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Caso Sunderland AFC e a má gestão no futebol

Você acha que a má gestão nos clubes de futebol é um problema exclusivo do futebol brasileiro? Times que acabam por ficar endividados, acumular problemas na justiça, sofrer com o rebaixamento e decepcionar a sua grande legião de fãs, também é uma realidade para grandes e tradicionais clubes do velho continente. Hoje, vou dar um exemplo bastante recente de como a má gestão e administração pode rapidamente arruinar um grande clube, que disputou por muitos anos a liga que é considerada por muitos como a melhor do mundo, a Premier League.

A série ‘’Sunderland Till I Die’’, disponível na plataforma Netflix, relata os bastidores da meteórica decadência deste tradicional clube do norte da Inglaterra. Fundado por professores  em 1879, o  Sunderland AFC é um dos clubes mais tradicionais e históricos do país – com 6 títulos ingleses a equipe dominou as competições nacionais entre o final dos anos 1890 e início dos anos 1900. No entanto, o futebol atual não mostra paciência ou respeito à história de qualquer clube, já não há como dizer que a instituição é “muito grande” e “tradicional demais” para cair no abismo. Arrisco a dizer, que a dramática série vai fazer o amante do futebol criar uma empatia quase que automática com os Black Cats e seus aficionados. Além dos bastidores internos, a série também dá uma voz especial aos torcedores e mostra as suas rotinas para acompanhar o clube que tanto veneram. Fica difícil não se colocar no lugar destes torcedores apaixonados, que seguem o Sunderland há décadas e estão vivenciando possivelmente o pior momento de sua história. O desânimo, a indignação e a esperança andam de mãos dadas com cada fanático alvirrubro.

A derrocada começa quando o milionário americano, Ellis Short, adquire o clube, ainda disputando a Premier League. Os problemas de falta de gestão profissional e má administração do clube logo começam a ficar nítidos, visto que o clube do norte inglês conta com um alto investimento financeiro mas não corresponde dentro de campo. Desta forma, acaba caindo de divisão e ingressa na disputa da segundona inglesa (Championship). O Sunderland é um dos grandes casos comprovados, de que apenas o alto investimento financeiro não resolve todos os problemas de um clube de futebol. Além do mais, se mal administrado, este investimento pode gerar ainda mais problemas, por vezes irreversíveis ao  clube – também atingindo diretamente patrocinadores, investidores, funcionários e os torcedores. A má administração no Sunderland fica ainda mais evidente quando o clube, que possui uma estrutura digna de um grande clube europeu, com um estádio e centro de treinamento de primeira linha, acaba por ser novamente rebaixado para disputar a terceira divisão inglesa (Football League I) – onde permanece até os dias de hoje. Foram 2 rebaixamentos em sequência e um corte profundo na alma de cada torcedor do Sunderland, que certamente irá demorar para cicatrizar.

Podemos elencar diversos fatores que podem ter contribuído para o fracasso recente dos Black Cats. Falta de planejamento estratégico, falta de organização dos núcleos, ausência de processos de trabalho, falta de profissionais devidamente qualificados, falta de filosofia de jogo do clube e de integração dessa filosofia com as categorias de base. Exemplos não faltam… Entre 2010 e 2018, o Sunderland contratou mais de 70 atletas, e conseguiu lucrar futuramente na transferência de apenas 3 deles. Fez investimentos milionários em equipamentos altamente tecnológicos para ter dentro de seu CT, os quais não tem utilidade nem mesmo para os funcionários responsáveis. Sem contar com os milhões de libras investidos em jogadores que acabaram atuando em menos de 10 partidas pelo clube, contratações e transferências claramente equivocadas e sem um planejamento adequado. Uma sucessão de erros graves, que poderiam ter sido evitados caso os gestores do clube tivessem uma visão sistêmica sobre a gestão, execução, liderança e avaliação de processos relacionados a um clube de futebol profissional – enxergando todos as áreas e suas interconexões com um olhar sistêmico. 

A Universidade do Futebol capacita profissionais para atuar no mundo do futebol com o fomento da visão sistêmica, da gestão profissional e organizada dentro dos clubes de futebol, buscando integrar de forma harmônica as dimensões política, administrativa e técnica presentes no ecossistema dos clubes de futebol. 

Você também acredita que se os gestores do Sunderland na época, houvessem se apossado de conhecimentos sobre a visão sistêmica, a qual o nosso curso de Gestão Técnica no Futebol aborda amplamente, os Black Cats estariam em uma situação menos caótica hoje? Fica a reflexão!

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A visão do torcedor no novo cenário de mídia do futebol brasileiro

Onde vai passar o jogo do meu time? Há alguns anos, esta pergunta não era necessária no futebol brasileiro. Os torcedores sabiam que poderiam ver a partida dos seu clube nos canais da Rede Globo, seja televisão aberta, fechada ou pay-per-view, de acordo com o horário e competição. Dependendo da importância do jogo, também era de conhecimento dos fãs que não haveria transmissão e a saída seria recorrer ao rádio.

Para 2021, o cenário está totalmente diferente e aqui mesmo no site da Universidade do Futebol, o Wilson Júnior destacou essa variedade de canais de transmissão, com a mais recente entrada do TikTok no caminho. A rede social de vídeos curtos transmitiu nos últimos meses partidas da Copa do Nordeste e do Campeonato Carioca. Mas como fica o torcedor nisso tudo?

Por parte dos clubes e dos campeonatos, esta grande quantidade de canais pode ser muito positiva. Cada meio de transmissão possui suas características próprias, que devem ser direcionadas para cada um dos diferentes públicos existentes em uma torcida. A Copa do Nordeste, por exemplo, oferecia transmissões focadas no torcedor mais apaixonado, em parceira com influenciadores digitais, direto da Twitch. Para quem preferisse uma opção mais neutra, os canais de televisão cumpriam bem este objetivo.

Para o torcedor, nem tudo são flores. Utilizando o exemplo da Libertadores e Copa Sul-Americana, vemos que quando existe exclusividade por parte dos canais de transmissão, acompanhar o jogo do seu time vira uma missão muito difícil de ser atingida. As competições da Conmebol são transmitidas, desde 2020, via  Conmebol TV, um canal de pay-per-view cujo valor de assinatura mensal é R$ 40,00, para acompanhar alguns jogos que passam única e exclusivamente na Conmebol TV.

