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Futebol Feminino – Preconceito X desenvolvimento da modalidade

Crédito imagem – Pedro Ernesto Guerra Azevedo/Santos FC

O amor pelo futebol é universal. Homens e mulheres, adultos e crianças, compartilham dos mesmos sentimentos quando torcem pelo seu time de coração: felicidade, tristeza, desespero, euforia. No entanto, infelizmente, uns e outros ainda possuem aquele pensamento retrógrado de que futebol não é local para mulheres.

O ingresso das mulheres no futebol é recente comparado com o surgimento dessa modalidade de esporte.

Há 40 anos, as mulheres ainda eram proibidas por lei de praticar esportes, incluindo o futebol, sendo permitido somente aos homens jogar e participar de campeonatos.

Em que pese esta proibição ter caído em 1979, muitas mulheres ainda são impedidas de jogar bola, quer seja pelo machismo enraizado nas famílias, quer seja pela dificuldade de adentrar no ambiente futebolístico.

Por isso, exigir igualdade de desempenho entre homens e mulheres é, no mínimo, hipocrisia e falta de empatia da parte de quem faz tal comparação.

Recentemente, o sócio e ex conselheiro do Santos FC, Sérgio Ramos, se envolveu em uma polêmica ao ser divulgado trechos de uma transmissão do Blog Soul Santista, onde ele dispara comentários de cunho misógino e de incitação à violência contra a mulher.

Durante a transmissão, o sócio proferiu ofensas às jogadoras do Peixe, afirmando que “campo de futebol não é lugar de mocinhas” e que “mocinhas no campo de futebol são aquelas que a gente enche de porrada e tira de lá”. Referido senhor disse ainda que o futebol feminino é um lixo e que não o assiste de jeito nenhum, além de muitas outras barbaridades.

Os comentários arrancaram risadas do grupo, sendo que os demais participantes da live se limitaram a alertaram o ex conselheiro de que tais comentários poderiam ser considerados politicamente incorretos.

O discurso viralizou na internet e nas redes sociais, causando repúdio e diversas manifestações contrárias às ofensas disparadas pelo ex conselheiro do Peixe. O próprio clube chegou a emitir nota de esclarecimento, afirmando que as providências em face da Sergio Ramos já estão em andamento. Além disso, o Blog Soul Santista também se pronunciou, afirmando que a opinião do convidado Sérgio Ramos não representa a do Blog.

Infelizmente, comentários desse tipo são comuns em nossa sociedade. O futebol feminino é desprestigiado por muitos, o que acaba refletindo diretamente no desenvolvimento, rendimento e orçamento dos times de futebol feminino.

Mesmo com todos os entraves, é notória a evolução do futebol feminino. Prova disso foi o sucesso da Copa do Mundo Feminina, onde os jogos alcançaram visibilidade, boa audiência e repercussão a nível mundial. Se a sociedade valorizasse e incentivasse as mulheres à prática desse esporte desde a infância, e investissem em categorias de base e profissionalização, como ocorre com os homens, certamente o nível e a qualidade técnica dos times femininos progrediriam satisfatoriamente.

Nada impede que as jogadoras e times femininos sejam cobrados quando não apresentam o rendimento desejado, como ocorreu com a seleção brasileira feminina na Copa do Mundo.

Entretanto, o que não pode ocorrer é a comparação desleal com o futebol masculino, o qual, desde sempre, teve prestígio e altos investimentos, e a perpetuação de pensamentos e práticas preconceituosas e misóginas, que só afastam a possibilidade de o futebol feminino alcançar o lugar merecido dentro do ambiente futebolístico.

Infelizmente o preconceito contra o futebol feminino está enraizado na sociedade e comentários como o do sócio e ex conselheiro do Santos FC, Sergio Ramos, são ainda comuns, o que só ressalta a importância de combatermos a discriminação e intolerância dia após dia, visando, inclusive, a evolução da nossa sociedade.

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A rua nos ensina muito mais do que driblar, passar e fazer gols

Em nosso último texto, abordamos a diferença entre driblar ou fintar um cone e uma pessoa, buscando destacar a importância de levarmos para os espaços de ensino e treinamento do futebol – escolas, escolas de futebol e clubes – todos os ensinamentos da pedagogia da rua. Ao abordar as diferenças entre driblar um cone e uma pessoa, do ponto de vista da aprendizagem das habilidades para o jogo de bola e do desenvolvimento das coordenações motoras que estão na base dessas habilidades, deixamos em aberto algumas questões, entre elas, duas que trataremos neste texto: a importância de trazer para as aulas e treinos o aspecto lúdico, sobretudo por seu caráter de diversão, de alegria e de prazer, e as questões afetivas que permeiam toda e qualquer prática social, neste caso, o futebol.       

O prazer e a alegria de jogar futebol não estão presentes somente em crianças e jovens. Sim, está certo que é nesses períodos de vida que mais podemos brincar e nos divertir, mas não é porque crescemos e nos tornamos adultos que o futebol precisa se tornar algo maçante, chato, repetitivo e desprovido de alegria e divertimento. O que mais diverte crianças e jovens na prática do futebol: aguardar numa fila seu raro momento para dar um chute na bola ou brincar de rebatida? Driblar cones em direção ao outro lado do campo ou brincar de driblinho/golzinho na rua? E os adultos – e aqui vale considerar até mesmo os(as) atletas profissionais: quando correm em volta do campo para aquecer ou quando brincam de bobinho?

