalizar, mas podem mais ficar na esfera do politicamente correto do que na esfera das condutas práticas.
Por isso, hoje gostaria de falar um pouco sobre a importância do modelo de jogo neste processo de ‘formação do caráter’ (admita todos os sinônimos aqui). Como de costume, escrevo algumas inquietações, que deixo vocês trabalharem como quiserem.

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Ainda que possa soar repetitivo, acho importante começarmos pelo seguinte: quando falamos de modelo de jogo, estamos falando de tática, mas não necessariamente estamos falando de estratégia. Por quê? Porque, em linhas gerais, o modelo de jogo ocupa um lugar entre a tática e a estratégia. Está abaixo da tática desde que entendamos tática como ‘(…) a gestão (posicionamento e deslocamento/movimentação) do espaço de jogo pelos jogadores e equipes’ (p.26), como conceituaram os professores Israel Teoldo, José Guilherme e Júlio Garganta, no livro ‘Para um Futebol Jogado com Ideias’. Ou seja, qualquer manifestação individual, grupal ou coletiva será tática – ainda que não apenas tática. Por outro lado, o modelo está acima da estratégia uma vez que tem um caráter transversal, atravessa o processo, direciona qual será o caminho de uma dada forma de jogar, enquanto a estratégia tem um caráter mais pontual, específico, de curto prazo, situacional. Ou seja, um modelo de manutenção da posse e progressão ao alvo via superioridades no setor da bola no corredor central pode acontecer num 4-3-3, num 3-4-3 ou num 1-8-1. A estratégia é posterior ao modelo.
Talvez eu não tenha sido explícito, mas aqui já temos um primeiro ponto importante. Se o modelo está acima da estratégia e se queremos discutir o papel do modelo de jogo na formação do caráter, temos então que nos desvencilhar de alguns mantras limitantes. Por exemplo, houve uma época em que se dizia coisas do tipo ‘jogar com três zagueiros na base’ seria um crime, porque times com três zagueiros seriam mais defensivos (sic), porque se perderia a figura do camisa dez (sic) e vários outros porquês. Mas se o que é definitivo no jeito de jogar de uma equipe é o modelo, podemos portanto jogar com dezoito ‘zagueiros’ e mesmo assim sermos ofensivos. O que quero dizer é que, independentemente dos mantras, creio que o processo de especialização deva ser realmente marcado exatamente por um período de experimentação, de encontro, de desencontro, mas especialmente por um período de descoberta, porque essa descoberta é descoberta do jogo, mas especialmente é descoberta de si. O atleta se descobre, como pessoa, dentro do jogo. Fazendo uma, duas, três, várias funções diferentes, ocupando posições diferentes, podendo tomar decisões diferentes dos outros (especialmente nos modelos que permitam alguma liberdade posicional), enfim… experimentando tantas possibilidades quanto for possível, exatamente para enriquecimento do próprio acervo.
Talvez aqui cheguemos a um primeiro denominador comum, se pensarmos na formação do caráter: é recomendável que os modelos de jogo dentro do processo formativo (ou o modelo de uma única temporada) deem aos atletas a chance de experimentar possibilidades, de inventar novas soluções, de se provar na adversidade e se afirmar no conforto. Na essência, que os modelos deem aos atletas a chance de se descobrir.

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Durante o processo formativo, especialmente nos primeiros anos da especialização, tenho alguma convicção que a escolha do modelo de jogo pelo treinador é fundamental na formação do caráter do atleta. Por quê? Porque ainda que não nos esteja claro, qualquer modelo de jogo carrega uma série de valores, de crenças e de conhecimentos que sustentam o nosso pensamento e a nossa prática. Inclusive, este é um exercício que podemos fazer agora: quais você acha serem os valores que estão por trás do modelo de jogo da sua equipe?
Pensei muito nisso outro dia, quando assisti a um jogo de um grande clube brasileiro, na fase de especialização, em que absolutamente todas as jogadas ofensivas começavam em um lançamento do goleiro para o centroavante. Não era circunstancial, era a regra: em todos os momentos, pontapés do goleiro ao ataque. Os zagueiros não precisavam se preocupar com nenhum conceito ofensivo, e o esforço dos meio-campistas, na maioria das vezes, residia apenas na extensão da musculatura do pescoço, para observar a bola que passava acima e adiante. Veja bem, é claro que respeitamos a escolha dos profissionais, mas quais valores estão por trás de um jogo tão pobre? Que tipo de jogador formamos num modelo desses? Será que formamos jogadores mais inteligentes, mais criativos, corajosos, versáteis, arrojados, persistentes, subversivos, inconformados? Qual é a cicatriz que este jeito de jogar deixa nos meninos num período tão importante da sua formação?
Por outro lado, será que os modelos que desejam marcações mais altas não exigem dos nossos jogadores algum desprendimento, alguma subversão (no sentido de defender-se para frente, não para trás), uma grande solidariedade na ocupação de espaços? Será que os modelos que constroem por baixo desde o goleiro não exigem dos nossos jogadores alguma coragem (às vezes muita), alguma insubordinação para talvez driblar em zonas próximas do próprio gol, alguma atenção para encontrar o momento certo do passe que vai rasgar as linhas adversárias? Ou mesmo os modelos mais defensivos (para não falarmos só de ataque), que baixam o bloco e querem as transições, será que não ensinam alguma resiliência, alguma paciência, alguma capacidade de saber sofrer e de suportar o jogo, como às vezes nos é pedido suportar honradamente o peso da vida, nas suas surpresas e na sua crueza? Será mesmo que nada disso deve ser considerado? Creio que sim – e muito.

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Daí que as potencialidades do modelo não se resumem à especialização. Elas são flagrantes no rendimento. Mas, para pensar nisso, acho que devemos dar um passo atrás.
Como conversamos outras vezes, existe uma noção (geralmente implícita), de que o atleta de rendimento já está ‘formado’, já está ‘pronto’, é um ‘produto acabado’ e a função do treinador, portanto, seria apenas adequar-se ao que o atleta é, ainda que muito do que atribuímos aos nossos atletas esteja mais próximo dos estereótipos do que das evidências. De fato, o atleta que chega ao profissional acumula milhares de horas de prática, tem rápidas respostas para problemas elaborados e, se quisermos um termo do treinamento, tem uma treinabilidade menor, ao menos quando comparados com sujeitos comuns.
Ao mesmo tempo, este atleta ainda está em formação – do ponto de vista esportivo e do ponto de vista humano. Se você preferir, está em formação exatamente porque é humano. E essa incompletude que nos faz humanos permite que um treinador, a quem compete educar pelo jogo, seja capaz de caminhar por lugares inexplorados com qualquer atleta, e o caminho que sugiro para isso é exatamente o modelo. Ou você não acredita que um determinado atleta, que sempre fora taxado de inábil na construção ofensiva, talvez apenas não tenha recebido os melhores estímulos na formação? Ou então um outro atleta, que confiava demais no próprio talento, finalmente está maduro a ponto de trabalhar e dedicar-se como nunca? Ou ainda um outro atleta, que sempre se identificou como meia, agora percebe (pelo modelo) quem tem todas as condições para jogar como um lateral? Se acreditarmos que os atletas (e as pessoas) não mudam, então não precisamos de pedagogia, não precisamos de educação – e portanto não precisamos de treinamento. Por outro lado, se acreditamos na vida, nas potências da vida, então acreditamos nos movimentos da vida e, portanto, acreditamos nos movimentos da formação e nos movimentos da trans-formação.
Que são possíveis pelo modelo e através do modelo.
 