O crescimento de plataformas piratas, mostra que este mercado ainda não está em seu nível ideal. O Campeonato Carioca de 2021, que também contou com seu sistema de ppv, passou por diversos problemas com canais ilegais, com diversos sites, perfis de redes sociais e canais no YouTube sendo derrubados por transmitirem as partidas sem autorização. Este fenômeno apenas confirma que os desejos dos torcedores ainda estão longe de serem atingidos quando o assunto são as transmissões das partidas.

A indústria da música passou por um problema semelhante. Foram diversas décadas de programas sendo utilizados para baixar as canções de maior sucesso nacional e internacional. Apenas nos últimos anos que soluções vem sendo encontradas para diminuir este número. A Federação Internacional da Indústria Fonográfica divulgou que em 2019, 27% das pessoas consumiam músicas de forma ilegal. Apesar do número ainda alto, foi a primeira vez que ele esteve abaixo dos 30%.

As plataformas de streaming esportivo ainda tem muito espaço para crescer. Entender a necessidade de consumo dos torcedores e quanto eles estão dispostos a pagar por isso são dois aspectos que precisam ser entendidos por quem trabalha com estas novas mídias. O DAZN, por exemplo, passou por isso em sua chegada ao Brasil, quando precisou diminuir o valor da mensalidade, que caiu de R$ 37,90 para R$ 19,90.

O Facebook foi mais uma rede a passar por mudanças. Seu acordo de transmissão da Copa Libertadores era de exclusividade no Brasil para as partidas de quinta-feira. Em 2021 isso teve de ser alterado, com uma parceria entre a rede social e a Fox Sports para transmissão de algumas partidas em ambas as plataformas. Isso já acontece na Liga dos Campeões com transmissões da TNT Sports e do próprio Facebook da mesma partida. Como o público é distinto, a rede social consegue apresentar boa audiência com as finais atingindo números na casa do milhão de espectadores.

Dificultar o torcedor de ver seu clube pode ser péssimo para o futuro, ainda mais com tantos concorrentes na disputa pela atenção. Abrir o YouTube é uma tarefa que as crianças aprendem cada vez mais cedo. Se o jogo de futebol estiver escondido em um canal de mensalidade alta, certamente o jogo vai perder alguns fãs. Sem contar todas as plataformas de streaming e vídeo games disponíveis.

Para finalizar o texto, gostaria de ter uma conclusão bem estruturada para passar aos leitores. No entanto, este mercado vive uma série de transformações que tendem a continuar por algum tempo. Aos gestores do esporte, cabe considerar alguns dos tópicos listados aqui no momento de negociar os direitos de transmissão dos próximos campeonatos. Que não pensem apenas nos valores do contrato, mas lembrem da importância de seu torcedor para o futuro do esporte.

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Multi, inter e transdisciplinaridade – Os caminhos da produção de conhecimentos no futebol

Devemos considerar o futebol como um fenômeno complexo, no mesmo grau de complexidade que nos permite entender e interpretar a própria natureza humana. Se compreender seus processos fosse algo simples, como afirmam alguns, o ser humano não estaria levando milênios para entender a si mesmo.

(João Paulo S. Medina)

Estamos perdendo a noção do todo. A simples soma dos saberes especializados já não nos conduz satisfatoriamente aos resultados almejados. E é bom lembrar que não se trata de negar a especialização, mas sim de entender que é preciso muito mais do que apenas ela. Precisamos promover urgentemente a interação, a integração e a sinergia entre todas as áreas do conhecimento humano se quisermos dar conta dos problemas complexos que nos afligem. Mas como a forma de produzirmos o conhecimento pode contribuir para o desenvolvimento humano e, por extensão, para o desenvolvimento do futebol? É o que vamos tentar responder aqui ou, ao menos, contribuir para uma reflexão crítica a respeito do assunto.

Em princípio, podemos reconhecer quatro tipos básicos de conhecimento: vulgar ou empírico, científico, filosófico e teológico. O conhecimento vulgar ou empírico é aquele que adquirimos através de nossas experiências vividas. O conhecimento científico é aquele sustentado por métodos, investigações, pesquisas e conclusões, e que deve ser comprovado e reconhecido pela própria comunidade científica. Já o conhecimento filosófico é o resultado das reflexões críticas, rigorosas, radicais e de conjunto sobre a realidade em que vivemos, e que se distingue do conhecimento científico por apresentar maior dificuldade em termos de comprovação e objetividade, sem deixar de ser relevante. E, finalmente, temos o conhecimento teológico ou religioso, que se fundamenta na fé, na crença em determinados textos considerados sagrados ou divinos por seus adeptos (Bíblia, Alcorão, Torá, Vedas etc.), contendo explicações para os mistérios da vida, as quais objetivam promover certo conforto espiritual aos seus devotos. De uma maneira ou de outra, e dependendo da nossa visão de mundo, todos estes tipos de conhecimento nos influenciam na forma como interpretamos a realidade e nela intervimos.

Por outro lado, quando analisamos a capacidade que cada área especializada do saber tem para compreender os fenômenos em toda a sua complexidade, podemos identificar igualmente quatro formas de abordagem da realidade. São elas: a disciplinaridade, a multidisciplinaridade, a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade, que representam, na verdade, quatro modos distintos de produção do conhecimento.

Antes, porém, de entrarmos nos conceitos desses termos, gostaria de fazer algumas considerações preliminares. Até pouco tempo, vínhamos nos contentando, sem maiores questionamentos, com as abordagens detalhadas que os diferentes especialistas nos davam sobre os distintos fenômenos naturais ou humanos, através das diferentes áreas do saber. Aliás, este ainda é um princípio que adotamos em muitas situações mais pragmáticas. Se tivermos, por exemplo, uma grave lesão no joelho, nossa tendência não é a de procurar um clínico médico (generalista), mas sim o melhor especialista existente ou disponível. E para muitos de nós, não basta um especialista qualquer que cuide indistintamente de todo tipo de lesão. Tendo condições, gostaríamos de ser assistidos pelo melhor especialista para aquele tipo específico de lesão (ligamento, menisco, patela etc.). Este simples exemplo mostra-nos que, em certos aspectos, ainda adotamos na prática o paradigma da especialização.

Aos poucos, entretanto, esse modelo vai se mostrando inadequado para as novas exigências e novas realidades que a dinâmica da vida, através de sua história, nos impõe. Essa tendência obriga-nos a pensar em novas formas de produzir conhecimentos, permitindo intervenções práticas mais compatíveis com nossas necessidades.