Vale ressaltar que o foco deste texto não é discutir se nos aquecemos melhor correndo em volta do campo ou jogando bobinho. Ou se aprendemos a driblar melhor passando por um cone ou jogando golzinho na rua, mas sim trazer para o debate a ideia de que tudo isso pode ser feito com alegria, diversão, prazer, ou seja, fazendo da prática do futebol uma experiência positiva, prazerosa e, consequentemente, duradoura.   

Como já antecipamos, o outro aspecto que gostaríamos de destacar, também ligado ao plano afetivo, refere-se aos desafios, medos, situações de sucesso e fracasso, que costumeiramente a rua nos ensina. Certamente, realizar um drible em um adversário é muito mais instigante do que em um cone, ou em um adversário invisível. Executar uma finalização ou desarme com a cabeça a partir de uma bola cruzada da lateral e com a presença de um adversário é muito mais desafiador do que lançar a bola com as mãos para o próprio cabeceio. Marcar ou enfrentar a marcação de um jogador mais rápido, mais alto ou mais forte que você, lhe ensinará muito mais a lidar com o medo do que ser marcado por um cone. Ou seja, é certamente no contato com o outro, em situação real ou simulada de jogo, que esses aprendizados se dão de modo mais intenso e permanente.

Isso não significa que, automaticamente, tal tipo de aprendizagem se transfere para outras situações de vida. A rua não tem esse compromisso. Num primeiro momento, aquilo que uma criança aprende jogando bola, superando medos, fracassando ou sendo bem-sucedida, vivenciando o êxito ou a frustração, restringe-se ao plano imediato das ações práticas do jogo. A repercussão dessas aprendizagens na vida fora do jogo e ao longo da vida, mantém-se como mistério; muito do que sabemos, especialmente no plano afetivo, não sabemos de onde veio. Porém, a rua não tem compromisso pedagógico.

A aprendizagem da rua é uma aprendizagem ligada ao que se vive; na rua, aprende-se a viver vivendo. Porém, quando compreendemos o que se passa na rua e transpomos esses ensinamentos para as escolas, começamos uma outra história. A escola sim, tem compromisso com ensinar tecnicamente, de imediato, e também com a formação para a vida. Aquilo que a rua faz tão bem, a escola tem que fazer, pelo menos, razoavelmente. E aquilo que a rua não faz, a escola tem que fazer. O que os conhecimentos de cada prática transcendem a própria prática e se estendem a outros campos do conhecimento – por exemplo, a superação de desafios, a definição de estratégias se transferindo ao conhecimento matemático, são, em boa parte, componentes de nosso inconsciente. Podem chegar a outros campos do conhecimento, mas não saberemos como, nem quando. Porém, essa educação da rua transformada em pedagogia nas escolas pode alimentar uma metodologia que produza tomadas de consciência. Aí sim, os conhecimentos tornados, ao menos parcialmente, conscientes, podem ser orientados para potencializar conhecimentos em outras áreas.  

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A decisão nas mãos do torcedor

Na era da economia da atenção, os clubes de futebol entram em uma nova disputa. Precisam vencer as plataformas de streaming e os jogos eletrônicos, valendo justamente a atenção de seus torcedores. Para isso, utilizar ferramentas que possibilitem que os torcedores tomem decisões pelo clube pode ser fundamental para trazer o engajamento necessário para manter este fã por perto. Este texto busca explicar como funcionam iniciativas nesse sentido, trazendo alguns exemplos tanto do mercado brasileiro, quanto de fora.

Conforme o mundo evolui, vamos sendo apresentados à novos conceitos. Um dos mais recentes é o da Economia da Atenção. Esta ideia começa a surgir quando o tempo passou a ser um recurso cada vez mais escasso. Não foi coincidência a enorme quantidade de publicações nas redes sociais com dicas de produtividade no home office na época em que a quarentena foi instaurada no Brasil, em março de 2020. Além de atividades de trabalho e estudos, existem diversas opções de entretenimento disponíveis, como séries, redes sociais e vídeo games. Com diversas informações a serem consumidas, a atenção das pessoas virou o principal desejo de produtores de conteúdo de diferentes formatos, pois é a partir de sua conquista que os produtos e serviços serão vendidos com maior facilidade.

Como mais um produto de entretenimento, o futebol e outras modalidades esportivas entram na briga pela atenção dos torcedores, tendo os serviços citados no parágrafo anterior como concorrentes. O futebol já sai atrás no placar quando lembramos que seu principal produto, uma partida, possui 90 minutos, tempo muito longo para alguém prestar atenção sem interrupções. Em pesquisa recente, a consultoria PwC analisou o comportamento de consumo de torcedores ao redor do mundo. Estes dados mostraram que as gerações mais jovens estão se desligando da partida ao vivo, buscando consumir conteúdos como os melhores momentos para se manter informada.

Para ter vantagem neste jogo, existem alguns conceitos que podem ser utilizados pelos profissionais do esporte para criar um bom relacionamento com seus fãs. Um destes, cada vez mais utilizado por clubes e outras empresas, é o de dar poder de decisão aos torcedores sobre questões da entidade. Essa prática ganha força no momento em que os fantasy games e novos modos de jogo dentro de FIFA e Pro Evolution Soccer passam a entregar aos usuários a opção de montar suas próprias equipes, se tornando verdadeiros gestores responsáveis pela compra e venda de atletas. As decisões que serão tomadas por torcedores no mundo real não necessariamente precisam ser relevantes. Podem ir de questões mais simples, como escolha do ônibus do time até decisões realmente importantes, como será visto na sequência deste texto.