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O "futebol moderno” e o “futebol raiz"

É muito comum observarmos as discussões sobre o futuro do futebol, sobre os caminhos que a modalidade mais popular deste país trilha, não apenas por aqui mas também no mundo todo. Sobre as diferenças entre como o jogo é disputado na Europa e como é por estas bandas. Por lá – referência na indústria deste esporte – o caminho tem sido através do futebol total, a formação multidisciplinar e a maximização do espetáculo. O profissionalismo, o estabelecimento de metas e cumprimento de resultados dentro e fora de campo. Em outras palavras, especialistas nomeiam este fenômeno como sendo o “futebol moderno”.
Por outro lado, lembra-se (este colunista, inclusive) do jogo como era antigamente: do amor à camisa, do campo com lama, das quedas de energia, da torcida em pé sob sol e sob chuva. Dos dirigentes que não “largavam o osso” e todos os fatores que constituem outro fenômeno cujos mesmos especialistas batizam-no de: “futebol raiz”.
Lamento dizer, o “futebol raiz” no universo da indústria do esporte de rendimento ficará na lembrança. No máximo pontualmente haverá alguma coisa em um clube ou outro. Nos últimos anos a indústria das telecomunicações e do entretenimento cresceram muito, assim como o mercado publicitário. Foi processo natural que o esporte e especificamente o futebol (de competição) -, manancial de ídolos e referências que estabelecem conexão afetiva com o ser humano -, fosse envolvido por esta indústria. Ora, o que querem entretenimento e publicidade? Justamente esta conexão afetiva.
Esta transformação tem sido a tônica e tudo tem se caminhado para isso. É processo natural, consequência de uma série de fatores que envolvem a nossa sociedade, práticas do mercado e políticas de Estado. Noutros tempos, por exemplo há algumas décadas, especialistas da bola explicavam e discutiam sobre as causas e consequências de futebolistas estarem sendo pagos para jogar. Naquele mesmo tempo, torcedores mais saudosistas diziam que o futebol do passado era o “de verdade”, ou seja, enquanto era amador. Era o “futebol raiz” contra o “futebol moderno” daqueles tempos. Assim era.
Qual então, portanto, será a discussão análoga ao moderno versus raiz, no futebol, daqui a 30 ou 35 anos?

Apresentação de Maradona como treinador do Gimnasia y Esgrima de La Plata/ARG. (Foto: Paula Avila, Reuters, Foto Baires)

 
Diante disso, é difícil haver meio termo entre o passado e o presente. No entanto, é preciso respeitar os dois principais elementos do esporte: o atleta e o torcedor. Ademais, há uma cultura apaixonada que deve ser preservada e respeitada construída através da identidade, conexão afetiva que o esporte consegue estabelecer de maneira única. É seguir em frente, sem perder a ternura.

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Em tempo mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:

“A única constante da vida é a mudança.”
ditado popular

 

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Hoje o Flamengo é o melhor. Amanhã, eu não sei

O Flamengo é hoje inegavelmente quem joga o melhor futebol no Brasil. Isso não quer dizer que vá erguer algum troféu no final do ano. Até porque dentro desse mesmo Brasileirão, por exemplo, já tivemos o Santos de Jorge Sampaoli apresentando o jogo mais vistoso e até o Palmeiras de Luiz Felipe Scolari se destacando naquela série imbatível no começo da competição. Nenhum deles, porém, conseguiu manter o alto nível – tanto que o Verdão até já trocou de treinador. Pontuo isso para já de cara colocar tranquilidade e calma no empolgado flamenguista.
O técnico Jorge Jesus tem conseguido extrair o que cada jogador do elenco rubro-negro tem de melhor. Situação bem diferente da vivida pelo seu antecessor, Abel Braga. E não vale aqui falar que o treinador português tem um elenco milionário nas mãos e conseguir bons resultados não passa de uma obrigação (Abel tinha praticamente o mesmo plantel). O conceito de time é muito complexo. O todo é maior que a soma das partes. Se não houver um bom trabalho por trás, ter “apenas” bons jogadores não basta. E aqui vai o elogio ao treinador flamenguista: há muita ideia e conceito no time dele.
O Flamengo hoje é um time que ataca de maneira muito vertical. Com o conceito de ataque rápido muito bem entendido por todos os jogadores. O objetivo é chegar com poucos passes ao gol adversário. Trocas de posição no setor ofensivo, assim como sempre ter muitos jogadores a frente da linha da bola, fazem parte desse conceito. Na defesa, a agressividade nas ações sem a bola chama a atenção na equipe carioca. Independentemente de sustentar mais as linhas ou buscar algo mais individual, a marcação flamenguista se caracteriza por sempre colocar pressão no adversário.
Todos esses conceitos são frutos do trabalho do treinador. Não adianta falar para os jogadores realizarem determinada ação em campo. É preciso treinar, adaptar, aprimorar e, mais do que isso, vender as ideias aos atletas. E esse trabalho de convencimento também é mérito de Jorge Jesus. Mais do que nunca, as competências interpessoais e de comunicação e liderança são exigidas e devem ser reconhecidas quando aparecem.
É bobagem querer dizer que esse time do Flamengo jogaria as principais ligas do mundo em condições de ser campeão. Nem levo em consideração declarações assim (dadas pelo próprio Jesus) porque com contextos diferentes não dá para fazer nenhum tipo de comparação. Hoje, no momento que escrevo esse texto, o Flamengo joga o melhor futebol em território brasileiro. Na semana que vem, no mês que vem, ou como diriam os antigos, “no balanço das horas”, tudo pode mudar. O bom time de hoje não é necessariamente o campeão de amanhã.
 

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Sobre a pedagogia das pausas nos treinamentos

Diego Simeone, conversando com os atletas em uma pausa – durante o jogo. (Foto: Reprodução/Marca)

 
Outro dia, na disciplina Metodologia de Treinamento em Esportes Coletivos I, ministrada pelo professor Alcides Scaglia na FCA Unicamp, surgiu uma dúvida interessante, levantada por um dos alunos: como saber qual é o melhor momento para pausar um jogo, durante o treino, e dar instruções aos atletas?
Bem, gostaria de trazer essa discussão aqui por dois motivos. Primeiro, porque é uma discussão importante em todas as categorias – desde a iniciação esportiva até o alto rendimento. Depois, porque é uma discussão geralmente encarada pelo olhar da fisiologia do exercício, a partir das relações esforço/pausa. Mas não é disso que gostaria de tratar aqui. Na verdade, o que quero discutir são as possibilidades pedagógicas das pausas nos treinamentos.
Vejamos.