Neste sentido é que queremos introduzir os conceitos de multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, procurando entender seus impactos na produção de conhecimentos que nos auxiliem nas soluções dos problemas que se apresentam em nossas profissões e em nossas vidas. Embora não exista total uniformidade na conceituação desses termos, vamos adotar aqui as noções mais prevalentes nos trabalhos realizados por aqueles que estudam estas questões relativas à produção do conhecimento e suas aplicações, tais como Basarab Nicolescu, Guy Berger, Georges Gusdorf, Jean Piaget, Edgar Morin, Ilya Prigogine entre outros.

Mas antes de falarmos sobre multi, inter e transdisciplinaridade, vamos considerar o que entendemos por “disciplinaridade”.

DISCIPLINARIDADE

O termo “disciplina” pode representar tanto uma determinada matéria em uma instituição de ensino como também uma área específica do conhecimento humano de uma especialização profissional qualquer. Desta forma, chamamos de “disciplinaridade” a abordagem que agrega o conhecimento especializado de uma disciplina ou ramo da ciência. A disciplinaridade refere-se, portanto, a um conjunto específico de conhecimentos, com seus objetos, características e métodos próprios, sem relações aparentes com outras áreas do saber. Cada uma dessas áreas busca a compreensão dos fenômenos ou fatos através de sua leitura de mundo, própria, exclusiva e particular.

É sempre bom frisar que foi dentro deste modelo paradigmático que o conhecimento evoluiu na grande maioria das áreas do saber, em especial durante o século 20. As conquistas e a evolução científica e tecnológica devem muito a este modelo. Através dele, as diferentes especializações desenvolveram-se amplamente, de forma rigorosa e tendendo à sua autossuficiência. Entretanto, esse modelo paradigmático de produção do conhecimento que, como já destacamos, tanto progresso trouxe à humanidade, começou a apresentar sinais de esgotamento, exigindo-se novas abordagens para a compreensão da realidade. A visão especialista, por si só, já não é suficiente para entendermos a complexidade dos problemas que nos afligem.

Neste contexto é que surge a necessidade de buscarmos outros modos de produção do conhecimento, e a partir daí surgem os conceitos e as abordagens multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar.     

MULTIDISCIPLINARIDADE (ou PLURIDISCIPLINARIDADE)

É a abordagem que faz a justaposição de duas ou mais disciplinas na busca de uma melhor compreensão dos fatos ou fenômenos. Entretanto, esta aproximação entre as diferentes áreas mantém, em essência, a natureza própria da especificidade de cada uma delas. Isto significa que um assunto pode ser trabalhado em várias disciplinas, mas cada uma delas continua seguindo seus próprios objetos, características e métodos. Não há uma tentativa de síntese entre as diferentes áreas do conhecimento. Por isso que é muito comum, nas “reuniões multidisciplinares”, no esporte ou fora dele, a utilização de adágios tais como “se cada um fizer bem a sua parte, tudo funcionará perfeitamente” ou ainda “para um bom entendimento entre nós – especialistas em áreas específicas do saber – é preciso que cada um respeite a área do outro”. A multidisciplinaridade é uma primeira manifestação ou reação às limitações do conhecimento disciplinar superespecializado (disciplinaridade), mas, como podemos deduzir, esta é também uma abordagem que apresenta limitações no sentido de uma compreensão mais ampliada da realidade.

É preciso destacar que, apesar de suas limitações, esta perspectiva é ainda muito utilizada no futebol. Embora haja um esforço para a realização de um trabalho mais integrado entre as diferentes atividades profissionais (das comissões técnicas, por exemplo), o que se observa, na prática, é certo distanciamento entre as diferentes áreas do conhecimento, impedindo ou restringindo uma maior evolução na realização de um autêntico trabalho em equipe.

INTERDISCIPLINARIDADE

É a abordagem que busca a interação e a cooperação entre duas ou mais disciplinas. Diferentemente da multidisciplinaridade, existe aqui um fator de coesão entre saberes distintos. No ambiente interdisciplinar, não há, por parte de cada um dos profissionais das diferentes áreas do conhecimento, uma atitude com o objetivo – explícito ou velado – de “proteger” a sua própria área de conhecimento. É bem verdade que, na prática, às vezes se torna difícil saber se estamos adotando uma postura multidisciplinar ou interdisciplinar. Essas diferenças, em alguns casos, são tênues ou sutis. A interação e cooperação entre duas ou mais disciplinas dependem fundamentalmente de atitudes subjetivas dos próprios atores que participam do processo de construção do conhecimento, em que os espaços de conhecimentos comuns e específicos são abertos e todos podem opinar e influenciar, sem muitas restrições ou melindres. Segundo Guy Berger, “essas diferenças podem variar desde a simples comunicação das ideias até a integração mútua dos conceitos diretores da epistemologia, da terminologia, da metodologia, dos procedimentos, dos dados e da organização de um conjunto de conhecimentos, da investigação ou do ensino correspondente”.

Ainda no terreno prático, o que se observa é que, muitas vezes, um grupo interdisciplinar é composto por pessoas que receberam sua formação em diferentes domínios do conhecimento (disciplinas) com seus métodos, conceitos, dados e termos próprios, e portanto exige-se um esforço de todos para que possam exercer uma autêntica interdisciplinaridade.

Conforme nos ensina Georges Gusdorf, “os especialistas das diversas disciplinas devem estar animados de uma vontade comum e de uma boa vontade. Cada qual deve aceitar esforçar-se fora do seu domínio próprio e da sua própria linguagem técnica especialista para aventurar-se num domínio de que não é proprietário exclusivo”. A interdisciplinaridade pressupõe abertura de pensamento, curiosidade que se busca além de si mesmo.

No futebol só recentemente começamos a pensar mais amplamente em ações que assumam esta característica interdisciplinar. Embora o termo seja cada vez mais frequente na fala dos agentes que produzem conhecimento no futebol, representados por diferentes profissionais especialistas, ainda é raro observar-se, na prática, a adoção desta abordagem de forma mais consciente e coletiva.

TRANSDISCIPLINARIDADE

Representa, segundo Edgar Morin, um dos principais estudiosos deste tema, o estágio mais avançado entre os modos de produção do conhecimento. De forma semelhante à interdisciplinaridade, busca compreender o conhecimento como algo além do que é produzido pelas disciplinas, estas que, como sabemos, têm seus objetos, características, linguagens e métodos próprios. Mas ultrapassa o conceito de interdisciplinaridade na medida em que, além de exigir uma postura e uma atitude de total abertura e respeito à diversidade e a complexidade de todos os fenômenos, reconhece que não há referenciais – culturais, étnicos, científicos, religiosos – privilegiados para julgar como mais corretos ou verdadeiros determinado conjunto de conhecimentos, crenças ou valores.