São duas as vantagens obtidas ao possibilitar que os fãs tomem as decisões dos clubes. A primeira é o próprio engajamento em si. O perfil oficial do Campeonato Brasileiro no Twitter tem feito isso muito bem, permitindo que os torcedores escolham a seleção de cada rodada a partir de votação na plataforma. É possível notar que as enquetes para cada posição movimentam toda a comunidade que segue o perfil, por envolver a paixão de diversas torcidas na ação.

A segunda vantagem é a sensação de pertencimento. Existe muita paixão envolvida no esporte, e o torcedor quer sempre estar próximo. Um clube que já percebeu esse desejo e as oportunidades que isso traz é o Bahia. Desde 2018 o clube define seu uniforme a partir de uma votação popular com seus torcedores, com a vantagem de a camisa de jogo da equipe ser produzida pela Esquadrão, marca própria do tricolor baiano. Na votação de 2019, foram cerca de 50 mil participações no concurso denominado “Manto do Esquadrão”.

No último ano, foram alguns casos de ações nesse sentido no futebol brasileiro. O Atlético-MG utilizou a estratégia para gerar engajamento no início da pandemia, quando as partidas estavam paralisadas. Assim, em parceria com a empresa End to End e a fornecedora de material esportivo Le Coq Sportif, surgiu a campanha “Manto da Massa”. O projeto envolvia ter uma camisa do clube desenhada por um torcedor, fato que seria legitimado a partir de votação popular. Os objetivos iniciais envolviam aumentar a receita do clube, seja com a venda do novo uniforme, seja com o engajamento nas redes sociais e no plano de sócio torcedor. Os resultados superaram as expectativas tanto do Atlético, quanto da End to End, outra parte envolvida na ação. Foram 100 mil camisas vendidas em 8 dias, aumento de 87% da base de sócios do clube e a marca de 22 mil seguidores na conta de Instagram do Galo na Veia, programa de sócio do clube que possuía apenas 5,6 mil seguidores antes do projeto.

No mercado internacional também existem bons exemplos. A plataforma Socios.com utiliza esse conceito em seu produto. A empresa disponibiliza a venda de tokens, um ativo digital ligado a tecnologia blockchain, que permite aos compradores ter poder de decisão em algumas questões dos clubes que possuem acordo com o Socios.com. No futebol, são 14 instituições com contrato, com grandes clubes como Barcelona, Juventus, PSG e Atletico de Madrid. A decisão mais significativa disponibilizada para escolha dos fãs surgiu em outubro de 2020. Através de enquetes no aplicativo do Socios, os torcedores do Apollon FC, do Chipre, puderam escolher a escalação do time no amistoso contra o Aris Limassol, desde a formação tática até os atletas.

Ainda sobre esta plataforma, eles realizaram em 2018, em parceria com a consultoria Nielson, uma pesquisa sobre o relacionamento dos torcedores com seus clubes. 47% destes destacaram que se interessam mais por votações sobre suas equipes do que eleições de seus países. Reforçando a importância de dar voz aos fãs, 52% dos que responderam a pesquisa acreditam que os torcedores precisam ter mais influência nas decisões das entidades esportivas.

Para o futuro, entregar ao torcedor decisões importantes deve ser um fato presenciado mais vezes. Modelos e ferramentas para que isso ocorra não irão faltar, com tantas tecnologias disponíveis no mercado. Caberá aos clubes entenderem essa nova demanda e permitirem que os torcedores assumam seu papel de donos do espetáculo em alguns momentos.

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Entrevistas

Os impactos da covid no desempenho esportivo

Crédito da imagem – Bruno Ulivieri/AGIF/CBF

A covid-19 mudou os rumos da história da humanidade em 2020, e com o futebol não foi diferente. Paralisação das competições, jogos realizados sem público e uma mudança radical na rotina de jogadores, jogadoras e todos os envolvidos diretamente com o jogo, foram algumas das mudanças que testemunhamos após o espalhamento do vírus. Os protocolos de segurança adotados para tentar diminuir a taxa de contaminação entre os atletas contribuíram, mas não foram capazes de evitar que muitos deles fossem acometidos pela doença. Além do necessário afastamento dos contaminados, que traz um óbvio prejuízo esportivo para suas respectivas equipes, a própria doença é uma preocupação, pois seus sintomas, principalmente os acometimentos respiratórios, podem impactar diretamente no desempenho em campo, mesmo após o fim da infecção.

Para entender melhor como a covid-19 afeta o desempenho dos jogadores e jogadoras e conversamos com Páblius Staduto, médico do esporte, que compartilhou com a Universidade do Futebol um pouco sobre o que já se conhece sobre essa doença que ainda é uma novidade do ponto de vista da cronologia científica.

Universidade do Futebol – Quais são as principais exigências do futebol em relação ao corpo de um jogador ou de uma jogadora?

Páblius Staduto – Como existe um tempo determinado de jogo e a intenção de atingir os seus objetivos do jogo que é marcar gols e não sofrê-los, a distância percorrida ao longo desses 90 minutos costuma ser muito grande. Apesar de existirem as distintas posições com diferentes demandas, é importante para qualquer jogador ter bem trabalhada a resistência para suportar o período do jogo, que geralmente dura 90 minutos, mas às vezes extrapola esse período, com acréscimos e prorrogações em competições de mata-mata. Essa resistência é demandada também ao longo da semana, o que acontece no jogo é resultado do que foi trabalhado durante a semana e na pré-temporada.