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Em primeiro lugar, vamos estabelecer um ponto de partida. Nosso ponto de partida será o jogo. O que isso significa? Significa que falarei a partir de um lugar muito específico, que é o das metodologias de treinamento que se baseiam nos jogos. Não falarei, pelo menos não especificamente, da função pedagógica das pausas em exercícios analíticos – porque é um ponto de partida bem diferente. Falarei da função pedagógica das pausas em pequenos jogos, em grandes jogos, em jogos de manutenção da posse, de progressão ao alvo, jogos de finalização, em jogos mais complexos, em jogos menos complexos, em jogos. Neste sentido, indico esta outra coluna, na qual falei um pouco mais sobre do que falamos quando falamos de jogo.
Quando falarmos das pausas dentro de um jogo, temos uma primeira questão importante. Vamos chamá-la, como já está colocado, de estado de jogo. O ato de jogar nos absorve de tal modo que nos colocamos em uma situação de breve suspensão da realidade – que, ao mesmo tempo, traz elementos do real. Este estado de absorção, de colocar-se num outro tempo/espaço, que é o que sentimos quando jogamos algo, é o que podemos chamar de estado de jogo. E aqui temos um primeiro elemento importante nas pausas: fazer uma pausa significa tirar quem joga do estado de jogo. Sempre que nós, treinadores e treinadoras, pausamos o jogo, nós estamos automaticamente tirando nossos atletas do estado de jogo e fazendo com que eles voltem bruscamente à realidade.
Daí que algo a se considerar ao fazer uma pausa seja exatamente o estado de jogo. Se eu faço um jogo qualquer e coloco pausas a cada minuto e meio para corrigir alguma coisa ou dar instruções quaisquer, eu não estou deixando meus atletas entrarem em estado de jogo. Quando eles vão entrar, eu os tiro. Por isso só, as pausas já seriam muito importantes, porque  elas exigem de treinadores e treinadoras um enorme grau de precisão e sensibilidade, para que os jogadores estejam suficientemente absorvidos pelo estado de jogo e possam criar novos saberes.
Portanto, em primeiro lugar, vamos estabelecer que não apenas é preciso um tempo mínimo para estabelecer uma pausa, como não é saudável pausar o jogo a todo instante. Não nos esqueçamos que este tempo não é cronológico, é tempo do jogo. Exige sensibilidade.

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Depois, vamos pensar em outra questão central: o que falamos nessas pausas?
Claro que não darei instruções, não sou capaz de ensinar nada para ninguém. Mas podemos levar a conversa para outro caminho: como dizer o que deve ser dito? Veja bem, essa é uma questão necessária. Creio que você e eu podemos admitir que nossa formação como atletas e/ou treinadores nos ensinou, de alguma forma, que devemos aproveitar as pausas para somente dar instruções aos nossos atletas, para instruí-los sobre o que é certo fazer, para dizer o que deve ser feito, às vezes para narrar como o atleta deve fazer determinada ação, ou determinada jogada, ou como deve comportar-se em uma situação de jogo.
Mas nós também podemos estar acostumados ao contrário, a pensar que instruir sobre o que deve ser feito em um jogo de enorme complexidade, como é o futebol, é um contrassenso – porque não existe resposta no singular. Devemos considerar uma alternativa, e gostaria de me atentar a ela. Nós podemos, ao invés de dar respostas, fazer perguntas. Bom, isso não é nenhuma novidade, mas talvez seja uma novidade dizer que, a meu ver, fazer perguntas (fazer as perguntas certas) é uma arte muito mais difícil do que a de dar respostas. Especialmente por um motivo: quando fazemos perguntas aos atletas, fazemos já esperando um certo caminho, uma certa resposta. O que significa que perguntas equivocadas podem perfeitamente nos fazer perder tempo, energia e, ao longo do tempo, pode nos fazer perder a confiança dos atletas.
Se levarmos em conta que nossas pausas nem sempre serão muito longas (por motivos pedagógicos e fisiológicos), é preciso que haja enorme precisão nas nossas perguntas. Por exemplo, se fizermos um jogo de manutenção da posse, de 5v5 + coringa, e na pausa perguntarmos aos nossos atletas ‘o que estamos fazendo de errado?’, talvez não tenhamos aqui uma pergunta muito precisa (porque ela pode ter respostas infinitas). Por outro lado, se neste jogo houver um problema específico de mau uso do coringa, nós podemos pensar em alguma coisa do tipo ‘vem cá, vocês acham que nós estamos usando bem o coringa?’ [a pergunta já presume que não] ‘Ótimo, por quê?’ E talvez a conversa caminhe para onde queremos. Veja bem, é apenas um exemplo, não há receitas. O importante é que as perguntas devem dar uma dose de precisão suficiente para não serem nem pequenas demais, nem grandes demais.
Ou seja, em segundo lugar, vejo que as pausas serão preferencialmente mais bem aproveitadas se fizermos perguntas, que nos permitam construir saberes ao lado dos atletas, especialmente quando as perguntas são precisas e têm alguma direção.

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Por fim, gostaria de falar sobre o planejamento dessas perguntas. Se partirmos daquela premissa do jogo, de que falamos lá no começo, devemos considerar que cada jogo que é único e que cada jogo é imprevisível. Por outro lado, se lançamos mão de um determinado jogo, sabemos que alguns comportamentos irão aparecer mais do que outros. Se faço um jogo de finalização, espera-se que haja muitas finalizações. Se não houver, talvez algo esteja errado no meu jogo.
Muito bem, sabendo que não sabemos quando nem como algo irá ocorrer, mas que este algo provavelmente ocorrerá, acho importante que treinadores e treinadoras tenham em mente, com antecedência, que tipo de coisas diremos nessas pausas. Veja bem, não se trata de construir um roteiro fechado e apenas repeti-lo no instante, mas sim de preparar-se para o que provavelmente surgirá naquele jogo. Se algo muito diferente e muito imprevisto/muito importante acontecer, ótimo! – nós sabemos improvisar. Mas se o jogo for condizente conosco, provavelmente algo do que planejamos irá nos acontecer – e aí seremos certeiros.
Entendo que fazer as observações apenas de improviso seja uma estratégia válida (que eu mesmo já utilizei bastante), mas sinto que existem possibilidades pedagógicas ainda maiores quando nos preparamos para esses detalhes. Em última análise, a própria quantidade de pausas (especialmente na iniciação, em que a relação esforço/pausa tem uma conotação diferente da especialização/rendimento) é algo que também pode ser planejada com antecedência, de acordo com o jogo e os conteúdos a serem trabalhados.
Portanto, nosso terceiro ponto nos diz que planejar os conteúdos a serem abordados nas pausas pode ser bastante valioso, dadas as probabilidades de um determinado princípio (manutenção, progressão, finalização) se manifestar no jogo, o pouco tempo cronológico que geralmente temos disponível nestes instantes e, por isso, a necessidade de aproveitar bem o tempo que nos resta.

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De alguma forma, a pausa é um momento crucial, porque é quando a atenção realmente se volta para nós, treinadores e treinadoras. Ali, somos avaliados nos nossos modos de falar, na nossa postura, nas nossas ideias, somos avaliados por inteiro. Por isso, aliás, sinto que a pausa deve causar um certo tremor, um certo receio em qualquer treinador, assim como causa uma certa expectativa nos atletas.
Por hoje, apresento apenas alguns caminhos. Caminhamos por outros lugares em breve.
 