Também diferentemente da interdisciplinaridade, que procura integrar as distintas linguagens características de cada área do saber, a transdisciplinaridade busca a construção de um único domínio linguístico, capaz de refletir a multidimensionalidade da realidade. Igualmente ao modo de produção do conhecimento interdisciplinar, a transdisciplinaridade exige a cooperação, a coordenação e a sinergia entre as disciplinas, mas fundamentalmente com a intenção ou objetivo de transcendê-las.

É por isso que dizemos que a transdisciplinaridade aponta para um conhecimento que está ao mesmo tempo entre, através e, sobretudo, além de todas as disciplinas. Ela significa o reconhecimento da interdependência de todos os aspectos da realidade, buscando a unidade do conhecimento. Seu objetivo é a tentativa de compreensão da realidade como um todo e não de fragmentos dela, como se propõe cada disciplina ou área do conhecimento. Questiona, inclusive, a supremacia absoluta do conhecimento científico, quando adota pressupostos imutáveis de objetividade, previsibilidade e certezas.

A transdisciplinaridade é considerada, por alguns estudiosos, como um movimento de reintegração da ciência, da arte e das tradições espirituais em busca de uma compreensão mais ampla da realidade ou do mundo em que vivemos. Para isso, é preciso levar em conta todos os aspectos que envolvem a nossa existência, dentro de toda a sua complexidade. Não é possível entendê-la considerando somente os aspectos estritamente objetivos da realidade, uma vez que dela fazem parte também muitos aspectos subjetivos e intersubjetivos, permeados por nossa cultura que, por sua vez, é carregada de crenças, costumes, tradições, valores, sentimentos, emoções, intuições etc.

Esta abordagem transdisciplinar muda radicalmente a tradicional postura científica que não admite subjetividades em seu espectro de análise da realidade. É, portanto, uma maneira de encararmos o mundo, a vida e mesmo as nossas profissões, dentro de um novo modelo paradigmático. É, por conseguinte, uma proposta que, no nosso modo de ver, pode contribuir para mudanças radicais na forma pela qual o futebol é visto, gestado, concebido, administrado e praticado.

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A Gestão Técnica no futebol

Nas últimas décadas o mundo tem passado por transformações, econômicas, políticas, sociais e tecnológicas, radicais, cada uma indissociável da outra e que não poderiam deixar de incluir o futebol. Basta assistir a um jogo do começo do século, na Europa ou na América do Sul para constatarmos, é outro esporte. Dentro e fora de campo muita coisa mudou, os valores são outros, os clubes não são mais milionários, mas bilionários, as transmissões são verdadeiros show de imagens e não estão mais só na televisão ou no rádio, mas em todas as telas possíveis, dos cinemas à palma de nossas mãos e a análise de dados invadiu as comissões técnicas e o gestão dos clubes. O mundo mudou, e o futebol ainda mais!

Por isso, mais do que nunca uma gestão profissional e alinhada com o que há de mais moderno se torna uma questão de sobrevivência, para os clubes e para os profissionais que pretendem entrar ou se manter nesse mercado de tantas transformações. Não é de hoje que a Universidade do Futebol trabalha para trazer modernidade ao futebol brasileiro, o conceito da Gestão Técnica, para você ter uma ideia, a primeira turma do curso foi lançada em 2013, agora já bastante disseminado entre os executivos e demais profissionais do futebol, por muito tempo foi encarado com resistência no meio.

Atualmente, a necessidade de discutir os modelos jurídicos dos clubes e do desenvolvimento de uma formulação estratégica que permita a essas instituições ter uma visão de longo prazo, vem dando cada vez mais espaço para a Gestão Técnica dentro do futebol, mas afinal o que é a Gestão Técnica? Quais profissionais dentro de um clube precisam dominar a Gestão Técnica? Será que o curso Gestão Técnica no futebol é para você?

O curso Gestão Técnica no futebol aborda temas relacionados a questões técnicas e, principalmente, suas conexões com as áreas administrativas e políticas de um clube, estimulando a reflexão crítica do estudante sobre esses tópicos, algo pioneiro e inédito no Brasil.

O curso Gestão Técnica no futebol é um curso generalista, que tem como público alvo os variados profissionais que compõem o quadro de funcionários de um clube de futebol, mas sendo mais indicado para aqueles que estão ligados, ou buscam ocupar posições relacionadas às atividades-fim de um clube, ou seja, aquelas ligadas mais diretamente ao desempenho da equipe, como treinadores, preparadores, analistas de desempenho e mercado, gestores, executivos e similares.

Quero trabalhar com Marketing no futebol, o Gestão Técnica é para mim?

O Gestão Técnica no futebol é o curso base na Universidade do Futebol, que apresenta um jeito de ver o mundo e o futebol que é o pensamento, ou visão, sistêmico. O nosso objetivo é que todos aqueles que finalizam o Gestão Técnica tenham a capacidade de compreender o jogo, mas também a gestão de um clube de maneira sistêmica, ou seja percebendo que tudo está interconectado e que um trabalho excelente no Marketing, por exemplo, irá ter um grande impacto no campo de jogo, não apenas por ajudar a trazer mais recursos para o clube, mas por poder inspirar os jogadores ou jogadoras a defender com mais paixão as cores da referida instituição.

Temos cursos mais específicos para todos os profissionais do futebol, mas se você quer ter uma visão do todo, que irá te ajudar a ter uma base sólida e uma visão diferenciada sobre o futebol, o Gestão Técnica é sim para você!

Saiba mais sobre a décima sétima turma do Gestão Técnica no Futebol

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Intensidade no futebol é isso mesmo?

Crédito imagem – Site oficial UEFA

O termo intensidade tem sido muito usado nas análises de jogos e equipes do futebol brasileiro. Se cobra um time para ser intenso ou se elogia um treinador por fazer seus jogadores serem intensos dentro das quatro linhas. Reconheço que reduzir assuntos complexos e traduzi-los em termos simples e de fácil entendimento é mais do que uma virtude e sim uma obrigação em qualquer processo de comunicação. Porém isso não pode ser suplantado pelo correto entendimento e a consequente assertiva exposição do tema. E a intensidade tem sido definida de maneira muito equivocada nas discussões por aqui.

Ainda se fala que uma equipe é intensa quando ela corre muito em campo. Jogadores que correm (!) são taxados como intensos.

Há uma herança, aqui, dos brilhantes preparados físicos da nossa história que foram os primeiros a estudar e documentar o que acontecia dentro das quatro linhas. Porém, esses estudos sempre vieram com um viés físico. Nada mais natural já que eram os preparadores quem colhiam os dados e conseguiam as conclusões. 