Então podemos dizer que existe no futebol um misto de demanda da resistência cardio-respiratória e da força. O trabalho de força é feito sempre durante toda a temporada, para que além de aumentar a resistência, sejam prevenidas as lesões. Esse equilíbrio entre força e resistência também varia de acordo com a posição na qual o jogador ou jogadora atua. Pegando como exemplo os goleiros, eles têm uma semana muito forte de treinamentos, é exigido muita velocidade, respostas rápidas, que é o contexto do jogo. Se no caso dos goleiros o gasto de energia no jogo é aparentemente menor, durante os treinamentos da semana ele é bastante grande.

Agora quando falamos dos jogadores e jogadoras que correm o jogo todo, aqueles que atuam na chamada “linha”, alguns vão precisar de mais velocidade, mais explosão, outros vão precisar de um pouco mais de resistência para se manter o tempo todo correndo. Veja como a gente acabou falando de um misto de demandas que em alguns casos são comuns, e em outros são mais específicas, tanto é que temos grupos que treinam separados em muitas ocasiões, mas o trabalho de força e o trabalho cardiorrespiratório, vão estar sempre presentes ao longo da atividade.

Uma das características importantes da questão cardiorrespiratória é que quanto melhor se encontra essa capacidade melhor é a retomada. Por exemplo, se é realizado um esforço muito intenso durante uma jogada que pode ter um desfecho decisivo, um lance de gol ou de grande perigo, a recuperação desse esforço deve ser tão rápida quanto possível, para que esse jogador ou jogadora possa voltar ou jogo de novo na plenitude de seu desempenho. Quanto melhor a capacidade cardiorrespiratória ela, melhor essa resposta do atleta, não é difícil reconhecer aquele jogador que dá um pique e que não aguenta voltar. A pré-temporada é feita para dar esse start e depois se passa a fazer a evolução física até o atingimento de um pico em um momento importante da temporada, dependendo da estratégia de treino elaborada por cada comissão. A exigência tanto cardiorrespiratória, quanto muscular, é realmente bastante grande no futebol ao longo de todo o ano.

UdoF – Quais são os principais sintomas e sequelas que a COVID pode causar no corpo humano, pensando principalmente no desempenho exigido na prática do futebol no alto rendimento?

Páblius – O primeiro ponto são as diferentes intensidades que essa doença pode manifestar no corpo humano. O atleta, como qualquer outra pessoa, pode ter se contaminado e ser absolutamente assintomático, ou pode apresentar sintomas leves, como um quadro gripal, por exemplo, uma indisposição, algo que não vá gerar repercussão nos pulmões ou no sistema respiratório de maneira geral. A partir daí você pode ter algo mais moderado e até os casos mais intensos, com a falta de ar e a hospitalização. A parte respiratória ainda chama bastante atenção, pois essa falta de ar, essa menor resposta respiratória ao esforço, pode acontecer com intensidades variadas afetando o desempenho esportivo. São inúmeros os cenários possíveis.

Falando primeiro dos assintomáticos, apesar de eles não sentirem nada, para um atleta de alta performance sempre vai existir uma preocupação, nesses casos tem chamado muito a atenção as alterações cardíacas decorrentes da covid. Logo, o afastamento dos 14 dias, um retorno paulatino aos treinos, uma observação dos exames e uma análise da resposta deles no campo, são muito importantes para prevenir que eles não desenvolvam uma patologia cardíaca no futuro. Existem muitas perguntas ainda a serem respondidas sobre a doença, mas pelo que a gente tem visto, não vem ocorrendo grandes alterações nos assintomáticos. São muitos os exemplos de atletas que estavam positivos, fizeram o período de quarentena e conseguiram retomar paulatinamente suas atividades sem maiores problemas.

Aqueles que apresentam sintomas têm uma alteração no desempenho respiratório, e consequentemente cardíaco, pois quando você tem uma dificuldade respiratória, vai puxar o oxigênio para dentro e eliminar o gás carbônico com menos eficiência, comprometendo o corpo do ponto de vista circulatório e a própria função cardíaca, que pode estar normal, mas não vai conseguir promover as trocas da maneira ideal. Para esses casos a recuperação não vai ser só de 14 dias, sendo importante que não exista nenhum sintoma seja ele a perda de olfato, paladar, que são sinais muito claros da presença da doença, ou qualquer outro antes do retorno às atividades. Para isso existem os testes de esforço, os testes físicos, que vão mostrar se a queda de desempenho foi muito grande, nesses casos a recuperação tem que ser lenta, devendo ser realizadas uma série de avaliações como eletrocardiograma e exames mais aprofundados tanto de coração como de pulmão.

Se houver uma alteração pulmonar, lesões que aparecem com certa frequência em tomografias, que deixam o paciente bastante debilitado, o jogador ou jogadora só vai poder voltar ao esporte assim que se tiver a certeza de que não apresenta nenhum sintoma que limite sua capacidade física. Isso não é empírico, não é apenas um chute, fazemos muitas avaliações de esforço etenho recebido muitas queixas desse tipo, não só de atletas, “a única coisa que não melhorou ainda é a fadiga”, escuto. Então imagine expor um atleta, que apesar de estar já negativo ainda está com a fadiga, a parte respiratória ainda está respondendo com um pouco mais de dificuldade, e colocá-lo em um ritmo de treinamento intenso. Apesar do risco que eu tenho dele perder a massa muscular, da resistência que ele tinha, é uma segurança que a gente dá para eles de fazer uma volta mais cautelosa, mas realmente saudável.