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Cultura das organizações e filosofia de trabalho

Para uma organização (esportiva ou não) implementar uma filosofia de trabalho (a verdade e os princípios morais dela), com base em sua missão, visão e valores, leva um tanto de tempo. Ela é importante para a adaptação de um colaborador e o estabelecimento de uma rotina, assim como é um dos fatores responsáveis por proporcionar entrosamento em uma equipe. É a representação da cultura de uma instituição. Em muitos casos, a implementação de uma filosofia de trabalho vem acompanhada por uma cartilha de direitos e deveres do colaborador.
Parece um tanto básico, mas faz toda a diferença. Instituições centenárias, ou mais recentes porém sólidas, baseiam-se em uma cultura que se vislumbra em um primeiro momento para depois se desenvolver ao longo do tempo.
No futebol, dizem que o Corinthians possui algo parecido. Uma vez me disseram que o funcionário de chão de fábrica do clube é treinado a levar consigo a máxima “Aqui é Corinthians”. Em outros clubes, também, com a manutenção de comissões técnicas fixas nas categorias de base. Aos poucos elas passarão aos jovens atletas um jeito de atuar próprio do clube, construído em mais de um século, através de jogadores notáveis e títulos importantes. No São Paulo, o Centro de Treinamento em Cotia possui poucos funcionários terceirizados, pelo mesmo motivo (funcionários do clube se identificam com ele, têm a essência do clube).
Insisto no tema porque reconheço este ser um dos problemas do esporte no Brasil, sobretudo no futebol. Os que citei no parágrafo anterior, são algumas exceções. O problema também ocorre em outros países. Patrick Vieira não quer ser treinador na Liga Inglesa porque acredita não terá tempo suficiente de implementar uma cultura de trabalho. Ele declarou à revista “FourFourTwo”: It’s all about winning. There’s so much pressure” (Tudo é questão de vitória / É muita pressão).
Conheço um pouco dos All Blacks e a União de Rugby da Nova Zelândia. Quem é convocado para a seleção pela primeira vez ou é recrutado para trabalhar na sede da federação, passa por um período de treinamento para saber onde se vai trabalhar (ou jogar), para quem (com quem) e quem na história ajudou a fazer a instituição. Isso sustentado pela missão, visão e seus valores.

O túnel de entrada em Anfield, estádio do Liverpool FC. (Foto: Reprodução/Divulgação)

 
Voltamos ao Corinthians e especificamente a um treinador que teve muito sucesso naquele clube, o Tite. Queriam mandá-lo embora depois de uma derrota para o Tolima, na Pré-Libertadores, em 2011. Apesar do revés, mantiveram-no no cargo. Abriram mão dos resultados e da pressão (o que Vieira disse haver na Liga Inglesa (torneio que é exemplo, referência de planejamento e implementação de cultura de trabalho dentro do esporte). Com isso, tiveram tempo para estabelecer aos poucos uma equipe campeã, sem estrelismo ou protagonistas, e em que a instituição de fato parecia estar em primeiro lugar.
Não sei por quais motivos o Tite ficou no cargo. Quero muito acreditar que tenha sido uma opção feita a partir da cultura da organização.

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Em tempo mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:

“Campeões não são feitos em academias de ginástica. Campeões são feitos de algo que eles têm dentro deles mesmos: um desejo, uma visão, um sonho. Eles têm que ter a habilidade e o desejo, e o desejo tem que ser mais forte que a habilidade.”
Muhammad Ali

 

 
 

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Felipão por Mano: muda ou não muda?

Dentro da complexidade do futebol não há apenas um elemento que resulta em sucesso ou em fracasso. Tudo conta e tudo compõe, incluindo os mínimos detalhes, um trabalho que dá certo e um que dá errado. A trajetória de um treinador dentro de um clube também acompanha essa linha. Luiz Felipe Scolari não foi campeão brasileiro no Palmeiras em 2018 apenas pelo seu carisma, por exemplo. E também não viu seu time desmoronar neste ano apenas por “falta de repertório”, como disseram muitos. Tudo conta. Tudo compõe.
Para simplificar e tornar didático, quero dividir as competências de um treinador em dois grandes temas: as competências técnicas e as de gestão do ambiente. Para mim é a junção do êxito nessas duas grandes áreas que faz um treinador ganhar títulos de forma recorrente.
As competências técnicas são as específicas de dentro das quatro linhas. Primeiramente, um treinador deve ter uma ideia de jogo. Saber o que quer de sua equipe em campo em todos os momentos do jogo, com e sem a bola. Passa por isso uma avaliação inteligente do elenco disponível para que seja extraído o melhor de cada peça. Também conta aqui uma flexibilidade do treinador em seu conceito de acordo com o que a equipe for respondendo no dia a dia.
Após isso, são necessários conhecimentos de metodologia de treino para operacionalizar as ideias. E é fundamental também uma leitura de jogo apurada para entender como superar as fraquezas dos adversários e para alterar a própria equipe de acordo com as circunstâncias de cada partida.
Já as competências de gestão do ambiente tem a ver com a liderança, a comunicação e as relações interpessoais do treinador. O bom trato com o atleta, com os dirigentes e com a imprensa é fundamental para o treinador ser vitorioso. O futebol é um ambiente hostil e cheio de cobranças por natureza. Um técnico que não saiba fazer com eficácia a gestão desse cenário dificilmente terá sucesso.
Quando Felipão voltou ao Palmeiras no ano passado suas habilidades de liderança foram extremamente úteis para a equipe ganhar o Brasileirão. Em campo, ele mudou alguns conceitos, mas havia uma equipe bem treinada por seu antecessor Róger Machado. Porém, para este ano quando se esperava um trabalho de campo mais autoral de Felipão não foi possível termos um jeito muito elaborado de jogar. Nem nos melhores momentos do verdão na temporada vimos conceitos de jogo bem definidos. A qualidade técnica dos jogadores e uma imposição física deles sempre se mostraram as maiores virtudes da equipe.
Mano Menezes chega com o desafio de trazer um frescor ao vestiário e de colocar mais organização a equipe para defender, atacar e fazer transições. No curto prazo, é possível focar mais ou na questão de campo ou na gestão do ambiente. Vai do feeling de quem chega saber identificar rapidamente o problema momentâneo. Mas para um trabalho ser vitorioso no médio/longo prazo é  necessário ter competência nas duas áreas. Muitos técnicos duram pouco tempo nos clubes por sempre focar apenas uma delas.
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Sobre a amplitude como regra e a assimetria como opção

Erik Ten Hag, do Ajax: campo pequeno, ataques grandes. (Foto: Reprodução/Fox Sports)

 
O bom futebol é jogado com ideias. O mau futebol também. Quem trabalha com futebol deve acostumar-se a um problema duplo: ao mesmo tempo em que não podemos abdicar das ideias, também não há como considerá-las garantias de resultado. São caminhos menos infinitos do que o próprio jogo.
Ao longo do tempo, de acordo com os modismos de cada lugar e época, algumas ideias se cristalizam e são tidas como pré-requisitos para se jogar bem futebol. Na linguagem brasileira, uma dessas ideias atende pelo nome de amplitude. Na linguagem portuguesa, largura.
Nesta coluna, gostaria de trabalhar algumas ideias sobre amplitude, não mais como um princípio indispensável para jogar bem futebol, mas como um dos diversos caminhos possíveis na materialização de um dado modelo de jogo.
Vejamos.