Mas ao falar de futebol dentro de um sistema complexo precisamos entender que a parte física é uma das vertentes do jogo. Temos ainda a técnica, a tática, a emocional, a cognitiva e poderíamos expandir para o social, filosófico, antropológico e etc. O jogo é tudo isso junto e ao mesmo tempo. Então como podemos classificar uma equipe e um jogador como intensos apenas ao olhar o desempenho físico?

Acredito que uma equipe intensa seja aquela que resolva os problemas do jogo da forma mais eficaz e com o menor gasto de energia possível. Quando um time está bem treinado e os setores estão bem ajustados o desgaste é menor para atingir a eficácia. É necessário correr mais quando não se sabe nem o que, nem onde e nem como fazer dentro de campo. Não à toa, José Mourinho disse que um dos jogadores mais intensos com quem ele trabalhou foi Deco. E venhamos e convenhamos, Deco nunca foi um jogador fisicamente acima da média. Mas a capacidade de pensar e executar acertadamente as ações do jogo em um curto espaço e em pouco tempo faziam dele um jogador intenso.

Por tudo isso, ao ver um jogador correndo muito e se desgastando mais do que o necessário não vamos mais chamá-lo de intenso. Há nessa situação tudo, menos essa intensidade complexa que me refiro…

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A volta do público aos estádios no Brasil

Crédito imagem – Site oficial/Maracanã

Estamos prestes a dar início à principal competição de futebol do Brasil, o Campeonato Brasileiro. A pandemia segue, e não teremos torcedores nos estádios brasileiros para o início do torneio. Algo que também aconteceu no ano passado, durante todo o Brasileirão de 2020, a elite do futebol brasileiro ficou sem a presença física de seu maior ativo, “a torcida”. 

Vale lembrar como era o público da Série A do Brasileirão no período que antecedeu a pandemia.

Para não sermos exaustivos, vamos apenas elencar a média percentual de ocupação dos Estádios nos últimos 5 anos, a começar por 2015 até 2019, sem estudarmos os números de forma mais detalhada.

-2015: 40%;

-2016: 41%

-2017: 41%

-2018: 43%

-2019: 47%

Fonte: Globoesporte.com

Nota-se que a presença da torcida nos estádios vinha em ascensão até a paralisação do futebol e posterior retomada sem público, ao menos neste campeonato em questão.

Não é possível afirmar categoricamente, mas é provável que esse crescimento tenha se dado em virtude da construção e reforma das arenas projetadas para sediar a Copa do Mundo de 2014. 

Segundo pesquisa feita pelo globoesporte.com, a reabertura de estádios com maior capacidade fez a média de público aumentar em 25%. E a soma disso com os ingressos mais caros fez disparar a média de renda, deixando-a 78% maior de 2012 para 2013.

Evidente que a implantação de arenas e aumento da capacidade dos estádios que sediam os jogos do Brasileirão, contribuíram para o aumento do público e da receita proveniente dos jogos, mas não se pode considerar o único componente para tal fim. Mesmo nos estádios mais tradicionais, o torcedor passou a ser encarado como consumidor e ainda que de forma muito incipiente, os gestores das arenas brasileiras passaram a olhar com mais atenção para seu público primando por conforto, comodidade e segurança dos espectadores, dentro das limitações que algumas estruturas mais simples impõem.

Salientamos que este processo ainda é extremamente embrionário e há muito o que evoluir no quesito experiência para os torcedores nos estádios.

Considerando o contexto acima, como imaginamos ser a volta gradativa do público nos estádios?

É praticamente nula a possibilidade desse retorno de público se dar com a capacidade total das arenas, provavelmente ocorra de forma gradativa como nos demais países que já tiveram tal liberação por parte dos órgãos competentes. 

Há uma peculiaridade no Brasil que envolve sua enorme área geográfica e diversidade cultural, o que faz com que o controle da propagação do vírus (ou a falta dele) não seja homogênea, dificultando que se estabeleça uma padronização para tal retorno de público, mitigando assim, a igualdade competitiva, já que pode ser que aconteça do público ser parcialmente liberado em algumas cidades e outras não. 

Além das especificidades já mencionadas, os Estádios possuem grande variação de capacidade, por exemplo, o Estádio do Morumbi que sedia os jogos do São Paulo FC tem capacidade para 66.671 pessoas, já a Vila Belmiro, casa do Santos FC comporta aproximadamente 16.000 pessoas.

Supondo que a liberação de público seja de 30%, o Morumbi poderá reunir até 20.000 torcedores, enquanto a Vila Belmiro 4.800. Como os protocolos para a reabertura preveem distanciamento social, haverá necessidade de intercalar os assentos. Ainda que tal medida não seja respeitada por todos os torcedores é obrigação dos gestores das arenas propiciar essa intercalação entre os lugares disponíveis, logo, haverá necessidade da abertura de mais setores, implantação de profissionais para aferição de temperatura, elevação no número de fiscais e orientadores para verificação do uso de máscaras, entre outras medidas que podem aumentar o custo fixo do jogo mesmo se considerarmos o período pré pandêmico, onde não havia restrições de ocupação.

A diferença na capacidade de ambos é abissal, mas o custo da operação não varia na mesma proporção. É sabido que a receita com bilheteria está desfalcando inúmeros públicos, em especial os que contam com grandes torcidas.

Afora o acima exposto, é importante lembrar que nem todos os estádios tiveram saúde financeira para operacionalizar a manutenção preventiva no sistema hidráulico, elétrico e a limpeza de todos os seus setores, tornando essa questão, também motivo de afligimento, pois se a divulgação da liberação parcial de público não for feita com uma antecedência no mínimo razoável por parte das Federações, os primeiros eventos podem ser caóticos para os torcedores que se propuserem a voltar a acompanhar fisicamente o futebol.

Deixamos, então, a reflexão se financeiramente este retorno parcial será melhor ou não para os cofres dos grandes clubes e para o bolso do torcedor que presumivelmente pagará um valor maior nos ingressos? 

Dicotomicamente, quais os prejuízos intangíveis esse afastamento dos estádios pode gerar? Será que não estamos fazendo o torcedor/consumidor entender que ele pode ficar sem acompanhar seu time presencialmente ou ao menos reduzir a assiduidade?  São questionamentos muito difíceis de serem respondidos antes das liberações em sua totalidade, mas é notório que as arenas precisam olhar com mais atenção para seu público nessa retomada e promover verdadeiros espetáculos, avançando intensamente as preocupações que acima mencionamos como incipientes com seus frequentadores.