A outra questão também que tem chamado bastante a atenção são as alterações cardíacas, a literatura está descrevendo muito em atletas que tiveram covid e que tiveram problemas respiratórios, alterações no músculo cardíaco que a gente chama de miocardite, por exemplo. Não vou entrar em muito detalhe técnico, mas é importante saber que já existe uma atenção maior para isso, pois no esporte de alta performance, seja ele qual for, você mantém um grau de exigência do corpo muito intenso durante a semana toda. Então colocar o corpo sob um stress a mais, a partir de uma virose desse tipo, da qual não temos ainda todas as respostas e reações do corpo, é bastante temerário.

Então esses atletas que têm sintomas precisam ser muito bem avaliados, se existiu algum dano, ou até mesmo sequela, se existem limitações que ele não tinha e passou a ter depois da infecção e como é que vai ser essa curva de recuperação. Tudo isso precisa ter indicadores, avaliações, exames, que possam mostrar essa recuperação, mesmo que ela seja lenta. Senão a gente vai expor esses atletas de maneira desnecessária.

UdoF – Jogadores e jogadoras estão mais ou menos propensos a serem contaminados por conta de seu preparo físico e idade? Quando contaminados, eles estão menos propensos a desenvolverem sintomas mais graves do que a média da população?

Páblius – A atividade física é um fator protetor sim, existe descrição disso, e um condicionamento melhor não é só que você vai fortalecer a imunidade, mas deixa o corpo mais atento à essa resposta quanto aos agentes externos que o cercam que podem ser potencialmente infecciosos. O grande problema é exatamente o treino em excesso, pois, no esporte de alta performance, o limiar entre estar bem de saúde ou com o próprio sistema de defesa comprometido é muito estreito.

Por exemplo, não é incomum que atletas profissionais, dependendo da modalidade, quando a intensidade das atividades se intensificam próximo de uma competição importante, comecem a desenvolver alguns sintomas como resfriados, sinusites, rinites, quadros gripais. O que ocorre nesses casos é uma queda da primeira defesa do organismo dada a intensidade dos treinos nesse momento específico de sua temporada. É aqui que nós médicos questionamos quanto um treinamento de alta intensidade, sem períodos de recuperação suficientes, é bom ou não para a saúde.

No futebol a gente tem notado algumas medidas que ajudam e diminuir essa sobrecarga, como o aumento do número de substituições, o uso de máscaras nos arredores dos gramados, o que de certo modo deu um pouco mais de segurança para os competidores, e também o afastamento dos que são detectados como positivos nos testes, medida bastante positiva.

O fato de você isolar esses atletas os 14 dias, de ter um decréscimo da presença do vírus e da posterior negativação permite que esses jogadores e jogadoras afastadas possam seguir a vida normalmente após esse período. Temos essa preocupação com o alto rendimento quando o treinamento é extremamente intenso, com pouco tempo de recuperação isso pode levar a um problema de ordem de defesa do organismo, que é o que a gente chama de imunidade.

Em relação ao desenvolvimento dos sintomas os atletas estão tão propensos a eles como qualquer pessoa. Evidências de sintomas como dor no corpo, dores musculares, indisposição, febre, dores articulares foram e tem sido relatados por atletas. Em situações mais graves, falta de ar – a dispneia, comprometimento de pulmões. Outra situação importante, é a volta ao esporte pós covid. Estudos mostram pequenas, mas significativas alterações cardíacas com pericardite e miocardite, principalmente se o retorno ao esporte for intenso e repentino após cessados os sintomas. 

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Sobre a beleza e a transcendência de uma final

Outro dia, assistindo alguns videos antigos, encontrei um comentário maravilhoso deste grande sujeito que foi o Armando Nogueira, no programa Apito Final da noite que antecede a decisão da Copa do Mundo de 1994, entre Brasil e Itália. Em um minuto de fala, ele diz basicamente o seguinte:

“… uma final é uma transcendência, uma final é uma comunhão. Ela transcende todos esses limites extremamente humanos da técnica, da tática, da física. Essa equipe não é a melhor equipe que no Brasil se poderia formar, do ponto de vista técnico, mas do ponto de vista físico, do ponto de vista mental (…) me infundem uma confiança muito grande, e sobretudo um jogador, que eu considero estar ungido, que é o Romário.”

Para quem tem um coração em ordem, é muito difícil não se sensibilizar com uma fala dessas, pelo menos por dois motivos. Primeiro, porque não é uma análise puramente objetiva, não é uma espécie de anatomia do jogo de futebol, como agora estamos nos acostumando a fazer: pelo contrário, é uma impressão absolutamente subjetiva, muito mais empírica do que teórica, e justamente por isso é quase que inteiramente poética – é uma compreensão mais do que lúcida sobre o funcionamento de um evento esportivo decisivo. Depois, é uma fala tão importante porque, passados 26 anos, ela praticamente não envelheceu. Além de ter acertado que Romário sairia daquela Copa do Mundo canonizado – sem que tenha sido o astro daquela final, o que nos leva a crer que Romário já estivesse canonizado quando Armando Nogueira disse o que disse, praticamente todas as palavras continuam valendo, para várias equipes diferentes, e uma final continua sendo uma transcendência, uma comunhão, que vai para muito além dos limites extremamente humanos da tática e da técnica e do físico e da mente.