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Simetrias. Se fizermos o curso de Tática, nesta mesma Universidade do Futebol, encontraremos que ‘amplitude é a distância entre os extremos de uma variação periódica’. Da física, podemos nos lembrar que amplitude é ‘o valor do deslocamento máximo da onda’. As definições de amplitude são várias, mas não é nelas que gostaria de me estender aqui. Na verdade, gostaria de fazer uma pequena curva apenas para lembrar de uma noção anterior à noção de amplitude que, ainda que discreta, está bastante presente quando tratamos dela no futebol: trata-se da noção de simetria.
Leio em uma página simples que a simetria reflexiva (aquela do espelho) pode ser vista quando ‘uma linha é desenhada sobre um objeto de tal forma que as duas metades sejam imagens especulares umas das outras’. Em um objeto simétrico, as duas metades são iguais. Aqui, não consigo deixar de pensar que se traçarmos uma linha, de um gol a outro, em qualquer um dos desenhos táticos que praticamente todos nós pensamos para as nossas equipes, talvez não haja um sequer que não seja simétrico. Todas as nossas distribuições são ordenadas, isométricas, equiláteras. Talvez porque ainda tenhamos resquícios (às vezes muito fortes, às vezes não) de um certo traço cartesiano do pensamento, de uma certa ordem matemática que aprendemos ser importante para resolução dos nossos cálculos, da nossa vida e, evidentemente, do nosso jogo.
Mas quando jogado, onde está a simetria no jogo? Aquela que desenhamos nos nossos campinhos se esvai, dissolve no primeiro segundo. A ordem existe, porque o caos gera novas ordens, mas a simetria vai se perdendo, porque o futebol é jogo, é jogo coletivo, é jogo coletivo de invasão, porque a bola é um atrator violentíssimo, que talvez seja justamente responsável por deixar o jogo assimétrico na sua raiz. Estou fazendo especulações para dizer que não acho que a simetria deva ser vista como a única forma de organização (ofensiva, especialmente) de uma dada equipe. Na verdade, tenho me convencido de que os ataques assimétricos tendem a confundir mais as defesas modernas mais do que os simétricos, exatamente porque existe uma certeza, por parte das duas equipes, que haverá uma ocupação clássica do espaço. Outro dia, em uma disciplina ao lado do professor Alcides Scaglia, achei curioso como os jogadores, que poderiam marcar pontos em três alvos distribuídos no fundo do campo, com um deles valendo quatro vezes mais do que um dos outros, estavam todos comportadinhos, distribuídos organizadamente na zona ofensiva. Simetria.
Olhando a simetria com algum distanciamento, creio que podemos entender alguns dos limites da amplitude.

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Tempo e Espaços. Ainda que estejam subentendidas, tempo e espaço são duas dimensões essenciais ao jogo de futebol (Menotti dizia que a terceira é o engano, que citarei adiante). Quando falamos de amplitude, falamos portanto de uma forma específica de uso do espaço, em um momento específico do jogo, que é o momento ofensivo, em zonas específicas do campo (há zonas em que a amplitude é mais necessária – também falarei disso abaixo). Tomemos como ponto de partida que amplitude seja ‘a ocupação do terreno de jogo em largura quando a equipe está atacando’, como conceituado pelo colega Rodrigo Azevedo Leitão, em 2008. Ao lado da profundidade, é uma das formas de se fazer o chamado campo grande no ataque, como nos acostumamos a dizer.
Vejo pelo menos duas ideias escondidas sob a noção de campo grande. Uma é que o campo grande condiciona o adversário a também defender em um espaço mais largo, o que significa que serão supostamente maiores as chances de criação de espaços intrasetoriais – ou seja, espaços entre os jogadores de um mesmo setor, de uma mesma linha. Ao mesmo tempo, manter jogadores abertos nos dois lados do campo permite, por exemplo, a possibilidade de longos passes em inversão, ou às vezes balançando o adversário para um lado quando, na verdade, o objetivo é finalizar do outro. Os colegas certamente já ouviram Pep Guardiola, em algum momento, falando sobre isso. Talvez o gol de Pedro, neste memorável Barcelona x Real Madrid, seja um exemplo pertinente neste sentido.
O ponto que me inquieta é o seguinte: a meu ver, temos entendido a amplitude não mais como uma das possibilidades de distribuição espacial, mas sim como uma regra inviolável de distribuição espacial – um princípio obrigatório para qualquer equipe que deseja jogar bem futebol. Por outro lado, há diversos exemplos, inclusive recentes, de equipes assimétricas, que abdicam da amplitude no ataque, e também jogam bem futebol. Vou até mais longe: para determinados modelos (de ataques apoiados, inclusive) alargar o campo pode ser contraproducente. E não há problema algum nisso. Na verdade, a grandeza do jogo real faz com que as possibilidades de jogá-lo bem sejam precisamente infinitas.

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Conexões. Vamos pensar em uma equipe que deseja um ataque mais elaborado, uma progressão curta e cheia de apoios, independentemente do corredor (central ou laterais). Neste caso, você concordará comigo que é saudável que o portador da bola, especialmente nas intermediárias, tenha um número razoável de opções de passe. Sinto que normalizamos um pouco a ideia de duas opções de passe (porque nos acostumamos aos triângulos ofensivos), mas suponhamos que nossa equipe queira mais, queira que o portador da bola tenha três ou mais opções de passe. Assim, será preciso que o setor da bola esteja constantemente povoado e que o portador tenha diversas possibilidades de conexões – ou nosso modelo terá problemas.
Os colegas Israel Teoldo, José Guilherme e Júlio Garganta, no ótimo ‘Para um futebol jogado com ideias’, caracterizam este setor da bola como o centro de jogo. Segundo eles, o centro de jogo é ‘uma referência espacial dinâmica, em forma de circunferência com raio de 9,15 metros a partir do epicentro de jogo [a bola]’. Sendo a bola, por motivos óbvios, um atrator fundamental, consideremos então que as opções de passe a que me referi acima devem estar preferencialmente no centro de jogo (ou tão próximas dele quanto possível), tendo em conta aquele esboço de modelo que estabelecemos para nossa equipe. Quanto mais opções de passes curtos/médios, melhores as chances de progredirmos por baixo.
O Ajax, que nos encantou no primeiro semestre, era uma equipe que sabia muito bem como estabelecer essas conexões a partir de uma grande flexibilidade posicional. Perdemos as contas das vezes em que David Neres atravessou o campo para criar superioridades com Hakim Ziyech. Da mesma forma, um jogador absolutamente elogiável naquele time (mas que passou despercebido) era Daley Blind, que embora jogando como quarto zagueiro, tinha liberdade para fugir da própria zona e ocupar espaços incomuns para um defensor – justamente para estabelecer as conexões necessárias à manutenção da posse. O caso de Blind é um ótimo exemplo de como a criação de linhas de passe pode solicitar um certo desrespeito ao espaço, um verso solto, uma certa desobediência. Só que a amplitude, ao menos como percebida por nós, está mais próxima do oposto, de um respeito inquestionável, uma certa disposição previsível do espaço, que também causa uma expectativa previsível do adversário. O engano, de que falava Menotti, torna-se mais raro.
Se aquela nossa equipe deseja atacar por baixo, com inúmeros apoios, haverá momentos em que não apenas jogadores mais distantes podem buscar o setor da bola (ainda que do lado oposto), como também seja preciso que outros jogadores centralizem – caso queiramos manter o equilíbrio – que não deve ser apenas defensivo. Neste caso, concordamos que a amplitude será menor.
E que mesmo assim é possível atacar bem.

O Ajax, de Erik Ten Hag, contra a Juventus, há poucos meses. A amplitude é baixa e não como uma circunstância, mas como um padrão. E havia ataques de muito bom nível.

