Vocês sabem que eu estava lendo, outro dia, um pedaço de um desses livros que usei como referência na minha pesquisa de mestrado. Chama-se ‘Nietzsche & a Educação’, escrito por este brilhante filósofo que é o Jorge Larrosa – que já citei algumas vezes aqui. Num certo momento, analisando uma das passagens escritas pelo Nietzsche, Larrosa faz uma observação muito interessante, que gostaria de trabalhar com vocês. Diz ele o seguinte:
“É a vida em sua totalidade, e não só a inteligência, a que interpreta, a que lê. Mais ainda, viver é interpretar, dar um sentido ao mundo e atuar em função desse sentido. Por isso a incapacidade para ler um livro não implica tanto a falta de ‘preparação’ do leitor como a falta de uma comunidade de experiências com o livro que, em última instância, remete a uma diferença vital e tipológica. Ser ‘surdo’ a uma obra, mesmo que a tendo ‘compreendido’, supõe ter outra disposição diferente daquela que a obra expressa. Quando um livro expressa em uma linguagem inédita experiência muito pouco comuns, ou radicalmente novas, e um tipo vital fora do comum, quase ninguém poderá lê-lo.”
No ano passado, escrevi neste mesmo espaço um texto apresentando um pouco do que entendo como o jogador inteligente. Basicamente, usei a origem da palavra para defender que o jogador inteligente é aquele capaz de ler nas entrelinhas. Ou seja, enquanto os outros só conseguem enxergar o literal, o jogador inteligente enxerga além, enxerga entre, lê o que os outros não leem. Não sei se fica tão claro assim, mas podemos tirar pelo menos duas coisas daqui: a primeira é que o texto que se apresenta ao jogador inteligente é o mesmo texto que se apresenta aos outros – portanto, a diferença não está no ‘texto’ em si, mas na ‘leitura’ que se faz dele. A segunda é que isso não vale apenas para o jogador, vale também para treinadores, assistentes, analistas, fisiologistas, preparadores físicos, gestores e etc. A inteligência, enquanto capacidade de ler e de tentar compreender as entrelinhas, cabe a todos nós.
Mas repare que quando nos dispomos a assistir a um jogo de futebol, ou mesmo assistir às nossas sessões de treino, ou de outros colegas, quando nos dispomos a analisá-las e a interpretá-las, a inteligência em si não basta. O motivo por que citei aquela passagem do Larrosa é para questionar a nossa leitura do futebol, ou de qualquer outra modalidade, acontece de corpo inteiro ou não. Será que os olhos são suficientes para assistir ou analisar bem um jogo de futebol? A meu ver, não. É preciso ir além e refinar todos os sentidos, para uma educação capaz de ouvir ao jogo – para que não sejamos surdos a ele, de tocar o jogo – para que ele também nos toque, de sentir o aroma do jogo – para que saibamos reconhecer uma equipe pelo perfume, ou mesmo uma educação capaz de saborear o jogo – pois a palavra sabor, não se esqueça disso, tem a mesma origem da palavra saber. A visão, embora seja um sentido privilegiado, não basta. A inteligência também não.
Só que vocês haverão de convir comigo que nada disso é ensinado por aí, essas coisas não aparecem nos cursos de formação – pois há quem diga que não é ‘prático’. Afinal, acreditamos que o que nos faz melhores é a quantidade de conhecimento que acumularmos. Bom, isso não é um problema em si, mas basicamente significa que podemos cair facilmente no mesmo problema apresentado pelo Larrosa acima, ou seja, da ‘falta de preparação do leitor’. Porque quando nos dispomos a ler um determinado jogo, ou uma determinada metodologia, ou uma determinada sessão de treino, ou um determinado atleta, quando nos dispomos a ler a nós mesmos em relação com o mundo, não é preciso que nos defendamos – ou que nos escondamos – atrás da preparação, ou da suposta falta de preparação, ou dos saberes, ou da suposta falta de saberes, não é preciso – nem é inteligente – nos restringirmos com barreiras tão pequenas: podemos muito bem nos apoiar na comunidade de experiências que fazemos com o jogo, ou com o método, ou com o treino, ou com o atleta – e isso se faz de corpo inteiro. As coisas que precisamos saber não estão nas coisas em si, mas na qualidade das relações que estabelecemos com elas, no sentido que damos a elas, por isso cada saber é único, particular, não se repete. Não por acaso, aplicamos muitas vezes um mesmo conteúdo, de maneiras diferentes, no processo de treino: porque uma vivência apenas não basta, e quanto mais vezes voltarmos aquele conteúdo, provavelmente melhor e mais refinada será a relação que nós mesmos e os atletas estabelecemos com ele.
Para ser um bom leitor ou uma boa leitora de futebol, é preciso ler de corpo inteiro, não apenas com os olhos. E é justamente assim, lendo pela audição, pelo olfato, pelo tato, pelo paladar, lendo de corpo inteiro, que refinamos a nossa capacidade de dar sentido às coisas. Como diz o texto que citei no início: viver é interpretar. Eu realmente admiro a importância das avaliações mais objetivas e as colaborações das ciências mais duras em modalidades como o futebol, mas gostaria de pedir sinceramente a vocês que não confundam a razoabilidade dos saberes objetivos com uma completa negação da subjetividade, como ser sujeito fosse um problema e ser objeto, uma solução . Porque o sentido que eu dou ao jogo, ao método, ao treino ou ao atleta, será apenas e tão somente meu, assim como o sentido dado por você será apenas seu, assim como o sentido dado por um terceiro será apenas dele e portanto ninguém além de mim pode dar sentido às coisas como eu, ninguém além de você pode dar sentido às coisas como você – e assim sucessivamente. E é justamente nessa coisa meio plural, meio complexa, nessa coisa meio transitória, nessas contradições, nessa impureza, nessas diferenças – é nesses desencontros que eu, você e todos os outros nos fazemos únicos, nos tornarmos melhores leitores, do jogo que se joga mas não apenas dele, nos tornamos mais inteligentes. Nessas diferenças que o nosso saber contrai, relaxa, fadiga, supercompensa. Se não existem verdades próprias do jogo – me lembro aqui do Dostoieviski, tudo é possível.
E se tudo é possível, é melhor ler – e criar – de corpo inteiro.