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A Gestão Técnica e a visão sistêmica – resolvendo os problemas do campo

A visão sistêmica é uma maneira de enxergar e abordar o mundo que compreende que os mais variados acontecimentos ocorrem não apenas por uma razão, mas por uma série de diferentes motivos e outros acontecimentos que ser interconectam de uma forma caótica, impossível de prever ou de controlar. Isso quer dizer que não devamos buscar a excelência no futebol por meio do aprimoramento e da qualificação profissional? Claro que não, muito pelo contrário!

O que é preciso entender é que muitas vezes, o que ocorre dentro de campo não pode ser explicado por esse ou aquele fator e que para ter esse entendimento e conseguir resolver os problemas que o futebol nos apresenta, que são sempre únicos e inéditos, afinal, uma mesma partida jamais é disputada duas vezes é preciso saber aplicar a visão sistêmica a todo instante. 

A maioria de nós tem como base de conhecimento o pensamento linear, cartesiano que enxerga o mundo com causas e consequências diretas, por meio da junção da visão de especialistas de diversas áreas, mas sem interconexão entre si. É por essa razão que, cada vez menos essa forma de entender os fenômenos que nos rodeiam se mostra cada vez mais insuficiente para nos ajudar a resolver os problemas quando atuamos no futebol!

Não ficou claro ainda? Não tem problema, vamos trazer aqui alguns exemplos de como a visão sistêmica pode ajudar a identificar e a solucionar problemas dentro de campo.

Para isso vamos apresentar quatro pressupostos do pensamento sistêmico e suas respectivas aplicações no futebol.

Pressuposto 1

Não se pode entender as partes de um sistema de forma descontextualizada do todo e nem entender o todo desconectado de suas partes constitutivas.

Aplicação – A condição atlética de um jogador de futebol só faz sentido se analisada e percebida dentro do contexto de sua participação integral em uma partida. Também o jogo não pode ser visto dentro de toda a sua realidade e complexidade, sem considerarmos todos os elementos internos e externos que o constitui.

Pressuposto 2

Aplicação – Todo sistema é formado por um conjunto de elementos interagindo entre si, influenciando-se mutualmente e influenciando o sistema como um todo que, por sua vez, interfere em seus elementos fazendo emergir permanentemente novas situações, instáveis e imprevisíveis. Diante desta dinâmica é mais sensato pensar que os fenômenos, as coisas, as pessoas mais “estão” do que “são”. O movimento da vida é constante, intermitente e muda a cada instante.

Exemplo: O pressuposto linear e mecanicista – ainda tão comum no futebol – que afirma que “em time que está ganhando não se mexe” não serve para este pressuposto sistêmico, pois tudo muda a cada instante dentro de um sistema. Ainda dentro desta perspectiva não podemos afirmar que um jogador (ou um time) é bom ou ruim, mas sim que este jogador (ou time) está bem ou mal dentro de determinadas circunstâncias.

Pressuposto 3

A vida humana é permeada incessantemente por relações interpessoais e subjetivas (intersubjetividade) que precisam ser entendidas e acolhidas para que se possamos caminhar juntos, identificando-se os propósitos comuns entre as pessoas.

Aplicação – A formação, participação e engajamento de uma equipe de futebol que busca a alta performance depende fundamentalmente de como os seus elementos se identificam e se comprometem com os objetivos comuns traçados. Para isso é essencial que as lideranças identifiquem as diferentes visões em torno dos seus propósitos comuns, potencializando-os.

Pressuposto 4

Na perspectiva sistêmica e complexa, todo conhecimento deve ser entendido como algo precário e provisório e que pode nos induzir a erros, ilusões ou até a alucinações. Por isso, o exercício em busca do conhecimento lúcido e amplo deve ser sempre acompanhado de cuidados, balizado por nossos limites ou limitações.

Aplicação – Um especialista (treinador, preparador atlético, fisiologista, psicólogo, nutricionista etc.) pode ser facilmente induzido ao erro se não tiver uma noção – a mais clara possível – do todo, ou seja, de todos os fatores (além dos inerentes à sua especialidade) que podem interferir no desempenho dos atletas e da equipe de forma geral, incluindo-se aqui os macro e microssistemas que interferem no treino, no jogo e na vida de cada um e de todos.

Na mais nova e atualizada edição, a décima sétima, do curso Gestão Técnica no futebol, esses e outros pressupostos da visão sistêmica aplicada ao futebol são discutidos com maior profundidade.

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Diferencial do Futebol Brasileiro – Do jogo para a vida

Crédito imagem – Lucas Figueiredo/CBF

Chegamos ao último texto da série Diferencial do Futebol Brasileiro. Ao longo dos últimos 3 textos busquei argumentar sobre como entendo que a etapa de iniciação esportiva, particularmente, a forma como as crianças brasileiras tradicionalmente aprendem a “jogar bola”, é um diferencial destacadamente positivo para a formação de talentos no nosso futebol.

Vale ressaltar, caso você não tenha lido os textos anteriores, que trata-se de uma maneira livre e espontânea, em que as crianças criam e conduzem as próprias brincadeiras de bola nos mais diferentes espaços informais de prática: rua, praia, campinhos, quintal de casa, pátio da escola, quadra do bairro etc.

Esta forma de aprender futebol, combinada por diferentes características brasileiras, já discutidas nos textos anteriores, fizeram com que grande parte da população brasileira nascida no Século XX, tivesse essa experiência em sua vida. Dentre essa parcela da população, algumas pessoas se tornaram jogadores e jogadoras profissionais, chegando até ao mais alto nível de excelência. Refletimos também, que esse cenário ainda existe e segue contribuindo bastante para a formação de talentos no futebol brasileiro, embora a aprendizagem do futebol hoje esteja muito mais formal do que antigamente, desde a primeira infância. Isso é consequência de algumas ameaças, também já abordadas nos textos anteriores, entre outras que ainda podemos abordar futuramente, como a especialização precoce e a pressão do marketing nesse setor socioeconômico.  

No entanto, neste texto, gostaria de destacar a importância desse ambiente informal de prática para além da formação dos talentos esportivos. Para a maioria de nós, cidadãos que tivemos essa experiência e não nos tornamos jogadores profissionais, embora fosse o sonho de grande parte, não podemos dizer que esse período foi em vão. Eu, por exemplo, o vivi intensamente e me lembro com muito carinho da minha infância e adolescência, quando podia passar as tardes jogando bola com meus amigos. E você, possui boas lembranças desse período da vida cheio de brincadeiras livres? Para além das boas recordações, mais coisas daquela época ficaram em mim. Nesse sentido, a Pedagogia é uma grande aliada para investigar a importância desse período para o desenvolvimento integral da criança e do adolescente. Vamos utilizar a Pedagogia para compreender esse ambiente de brincadeiras informais tão típico da nossa história, para além da aprendizagem do jogo de bola em si? Já pensou no que podemos extrair do jogo para a vida?