 
Localização. Sinto que parte razoável dos nossos ideais sobre a largura ganharam corpo com o recente sucesso de Pep Guardiola – que vários de nós tentamos emular. Como os colegas sabem, Pep é um grande entusiasta do chamado juego de posición, muito embora Juanma Lillo, um dos seus grandes mentores, tenha alertado, no livro Pep Guardiola: A Evolução, que a nomenclatura mais adequada seria juego de localización, uma vez que a palavra localização seja, segundo ele, a que melhor relaciona a posição e a situação com uma intencionalidade tática.
Sobre a amplitude, vamos recorrer a uma citação do próprio Guardiola, no mesmo livro:
“(…) se o seu lateral não corre para cima e para baixo por oitenta metros sem parar, você tem de se adaptar a isso. Se colocar o extremo por dentro, meu lateral sobe, mas se meu lateral não está em condições de subir com todo o vigor, então tenho que colocá-lo por dentro para que jogue, e abrir o campo com o extremo. Porque você não pode atacar com profundidade se não tiver amplitude. É impossível. E tem de adaptar seu ataque a essa realidade. Agora, se tenho um lateral que é uma máquina, que vai para cima e para baixo sem parar… Mas minha teoria (e creio que o futebol será assim nos próximos tempos, e só falo do jogo posicional e não de outro modelo) é que não existem feras capazes de resistir toda uma temporada indo para cima e para baixo, correndo oitenta metros a cada ação. Ou talvez eles aguentem uma temporada, mas na seguinte já sofrem e na terceira não aguentam.”
Repare comigo duas coisas: Pep admite que fala a partir do juego de posición – e não de qualquer outro lugar. É importante fazer este adendo porque tanto Pep não foi tão influenciado por nenhum outro modelo (lembre-se da sua formação no Barcelona e do Dream Team com Johan Cruyff), quanto nós, brasileiros, não fomos exatamente educados a partir deste modelo. Grossíssimo modo (e para não me estender aqui) acho razoável dizer que o futebol brasileiro, na sua construção histórica, foi mais bola do que espaço. Veja bem: ele também foi espaço, mas foi mais ainda mais bola. Jonathan Wilson, no cultuado A Pirâmide Invertida, faz uma observação necessária neste sentido, sobre o Brasil de 1982 (que há quem questione porque não teria amplitude):
“Desse modo, a formação era um 4-2-2-2, com uma forte coluna central flanqueada por dois laterais ofensivos, Leandro e Júnior. Em um contexto europeu, a análise indicaria um time sem amplitude para os lados, mas o Brasil tinha tanta fluidez e qualidade com a posse da bola que criava a amplitude com o próprio movimento.
A segunda coisa na fala de Pep é que ele diz que é ‘impossível’ atacar com profundidade se não houver amplitude. Bom, Guardiola é genial, mas será mesmo que é impossível? Com as citações que fiz acima, me fica mais ou menos claro que é impossível ter profundidade sem amplitude se olharmos a partir da localização. Mas a localização não é a única forma de olhar para o jogo. A partir da localização, a amplitude é obrigatória em toda a fase ofensiva – ou em parte dela, como veremos abaixo. Em outros olhares, a amplitude pode ser facultativa e contextual. Vejamos.
Este gráfico está disponível no Relatório Técnico da última Copa do Mundo da FIFA. Nele, estão dispostas as larguras médias (amplitudes) de cada uma das 32 seleções. Repare que aquelas que obtiveram os melhores resultados, inclusive a França, não foram necessariamente as que tiveram as maiores amplitudes.

 
Largura Contextual. Pense comigo em uma divisão do campo em quatro zonas horizontais (você pode visualizá-las na página 363 deste artigo). Os professores Israel, Garganta e José Guilherme, no mesmo livro que citei no início, chamam essas zonas de setor defensivo, setor médio defensivo, setor médio ofensivo e setor ofensivo – considere os nomes que achar razoáveis. Como você e eu sabemos, mesmo Pep Guardiola, para quem a amplitude é fundamental, considera que ela passa a ser secundária em uma das zonas. No caso, é a zona ofensiva, onde ele julga necessária uma certa liberdade para que os jogadores façam o que bem entenderem. Isto está claro neste famoso vídeo de Thierry Henry, explicando parte do pensamento guardiolista. Ou seja, o próprio Guardiola reconhece que, na última parte do campo, a amplitude passa a ser secundária ao movimento – o alvo está no meio, afinal. Vocês sabem que até outro dia (talvez até hoje) Thomas Tuchel, agora treinador do Paris Saint Germain, montava pequenos campos em forma de hexágonos, justamente para condicionar os atletas a centralizarem as jogadas de ataque nos metros finais.
Nas duas primeiras zonas, setor defensivo e médio defensivo, creio que devemos colocar outra variável em conta: o risco. Os riscos de reduzir a amplitude no campo ofensivo são válidos para desequilibrar a defesa adversária, mas não acho que o mesmo aconteça nas duas zonas defensivas. Especialmente contra equipes que pressionam bem, creio que devemos sim alargar o campo, ainda que laterais ou pontas, a meu ver, possam ter liberdade para buscar o jogo nas faixas que julgarem haver espaços a ocupar, de acordo com a posição de companheiros e adversários (sobre isso, falei um pouco neste texto). Creio até que podemos imaginar um postulado próximo do seguinte: quanto mais próxima a bola estiver do gol adversário, menores serão as necessidades de amplitude. Repare bem, não é que a amplitude será obrigatoriamente menor, mas ela pode ser flexibilizada. Neste sentido, desconfio que a amplitude não seja geral, mas sim contextual (depende da altura da bola no campo) e, além disso, seja gradual – haverá equipes com alta, média e baixa amplitude. Assim como não há equipes sem ideias, não há equipes sem amplitude.
Creio que o grande pulo do gato esteja no setor médio ofensivo. Ali, a meu ver, há infinitas possibilidades de ataques que abram mão da amplitude e que se organizem em função da bola, não da organização do espaço. Este é o grande ponto: pode haver ótimos ataques com elevada amplitude, mas também pode haver ótimos ataques com baixíssima amplitude, valorizando a interação dos jogadores em zonas mais próximas da bola e aumentando a densidade na periferia do centro de jogo inclusive como forma de proteger-se em uma possível transição do adversário. A meu ver, é nesta zona que vivem as maiores possibilidades de uma eventual desobediência, de um uso mais livre do espaço, onde podemos questionar mais livremente os ditames da posição.

***

Liberdade Ofensiva. Para pensar um pouco além dos ditames da posição, é necessário considerar a noção de liberdade – que destaquei sutilmente durante o texto. Veja bem, liberdade não é anarquia. Vejo que dar liberdade a determinados jogadores no momento ofensivo significa que, de acordo com os problemas do jogo (que são infinitos), o próprio atleta está livre, tem autonomia para tomar as decisões que julgar adequadas, desde que vinculadas ao modelo de jogo construído. O ponta pode atravessar o campo e criar superioridades numéricas no lado oposto. O lateral pode entrar em diagonal, o zagueiro pode criar uma linha de passe muitos metros adiante. Em uma dada zona do campo, um atleta pode julgar adequado abrir mais o campo, mas na mesma zona, em uma outra situação, o atleta pode se sentir confortável fazendo o oposto. Ou pode ser que em um dado ataque, aquela nossa equipe deixe um lado descoberto, testando os limites defensivos do adversário.
Esses movimentos, que às vezes partem mais da bola do que do espaço, podem ser terríveis para marcações zonais ou individuais. Como não temos muitas individuais puras, consideremos aqui as individuais no setor. Se sou um lateral-esquerdo e marco o atleta que entra no meu setor, como me comporto quando a equipe adversária se desloca inteira para o lado contrário, sem que ninguém sobre no meu setor? Claro, posso centralizar, mas repare que fazendo isso, fui indiretamente obrigado a ocupar um outro setor que não o meu. Esta é outra potencial vantagem na ausência de amplitude: condicionando o próprio ataque, ela condiciona a defesa adversária, só que de uma forma mais incomum do que aquela disposição que abre o campo para gerar espaços por dentro.
Mauricio Pochettino, em recente entrevista ao site argentino Enganche, fez uma fala muito bonita sobre sua visão da liberdade no momento ofensivo. A meu ver, ela está diretamente relacionada às possibilidades de organização ofensiva (lembrando que a ordem no jogo nasce do caos) e às possibilidades de superação da amplitude como regra. Deixo a citação no idioma original:
“Al final, el jugador de hoy te demanda desde lo táctico, porque tiene más conocimiento que antes. Y esto ocurre debido a las redes sociales y al material disponible para todos mediante la tecnología. El jugador de hoy quiere que quien le entrena le otorgue conocimientos tácticos. Por mi parte, dentro de esa táctica o estrategia vive la idea de dejarle al futbolista la libertad para que encuentre la inspiración. Y eso no solamente se trabaja. Eso se demuestra mediante la filosofía que utilices para jugar de una manera determinada. Si me preguntas a mí, la flexibilidad táctica es la que hace que el futbolista pueda encontrar la inspiración y que pueda tomar las decisiones propias que pueden hacer que un equipo sea impredecible.”
 