Bom, foi com esse trecho em mente que recebi várias das críticas ao jogo entre Palmeiras x Santos, no último sábado, pela decisão da Conmebol Libertadores. Particularmente, achei muito interessantes as críticas que denunciaram uma certa falta de qualidade estética no jogo, como se uma final precisasse ser um espetáculo surrealista – ou mesmo como se várias das finais recentes de campeonatos importantes tivessem sido jogos inquestionáveis. Onde estávamos em Brasil x Itália em 1994, Espanha x Holanda em 2010, Argentina x Alemanha em 2014 – onde estávamos em Liverpool x Tottenham, em 2019, para citar um exemplo mais recente? Entendo que um jogo dessas proporções cause uma certa expectativa, mas acho curioso como as expectativas que criamos, a partir dos torcedores, da imprensa, e às vezes de nós mesmos, profissionais do futebol, são tão demasiadamente afastadas do real, de um jeito que não seja possível qualquer outro sentimento que não o da decepção – daí a importância da gestão de expectativas, como dizem alguns colegas.

Ao contrário de algumas das denúncias que li, não me parece que o problema estético de um jogo decisivo esteja no fato de ser jogo único. Não é disso que se trata. O ponto mais importante, anterior ao fato de ser jogo único ou não, é o fato de que quando falamos de futebol, falamos de jogo: falamos de um terreno em que reina a imprevisibilidade, a incerteza, falamos de uma espécie de suspensão temporária do real, que cria uma outra realidade (é por isso que, quando jogamos, o tempo passa de uma forma diferente). Quando falamos de jogo, acho que ainda precisamos nos educar no sentido de que as forças do jogo são maiores do que as nossas forças, o jogo não existe para atender as nossas próprias vontades enquanto sujeitos, mas existe para fazer valer as suas próprias vontades enquanto jogo. Quando nos dedicamos ao planejamento, à aplicação e à avaliação de processos de treino, nós precisamos ter em mente que não fazemos isso para controlar, de alguma forma, o jogo que se joga, porque essa é uma batalha perdida na origem: todas as tentativas de controlar o jogo deslizam pelos nossos dedos sem que tenhamos a mínima condição de segurá-lo, de fato. O que podemos fazer, ao menos da forma como eu vejo o treino/jogo, é refinar as nossas capacidades de resposta aos problemas que o jogo nos apresenta. Ou seja, ao invés de treinarmos para controlar o jogo, treinamos para responder, cada vez melhor – individual, grupal e coletivamente – ao jogo que se joga, evitando ao máximo nos apegarmos a qualquer delírio de controle, pois me parece que quanto mais confrontamos a força do jogo, mais ela se impõe sobre nós. É com esse tipo de pensamento que acho que deveríamos encarar, com a mais absoluta naturalidade, que duas equipes bem treinadas – ou equipes ‘ricas de ideias’, para usar um dos clichês da moda – possam fazer um jogo decisivo abaixo da expectativa do público médio.

Como eu mesmo falei em algum outro lugar, existe um texto muito bonito do Nietzsche – que falava de futebol sem saber, diga-se, salvo engano meu no Zaratustra mesmo, em que ele defende que o sentido de um texto não está no texto em si: está na capacidade do leitor em relacionar-se ativamente com o texto que se lê, porque as possibilidades de interpretação de um texto são infinitas – quanto mais refinado e insistente for o leitor, talvez mais amplas sejam as possibilidades de leitura. Digo isso porque, a meu ver, é justamente o que acontece num jogo de futebol. Se olharmos para um jogo de futebol esperando apenas e tão somente analisá-lo, como se ele tivesse um sentido único, universal, inquestionável, sinto que perderemos aquela que talvez seja a grande potência do jogo de futebol, que é a potência do infinito, dos vários jogos dentro de um único jogo, da admissão de todos os olhares possíveis e da importância de fazer com que nosso entendimento sobre o jogo de futebol não seja necessariamente melhor apenas de acordo com a quantidade de conhecimentos que – supostamente- temos sobre o jogo – mas sim de acordo com a nossa capacidade de refinamento dos sentidos que damos ao jogo que se joga.

E é também com essas lentes que acho que poderíamos ler o jogo de sábado, pois o mesmíssimo jogo que pode ter induzido ao sono um ou outro espectador, também pode ter inquietado vários outros, e machucado vários outros, e alegrado vários outros e permitido todo e qualquer tipo de análise, inclusive de um ponto de vista tático – e com esse tipo de olhar, que lê o jogo de corpo inteiro, é que acho que podemos avançar no sentido de uma outra prática, de um outro futebol e de uma outra vida.

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Campeonato brasileiro série b 2020, a distância percorrida por cada equipe interfere no resultado?

Crédito imagem – Site oficial do Cuiabá E.C

Imagine que na Série B, todos os voos fossem fretados e diretos, e que todas as cidades teriam aeroportos para receber as equipes. Sabemos que isso não está nem próximo da realidade. Porém, como seria se assim o fosse?

Para calcular a distância entre as cidades foi utilizado o site pt.distance.to, os dados foram armazenados em um arquivo Excel e posteriormente analisados, e gerados gráficos no RStudio. As viagens seguem o calendário da competição.

Na tabela acima, temos os dados coletados, os nomes das equipes, a quantidade de pontos que fez na competição, a distância teórica e a região. Tivemos o Oeste – SP como a equipe que menos precisou se expor à viagens, e o Sampaio Corrêa – MA como a equipe que mais se deslocou para disputar os jogos.

Somadas as distâncias teóricas percorridas pelas equipes do nordeste, temos 333.812,50 km percorridos, com uma média de 55.635,41. Comparando com as equipes do sudeste, estas percorreriam no total 176.223,50 km, com uma média de 29.370,58.

Na imagem a seguir, temos uma distribuição por pontos e distância.