Vamos lembrar o que precisávamos fazer para conseguir satisfazer nosso desejo de jogar bola! Primeiro item essencial: precisávamos da bola. Nem sempre tínhamos uma à disposição. Então a inventávamos, com o que fosse possível chutar no espaço que tínhamos. No pátio do colégio era comum não nos darem a bola para jogarmos, então, tampinhas de garrafa pet, latinhas, garrafas, bolinhas de papel e pedras, viravam a bola do nosso jogo. Aqui já temos o primeiro aspecto pedagógico importante a ser observado: a criatividade. Na falta dos recursos ideais para resolver a necessidade de ter uma bola para jogar. A solução dada pela criança – criativa que é – é inventar o seu brinquedo com os recursos disponíveis. Isso ocorria também na falta de traves para fazermos o gol. Bancos, cadeiras, dois chinelos, duas pedras, enfim, quaisquer objetos ou alvos que pudessem simular um gol, nós não pensávamos duas vezes para resolvermos o nosso problema. Portanto, daqui podemos perceber que para a criança criar a sua brincadeira, ela precisará estimular a sua imaginação, criatividade e atitude para que seu desejo de jogar seja satisfeito. Todas essas faculdades mentais, partindo do seu desejo de brincar, são estimuladas e fortalecidas para a criança como um todo. Caso seja desafiada a utilizá-las em outras tarefas, ela poderá aproveitar essa experiência prévia em algum grau.

Vamos seguir nosso raciocínio sobre o que mais a criança precisa para satisfazer o seu desejo lúdico de jogar bola. Um elemento importante é o desenvolvimento de habilidades motoras. Para brincar, ela precisará se relacionar com a bola e transformar as suas intenções em coordenações motoras para executar a habilidade pretendida (condução, passe, chute, controle etc.). Por meio do constante desafio que o movimento imprevisível da bola causa para o sistema coordenativo da criança, ela precisará desenvolver uma série de movimentos novos para conseguir cumprir a sua intenção relacionada à bola. Vamos utilizar o exemplo das embaixadinhas. Brincar de embaixadinha a tornará mais hábil em embaixadinhas, mas também poderá ser útil em habilidades que necessitem de movimentos parecidos, como equilibrar-se em um apoio ou movimentar precisamente os membros inferiores e, particularmente, os pés. Poderíamos citar outro tipo de capacidade também, como uma maior organização espaço-temporal para coordenar o espaço-tempo do movimento da bola com o espaço-tempo do movimento das pernas. A cada movimento da bola na embaixadinha todas essas capacidades são estimuladas e desenvolvidas, podendo ser usadas em desafios maiores do mesmo tipo de habilidade ou em outros da vida da criança, que exijam tais coordenações.   

Mais um item importante para a criança satisfazer seu desejo lúdico de jogar bola é ter com quem brincar. Em espaços públicos, como a rua, parques, praças, praias etc., uma criança pode até começar a jogar sozinha, mas assim que outras crianças compartilham do mesmo espaço, é comum haver o interesse de brincarem juntas. Porém essa brincadeira em conjunto não ocorre de forma natural. É uma convivência construída com a prática de conviver. Existirão conflitos ali que deverão ser resolvidos para que a brincadeira prossiga. Por exemplo, uma criança está brincando em um campinho com um gol. Ela chuta ao gol e depois busca para chutar novamente. Até que chega uma outra criança que quer brincar com ela. Para se enturmar, essa se prontifica a ficar no gol em alguns chutes, mas logo cansa e propõe:

– Que tal se a gente fizer uma disputa? Você chuta 3 e eu chuto 3 para ver quem faz mais gol. Topa? – diz a criança que chegou depois.

– Mas eu não gosto de ir no gol. – diz a dona da bola.

– Então vou brincar de outra coisa. – diz a criança que iniciou o diálogo.

Esta última vai para o outro gol e começa a se pendurar na outra trave, chutar pedras, entre outros jogos solitários. Já a criança dona da bola volta à sua brincadeira de chutar ao gol e buscar, mas logo percebe que estava mais legal brincar com uma companhia. Diante desse conflito, ela grita:

– Ei! Vamos jogar como falou! Mas eu começo chutando! – diz a criança dona da bola.

A criança que brincava sozinha no outro lado da quadra aceita e começa o jogo proposto. Até aqui já podemos perceber o primeiro conflito de interesses, em que ambos perceberam que precisariam ceder para construir algo coletivo mais interessante que aquilo que estavam construindo individualmente. Neste ponto, a criança começa a praticar um grande valor da socialização, que para se construir coletivamente, temos que colocar as nossas vontades em alguns momentos, mas em outros teremos que ceder. O jogo continuou. A criança dona da bola chutou e a outra defendeu, rebatendo. A primeira aproveitou o rebote e logo chutou, comemorando o gol. E iniciou um novo diálogo, a partir daí:

– Não valeu! Não vale rebote! – disse a criança que estava no gol.

– Valeu sim! – disse a criança que chutou, comemorando mais ainda.

Aqui temos mais um conflito. Não haviam previsto essa situação e por isso não combinaram nenhuma regra que resolvesse a questão. Teriam que criar uma regra e um acordo a partir daquele momento de conflito para que o jogo continuasse. Nessa cena descrita podemos perceber mais uma ótima oportunidade em que o jogo pode ensinar algo precioso para a vida. A resolução de conflitos, a criação de regras, a habilidade de ouvir, falar e estabelecer acordos são fundamentais para qualquer sociedade civilizada. As crianças que criam e conduzem as suas próprias brincadeiras são incentivadas a desenvolverem essas habilidades para poderem seguir jogando e se divertindo. Esta é a motivação principal delas. Essa experiência não as fará ter a consciência plena de que estão praticando valores de socialização ou algo do tipo. Mas as dará a oportunidade de vivenciar situações em que esses valores são importantes. Neste ponto, uma pedagogia que busca compreender esse ambiente de aprendizagem, pode se valer dessas situações, para justamente oportunizar essa conscientização. Se cumprida essa etapa, esses conhecimentos poderão ser ainda mais importantes para a vida da criança como um todo.