Um recorte de West Ham v Norwich, jogado no último sábado. O Norwich (de cinza) tem se destacado por um jogo apoiado, elaborado, muito gradável. O jogador mais abaixo na imagem é Lewis – lateral-esquerdo! Repare a concentração dos jogadores no lado direito e como isso condiciona o posicionamento do West Ham.

 
No início desta coluna, falamos de ideias. Bom, no mesmo livro Pep Guardiola: A Evolução, que citei acima, há uma citação de Noel Sanvicente, ex-treinador da seleção venezuelana, que cabe aqui:
“É que o futebol, no fundo, é um debate entre ideias, um debate ideológico. Por isso o fundamental não é tanto ganhar ou perder, mas o caminho que você escolhe e as razões pelas quais você o escolheu. A riqueza do futebol reside no intercâmbio de ideias que se produz constantemente.”
De alguma forma, espero ter trazido ideias que possam nos fazer refletir sobre a localização da própria amplitude. Do ponto de vista teórico, fico pensando se a amplitude/largura não estaria mais para um sub-princípio (ou algo do tipo) do que para um princípio. É uma discussão que deixo para vocês. Do ponto de vista prático, penso se as boas equipes passariam a não mais ter amplitude como uma regra, mas sim como uma das possibilidades de organização ofensiva, sabendo das vantagens do campo grande, mas também sabendo que pode haver situações em que o campo pequeno talvez resolva problemas que sequer imaginamos.
Continuamos em breve.

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Boas finanças para um bom futebol

Estão em andamento as reuniões entre integrantes dos clubes da série A e da série B do Brasil para implementar, a partir de 2020, as regras para um “fair-play” financeiro. Em outras palavras e sem estrangeirismos, um jogo limpo financeiro, uma normatização para boas condutas no uso dos recursos dos clubes de futebol. Para que não gastem mais do que arrecadam. Os que descumprirem com as regras, serão punidos.
É o que acontece no futebol europeu: o Barcelona já foi punido por conta disso e o Milan está excluído de torneios intercontinentais por infringir as normativas de lá. Na França existe já esta regra há muito tempo: os clubes não podem terminar o ano “no vermelho”. Era inclusive uma explicação do porquê o futebol francês não ser tão badalado quanto o dos vizinhos Espanha, Alemanha e Inglaterra. Isso mudou com a entrada de investidores estrangeiros, por exemplo, árabes no Paris e russos no Mônaco.
Ingênuo pensar que boa conduta financeira é apenas não gastar mais do que se arrecada e apenas isso. Vai além. O “fair-play” financeiro, a prazo, fará com que os clubes otimizem os seus gastos e priorizem alguns setores, não apenas para os resultados dentro de campo, mas sim resultados organizacionais que proporcionem um alicerce sustentável para a existência do clube futuramente. Favorecerá o desenvolvimento dos seus colaboradores e os seus recursos internos. Com o tempo e com as restrições de orçamento, estabelecerá identidade e cultura de trabalho na instituição, que passará a recorrer mais às categorias formativas. Com o passar dos anos, estes jogadores da base subirão ao plantel principal com esta filosofia e com esta identidade de trabalho. Um bom futebol: sem constantes trocas de treinadores e contratos de poucos meses com futebolistas.
Nessa linha de pensamento, o profissionalismo será valorizado, o cumprimento de metas, a gestão em torno do ambiente do mercado, o trabalho com vistas ao seu público-alvo (sua torcida) e não para grupos de influência internos, que valorizam quem põe mais dinheiro uma vez que as contas não fecham, já que são necessários os resultados esportivos. Custe o que custar. Essa lógica equivocada do “custe o que custar” compromete obviamente as finanças dos clubes e geram mais desavenças organizacionais que afastam quaisquer lampejos de profissionalismo. Exemplos dessa falta de gestão no futebol do Brasil são vários e afetam grandes instituições.

Foto: Reprodução/Divulgação

 
Há quem possa dizer: “meu time não é banco. O meu clube não é banco para fechar ‘no azul’”. Ora, exemplos não faltam de péssimas gestões que arruinaram clubes. O torcedor que diz isso quer ver a existência do clube comprometida? Não. Quer ver a gestão do clube do coração nas mãos de um “cartola” que, à moda antiga, investe recursos sem fim em troca de favorecimento político e que, aos poucos, “manda” neste clube? Com o tempo este torcedor acaba se afastando. Certamente não quer isso.
Assim sendo, o “fair-play” financeiro é mais do que boas práticas na lida com os recursos dos clubes. É um ponto muito a favor para a governança, profissionalismo, comunicação e transparência das entidades esportivas. Especialmente as do futebol, a fim de valorizar o produto (o esporte), atrair e cativar mais torcedores e investidores.

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No passado mês de agosto completei 2 anos como colunista neste espaço. Quero agradecer à Universidade do Futebol pela confiança e a todos os leitores pela paciência e “audiência” na leitura desta partilha de ideias e reflexões. Obrigado pelo carinho!

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Em tempo mais uma citação que se relaciona com o tema da coluna:

“Esforce-se não para ser um sucesso, mas sim para ser de valor”.
Albert Einstein

 

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A balela do cansaço dos jogadores poupados

Não quero surfar na onda do bom momento do Flamengo para fazer esse texto. Claro que os resultados não são fruto do acaso. Nem as vitórias e nem as derrotas acontecem por mágica. Mas busco entender e analisar processos, ideias e conceitos que operacionalizam o que se sucede dentro das quatro linhas. E, neste final de semana o técnico português Jorge Jesus colocou a força máxima flamenguista para atuar em Fortaleza e conquistar uma convincente vitória por 3 a 0 diante do Ceará. Sendo que na quarta-feira, o jogo é no outro extremo do país, contra o Inter, pela Libertadores. O Flamengo venceu o primeiro jogo por 2 a 0 e tem uma vantagem gigantesca. Mas será que Jesus não poupou ninguém em Fortaleza porque pode perder por até um gol de diferença em Porto Alegre que se classifica à semifinal da Libertadores ou porque está balizado por um conceito sobre essa questão? Penso que a segunda opção é mais coerente.
Claro que os técnicos estrangeiros chegam no nosso país com um poder de convencimento diferenciado. É só pegarmos o caso do Santos como exemplo: outro treinador resistiria a três eliminações – Paulistão, Sul-Americana e Copa do Brasil – como Jorge Sampaoli resistiu? Creio que não.
Para falarmos sobre poupar jogadores e supostos cansaços temos que voltar no tempo e pontuar que os preparadores físicos foram os primeiros a estudar a fundo o futebol no Brasil. Então, de maneira óbvia, eles trariam o viés físico para as discussões e até para os treinos, por conta da autoridade adquirida pelo conhecimento. Quantas vezes vimos jogadores correndo em volta do campo para supostamente terem mais fôlego para jogar futebol?
O novo olhar para o futebol pede uma concepção mais complexa e sistêmica. A parte física claro que é importante. Entretanto, ela é só um dos elementos do jogo. Temos os aspectos técnicos, táticos, emocionais e podemos ir longe falando também do cognitivo, espiritual e vários outros. Dessa forma, o cansaço nunca é só físico. Porque o jogar não é só físico. Sem falar que quanto melhor uma equipe atua menor é o gasto de energia dela para cumprir a lógica do jogo.
A nossa cultura aceita muito fácil que não dá para jogar várias competições com forma máxima. Quem sabe os estrangeiros nos convençam de outra coisa. Torço por isso.
 