É possível perceber que as equipes do nordeste percorreram em teoria, maiores distâncias que as equipes de outras regiões. Quando foi realizado o teste de correlação de Pearson, o resultado foi de 0.06 positivo.

Sabe-se que o futebol é um esporte que envolve 4 esferas (tática, técnica, psicológica, preparação física) que só fazem sentido quando juntas, se uma equipe viaja bem mais que outras, ela tende a descansar menos, a ter um processo de recuperação mais lento, e estar menos preparada para os jogos seguintes.

Esse estudo é baseado em uma atividade imaginativa, sabemos que a realidade é bem diferente, equipes percorrem distâncias bem mais longas que essas, pois nem todos os voos são diretos, escalas, atrasos, viagens de ônibus, são frequentes no dia-a-dia de uma equipe profissional. E as equipes com toda certeza percorreram distância bem superiores às apresentadas.

A imagem acima apresenta a equipe campeã e vice, e a equipe que percorreu maiores distâncias na competição. Após, todo o já exposto, é necessário fazer uma reflexão sobre a logística da competição, tomemos a equipe do Sampaio Corrêa como exemplo:

A equipe fez uma partida de “ping pong”, indo e voltando de São Luís para disputar jogos no Sul. Aproveitar melhor longas viagens deveriam ser o foco da organização da competição, tornando-a menos desgastante para equipes mais distantes do centro da competição (Eixo Sul-Sudeste).

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Palmeiras, o melhor projeto!

Crédito imagem – Site oficial Palmeiras/Divulgação

O Palmeiras não é o melhor da América por acaso. O caminho até o gol de cabeça do atacante Breno Lopes contra o Santos foi arquitetado, planejado, colocado em ação, mensurado, reajustado para, enfim, ser coroado! O técnico Cuca e os jogadores santistas foram guerreiros, brilhantes e geniais. Mas a instituição Palmeiras merecia muito mais do que a gloriosa instituição santista. O futebol é apaixonante porque é imprevisível. Mas o bagunçado e endividado Alvinegro Praiano não merecia mais do que o organizado e bem gerido Palmeiras. 

Muito já se falou do processo de reconstrução do Verdão com o ex-presidente Paulo Nobre. Mais do que dinheiro, ele injetou modernidade, processos e profissionalismo no departamento de futebol palmeirense. O gerente Cícero Souza é peça fundamental em tudo isso. É ele quem emprega com uma maestria ímpar a transdisciplinaridade no clube. São inúmeros departamentos, como ciência do esporte, categoria de base, análise de desempenho, dentre outros, que tem que ‘se conversar’ para aumentar a performance da equipe dentro de campo. Não é trivial fazer o todo ser maior do que a soma das partes, ainda mais no instável futebol brasileiro.

O diretor Alexandre Mattos também foi muito importante nessa reconstrução, que tem como marco o não rebaixamento em 2014. Seria o terceiro em doze anos, o que representaria um duro golpe, em algo visto como fundamental, que era transparecer uma imagem de clube vencedor, que estava um tanto quanto esquecida. 

Com Mattos vieram títulos importantes como a Copa do Brasil e os dois Brasileiros, mas é com Anderson Barros e uma nova política que chega o título mais desejado de todo esse processo. A Libertadores 2020 consolida inúmeros profissionais das categorias de base do clube que lutaram arduamente durante anos contra uma cultura de não revelar. Jogadores reservas com salários altos foram desligados para que houvesse espaço para uma energizada e qualificada safra de jovens. O grande volume de contratações, justificados muitas vezes por ‘oportunidades de mercado’ foram trocados por reforços pontuais. E a cereja do bolo foi a chegada do técnico português Abel Ferreira que parece ser o elo final que toda essa estrutura precisava para finalmente transcender o trabalho diário em um legado muito maior do que ‘apenas’ troféus e sim, de fato, institucionalizar uma cultura.

Não pretendo aqui dizer que o Palmeiras é o clube mais bem gerido do planeta e que os seus profissionais estão ensinando o mundo como se faz futebol. Mas é muito importante valorizarmos o processo por trás de uma grande conquista. O sucesso é previsível e tem mais probabilidade de acontecer quando existe planejamento, foco e competência profissional no dia a dia.

*As opiniões dos nossos autores parceiros não refletem, necessariamente, a visão da Universidade do Futebol  

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Liderança: substantivo feminino

Cerca de três meses antes da coroação do pentacampeonato mundial que o Brasil conquistara ao derrotar a Alemanha em Yokohama (lá em 2002), uma semente de pensamento crítico aos bastidores do esporte era plantada a partir da Casa Branca nos EUA.

Condoleezza Rice, uma das figuras mais emblemáticas no governo de George W. Bush (à época ainda como conselheira de segurança nacional, passando a secretária de estado no segundo termo da mesma administração) e que também atuara na linha de frente pelo fim da Guerra Fria junto a George H.W. Bush – o pai – entre 1989 e 1991 (dialogando com os soviéticos no ápice da queda do Muro de Berlin), posicionou-se como uma visionária ao anunciar um sonho ainda distante, outrora destoado como mera ilusão, mas que despertara o potencial para futuras reformas no esporte.

Seu sonho era assumir a NFL como comissária da liga. Sim, tornar-se CEO do futebol da bola oval.

As duas primeiras décadas do século XXI se desenrolaram com as guerras do Afeganistão (ainda vigente) e do Iraque sob o radar de Condoleezza Rice, cuja descendência afro-americana ganhara tons de confiança, otimismo e esperança ao testemunhar Barack (e Michelle) Obama conduzir(em) a maior potência do livre mercado ao protagonismo empático, participativo e democrático. E mesmo com recentes obstáculos, o esforço pela manutenção de oxigênio diplomático finalmente voltou a respirar novos ares, agora respaldado por Kamala Harris como símbolo de continuidade na quebra de estereótipos no alto escalão.