Eu gostaria de encerrar esta série, destacando este aspecto da iniciação esportiva brasileira, que foi amplamente desenvolvida em ambientes informais de aprendizagem. As experiências vividas a partir dela nos absorviam de maneira integral, e provocavam um desenvolvimento da mesma forma. Não nos viam como futuros jogadores, não nos viam no futuro. O momento que importava era aquele. A vida acontecia plenamente ali. Talvez, por isso guardamos tantas boas recordações desse tempo de infância e adolescência, em que podíamos brincar na rua, ou onde quer que fosse, com as pessoas que queríamos estar, o maior tempo que tivéssemos disponível. A iniciação esportiva formal deve aprender com esses ambientes lúdicos informais, com as crianças como elas são, com a nossa história. Este é o convite!

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Panorama do futebol brasileiro a partir de agora

Crédito imagem – Lucas Uebel/Grêmio

Chega ao fim uma primeira parte do calendário do futebol brasileiro. O término não só dos estaduais, como também da fase de grupos da Libertadores e da Sulamericana, nos dá um claro panorama do que teremos nos meses mais importantes da temporada, com o início do Brasileirão e das fases mais agudas da Copa do Brasil e das competições internacionais.

E mais do que resultados vale sempre analisarmos desempenho e contexto. As trocas constantes de comissão técnica são inerentes à nossa cultura. E se não vale ficarmos sempre batendo na já surrada tecla do ‘pouco tempo de trabalho’ vamos fugir também do ‘Estadual é obrigação’, mas ‘perde para você ver…’.

O conjunto mais forte do Brasil hoje é o do Palmeiras. Vou além: o mais forte da América do Sul. E usei o termo conjunto propositalmente. Não é o melhor time que vence. Não basta ter os melhores jogadores. É preciso o melhor conjunto dentro e fora de campo. A diretoria menos suscetível a jogar tudo pro alto em um período de instabilidade. O clube mais sólido nos seus mais variados departamentos para entregar a melhor condição para quem entra em campo. E nisso o Palmeiras está à frente do Flamengo, por exemplo, que para mim é a segunda força. Ou a pressão que o técnico Rogério Ceni sofre após cada mínimo revés não revela um cenário de instabilidade?! E por mais que jogador por jogador o Flamengo seja o mais forte. Entretanto insisto: não basta ter os melhores jogadores para vencer.

Em um segundo escalão projeto três trabalhos muito promissores: o de Tiago Nunes no Grêmio, o de Cuca no Atlético-MG e o de Hernan Crespo no São Paulo. Tiago tem uma incrível chance de apagar a impressão ruim deixada no Corinthians e fazer do atual Grêmio ainda melhor do que o Athlético-PR de 2019. O reforço pontual de Douglas Costa pode potencializar outros jogadores do elenco gremista. No Galo, Cuca não é um gênio tático, mas consegue mobilizar as forças internas rumo a objetivos. E por mais que as ideias coletivas sejam diferentes, há uma boa herança deixada por Jorge Sampaoli. O mesmo se aplica ao que Crespo recebeu de Fernando Diniz no São Paulo: se o técnico argentino conseguir imprimir um caráter vencedor a esse elenco, a sorte são-paulina pode mudar.

Corroborando que vou além do resultado nessas projeções, escrevo esse texto no início da noite de sábado, 22 de maio; sei que o Atlético foi campeão mineiro, mas não sei ainda os resultados dos campeonatos Carioca, Paulista e Gaúcho. E por mais que eu tenha muito claro que se trata de uma modalidade esportiva, em que o resultado sustenta tudo, não mudaria uma só vírgula em função do que aconteça nessas finais.

Os textos de nossos conteudistas parceiros não refletem, necessariamente, as opiniões da Universidade do Futebol

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A medida do sucesso

Crédito imagem – site Federação Paulista de Futebol

O São Paulo ganhou outro título ontem, um que talvez tenha sido até determinante para que o clube levantasse a taça do campeonato paulista e que, com certa recorrência vem sendo conquistado, mas que dificilmente conseguimos perceber, ou mesmo medir com clareza, que é o da formação humana.

Ainda é preciso discutir, e muito o modelo de captação, ou garimpo de gente que baseia a pirâmide de formação de jogadores e jogadoras no Brasil e no mundo, mas dentro do atual cenário, o São Paulo Futebol Clube é uma das instituições que mais se destaca no Brasil no quesito citado. Com profissionais qualificados, Gabriel Puópolo um parceiro de longa data da Universidade do Futebol é psicólogo da base do clube já há muitos anos, por exemplo e a priorização do desenvolvimento integral dos seus jogadores como seres humanos e isso pôde ser observado mais uma vez na decisão de ontem.

Ainda no primeiro tempo, com a tensão de um jogo que significava demais para o São Paulo pela longa espera por títulos, pelo clássico e pelo jogo, no momento, estar tendendo mais para o Palmeiras um lance pode ter sido decisivo, senão ao menos simbólico para a conquista tricolor. A bola vai saindo pela lateral com posse para o São Paulo, Liziero, cria da base são-paulina, abre os braços para proteger sua saída e acaba atingindo o rosto de Rony com as mãos. No mesmo instante, o técnico Abel Ferreira confronta o meia tricolor de maneira bastante agressiva o que, geralmente acarretaria uma reação contrária da mesma intensidade ou maior.

Ao contrário do que se esperaria, Liziero mostrou maturidade para se desculpar pelo incidente e contemporizar com o português. Diferente fosse, o jogador do São Paulo poderia ter se desconcentrado, entrado em uma confusão e até ter sido expulso prematuramente, já que pelo lance, que aos meus olhos pareceu até sem intenção, ele já havia sido advertido com o cartão amarelo.

O quanto esse autocontrole de Liziero tem relação com a sua formação em Cotia é difícil mensurar, as variáveis são infinitas, a maneira como cada um se desenvolve em um mesmo meio sempre será diferente. Da mesma forma, como tal formação ajuda o clube dentro e fora de campo, com jogadores mais equilibrados e abrindo portas para que eles brilhem no próprio São Paulo e em outros clubes, será coincidência que o Ajax busca tantos são-paulinos? – não é tão simples de medir. Talvez, lances como esses sejam um dos caminhos para nos ajudar a entender como a formação humana, o desenvolvimento da autonomia e maturidade impactam diretamente no resultado dentro de campo. Não que essa seja a única medida do sucesso!

Como defende Gabriel Puópolo, “se eu quero que um jogador renda por bastante tempo, de maneira mais sustentada, preciso estar atento ao desenvolvimento dele como pessoa”.

FutTalks – Entrevista com Gabriel Puopolo