 

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Sobre a educação de treinadores

Bobby Robson: a educação do treinador não se separa do mundo da vida. (Foto: Reprodução/Barlavento)

 
Por mais de uma vez, nós conversamos aqui sobre a educação de treinadores. Quando penso na educação de treinadores, penso em algumas características, em coisas que vêm à minha cabeça (portanto, ao meu corpo) que gostaria de compartilhar com vocês antes de avançarmos: I) a educação de treinadores está baseada em saberes da modalidade, mas também em saberes da vida vivida, transferidos para a modalidade; II) sendo humana, a educação de treinadores não termina em momento algum, ou seja: enquanto somos humanos, somos educados; III) a educação de treinadores não é apenas racional, não acontece apenas na cabeça; ela é humana, de corpo inteiro.
Neste texto, gostaria de trabalhar um pouco essas coisas. Tenho algumas inquietações nos três casos. Vou compartilhá-las aos poucos.

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Como os mais chegados sabem, passei um bom tempo da minha vida dando aulas em um cursinho pré-vestibular popular, voltado para a comunidade de baixa renda. Fiz isso conscientemente, uma das partes da minha educação como treinador. Por quê? Porque, ao meu ver, o futebol está em todos os lugares – quando não conseguimos vê-lo, é responsabilidade mais nossa do que das coisas. Muitas das qualidades que nos são requeridas como treinadores, tais como respeito, carisma, didática, perspicácia, eloquência, enfim… todas elas são igualmente requeridas em sala de aula – ainda que, é claro, cada profissão guarde as suas peculiaridades. Em linhas gerais, tento me lembrar de que o futebol, antes de ser feito por atletas, é feito por pessoas. Pessoas estão em todos os lugares. Só não sei se estamos cientes do que isso tudo realmente significa.
Digo isso porque acho claro que este seja um dos grandes dramas da educação de treinadores. Se quero saber sobre tática, posso fazer um curso da Universidade do Futebol e, provavelmente, vou saber melhor sobre tática. Mas se eu ler um livro ou fizer um curso sobre carisma (mesmo que o melhor curso), isso não irá, necessariamente, me tornar uma pessoa mais carismática. Dentre outros motivos, isso acontece porque, sendo humanos, nós carregamos um passado, uma história (muito além da consciência), cicatrizes que nos fazem companhia onde vamos e que, escapando da consciência, podem ser invisíveis. Os conteúdos sobre tática estão à minha frente, eu posso vê-los. As marcas do meu passado (e do passado dos nossos atletas e colegas de trabalho, não se esqueça), nem sempre. Daí a importância deste saber das relações, da capacidade de construir relações ao longo do tempo.
Neste sentido, tenho cada vez mais claro que a escola principal de treinadores e treinadoras não está nem exatamente nos cursos de formação e nem exatamente nos saberes da própria modalidade (não me entenda mal, ambos são fundamentais). A escola principal de treinadores e treinadoras está na vida vivida, nas entrelinhas da vida vivida, nos pedaços de futebol que estão em todo lugar, mas que não encontraremos se não estivermos abertos.

***

Agora, vamos pensar na continuidade da educação. Você e eu sabemos bem que há pessoas que realmente acreditam que já estão ‘formadas’, que já caminharam o suficiente para se ‘formar’ e que, agora, apenas ajudam (às vezes por obrigação) que outras pessoas se ‘formem’, dando continuidade à roda.
Mas repare comigo que há dois problemas aqui: o primeiro, que li e ouvi algumas vezes do Rubem Alves, é que as pessoas ‘formadas’ nada mais são do que pessoas na forma. A pessoa formada, portanto, é aquela que se adequou à forma. Na arte de se adequar à forma, é claro que ela tem seus méritos, mas será que é isso que nós queremos, por exemplo, como treinadores? Se estivermos na forma, você haverá de convir comigo que nossos limites serão claros, explícitos, muito bem definidos. Para a nossa educação como treinadores e treinadoras (e para a educação dos nossos atletas, dos nossos colegas de trabalho), será que pretendemos apenas nos colocar em formas estabelecidas por alguém, como faz o confeiteiro com um bolo, ou será que queremos uma educação além-das-formas (com o o fechado), além das formas (agora com o o aberto), uma educação que nos permita não apenas formar, mas trans-formar, às vezes de-formar, sem nos con-formar? Pense nisso.
O segundo problema está na ideia de que a educação termina. Se nós concordamos ali em cima, quando eu disse que a nossa educação como treinadores não está separada da vida vivida, então não é possível imaginar que nossa educação termina em algum momento. Porque, sendo humanos, temos nossos limites (ainda que existam para serem superados) e porque, sendo humanos em vida, temos a capacidade de educar e educar-nos pela vida, em qualquer situação. Posso achar que domino todas as ideias de mecanismos ofensivos, mas um belo dia estou no meu sofá e vejo uma equipe como o Ajax, abrindo mão da amplitude e criando enormes superioridades no setor da bola, e meus saberes estremecem. Aliás, esta é uma boa palavra. Como treinadores e treinadoras, nossa função é fazer estremecer, causar tremores. Mas, também como treinadores e treinadoras, pode ser que a vida nos estremeça.
Daí a pedagogia que não termina.

***

Quando a vida nos causa algum tremor, este tremor não acontece apenas na cabeça, acontece no corpo inteiro. Digo isso porque, como treinadores e treinadoras, estamos nos habituando ao discurso da ruptura paradigmática, da superação do pensamento cartesiano, que não mais separa as partes, mas será que este saber está realmente incorporado, vinculado ao nosso corpo?
Não sei. Aqui e ali, ainda vejo que percebemos a educação como um grande supermercado, infinitos conteúdos dispostos nas gôndolas, e vamos pegando os conteúdos que queremos, quanto mais melhor, vamos nos entupindo de conteúdos, às vezes sem uma digestão adequada, sem uma dieta equilibrada, vamos apenas comprando e comendo e comprando. Mas será que essa educação, que vai ao supermercado todos os dias, é uma educação capaz de nos colocar além das formas? Rapaz, eu não estou convencido. Acho que estamos em vias de formar cada vez mais e, além disso, de formar sujeitos indigestos, com congestão, constipados, muitas vezes cansados. Não por acaso, uma indigestão e um cansaço que ocorrem principalmente na cabeça. Às vezes, uma indigestão de quem, na verdade, não comeu tanto assim.
Ao invés de nos educarmos como treinadores especialmente pelos conteúdos, fico pensando se não deveríamos nos educar pelos afetos, pelos sentidos, pela intuição (sim, pela intuição), se não deveríamos repensar essa educação que passa saberes no caixa rápido ao invés de relacionar-se com o mundo, de olhar para dentro, de não exatamente formar-se como treinador, mas de educar-se como treinador, de reconhecer nossos limites, de tentar superá-los, de aceitar quando isso não é possível, de aceitar a grandeza do jogo, de nos fazermos humanos pelo jogo.
Vamos pensando nisso aos pouquinhos.