Ao mesmo tempo, desde o pentacampeonato, uma das maiores nações do futebol global manteve-se ativa em quatro ciclos de Copa do Mundo (ou cinco, se já validarmos 2022), acreditando que uma nova taça pudera simbolizar sua métrica de sucesso frente a opinião pública. Embora importante, a qualidade da Seleção em um torneio de curto prazo (que acontece a cada quatro anos) difere (e muito) da qualidade do esporte praticado no país. Pois enquanto um elenco nacional tem o privilégio de atrair peças de vanguarda europeia, o desenvolvimento sistêmico da modalidade ainda depende de uma estrutura doméstica com mentalidade estratégica, orientação tática e valorização operacional. Aqui, isso seria um sonho ou ilusão?

É verdade que Condoleezza Rice não assumiu (até o momento) a tão sonhada liderança executiva do esporte que atrai os maiores índices de audiência e apelo comercial no planeta, apesar de receber incentivo midiático no território. Por outro lado, ela vivenciou (em 2016) a implementação de regras exigindo que a NFL passasse a entrevistar pelo menos uma mulher para cada um de seus cargos executivos, potencializando a presença feminina com taxas que se aproximam de 35% nos escritórios da liga nos últimos anos. Evolução de longo prazo é assim mesmo, gradual quando há consistência.

Aliás, 2021 marca o primeiro Super Bowl da história com uma árbitra dirigindo a final em campo. Para quem desconhece o esporte, 40 das 50 maiores audiências do século atual na TV americana são ocupadas por jogos da NFL (com números recentes acima de 100 milhões de espectadores acompanhando a final da liga somente nos EUA – Pressão de Copa do Mundo para a arbitragem!). Enquanto Sarah Thomas rompe paradigmas no futebol americano, Jeanie Buss (proprietária e presidente do Los Angeles Lakers) e Becky Hammon (auxiliar técnica de Gregg Popovich no San Antonio Spurs) representam a mudança de mentalidade no basquete masculino, cuja liderança enaltece a competência feminina dentro e fora das quadras na NBA (que já supera uma dezena de profissionais do gênero ocupando cargos técnicos na liga).

Expandindo os exemplos no cenário esportivo masculino, podemos transitar pelo beisebol, onde Kim Ng foi recém-apontada como gerente geral do Miami Marlins na MLB (a primeira mulher na função desde a criação do posto em 1927), pelo tênis, onde Zehra Mešić foi promovida a vice-presidente de finanças da ATP (acumulando experiências com orçamento e contabilidade no circuito masculino desde 2006), e até mesmo pelo rugby, onde Raelene Castle se destaca como referência de gestão na modalidade (CEO na Austrália entre 2017 a 2020). Quanto ao futebol europeu, Susan Whelan (CEO do Leicester City), Rebecca Caplehorn (diretora de operações de futebol no Tottenham) e Marina Granovskaia (diretora executiva de futebol no Chelsea) são apenas alguns nomes que, além de consolidarem a fortaleza estratégica feminina, inspiram gerações de novas entrantes no direcionamento do futebol masculino.

E já que mencionamos as profissionais da Premier League, migramos do âmbito esportivo ao acadêmico na Inglaterra, onde um estudo avaliou a administração pública no combate ao COVID-19 (com uma amostra de 194 países no início da pandemia), apresentando padrões de desempenho superiores em nações cuja liderança era feminina. Pesquisadoras da Austrália e dos EUA também investigaram o tema, convidando à reflexão. Ao diferenciar os territórios em que chefes de estado eram mulheres (ex.: Alemanha/Angela Merkel, Nova Zelândia/Jacinda Ardern, Taiwan/Tsai Ing-Wen), prioridades relacionadas à condição humana, à saúde pública e à redução de riscos evidenciaram a eficiência feminina na gestão de crises em um sistema político, auxiliando a segurança socioeconômica além do curto prazo.

“As mulheres pertencem a todos os locais onde decisões importantes estão sendo tomadas. Elas não deveriam ser a exceção.” – Ruth Bader Ginsburg

A liderança feminina frente a um ambiente historicamente masculino é, de fato, uma realidade.

Realidade que pode estimular uma nova cultura, muito além de um único clube ou de uma sexta estrela.

Imaginem o futebol brasileiro (masculino) comandado por figuras com maior orientação interpessoal no tratamento individual e no pensamento coletivo, aumentando a proatividade e conduzindo a cadeia de forma democrática, participativa e colaborativa. Qualidades identificadas na essência da liderança estratégica feminina, que certamente tendem a contribuir com a transformação necessária na gestão da modalidade no nosso país.

Um caminho pela mudança no controle das oscilações emocionais em clubes e federações, que ainda buscam provar posições de autoridade em relação aos seus pares.

Um caminho pela mudança na influência do desconhecimento técnico proliferado em conselhos deliberativos e presidenciais, especialmente nas reações impulsivas em casos de acúmulo de derrotas – quando o excesso de testosterona fecha os olhos ao racional.

E, sobretudo, um caminho pela mudança de comportamento na tomada de decisões, valorizando o torcedor – o dono real de cada clube – e fortalecendo iniciativas progressistas com incentivo à tecnologia, à ciência e ao desenvolvimento de capital humano no território brasileiro.

Confiem. Já estamos na terceira década do século XXI.