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Quando a torcida decide tudo em um clube

A pressa sempre existiu no futebol. O resultado sempre teve que vir “para ontem”. Mas de uns tempos para cá essa impaciência tem ganhado proporções gigantescas e nocivas para o desenvolvimento do jogo. Como pensar em qualidade e desenvolvimento de ideias se com três derrotas tudo já é mudado?!

Valeria uma densa observação antropológica sobre nossa sociedade, que hoje está mais farta de informação e que por isso, e também por tantos outros fatores, tende a querer tudo muito rápido, tudo pronto. Vou me ater ao futebol, mas entendendo que ele está inserido dentro de algo maior, que exerce uma grande influência. 

Futebol de alto nível dá trabalho. Não se faz da noite para o dia. A construção de conceitos de jogo é de uma complexidade absurda. Depende não só do treinador, mas também do ambiente, do contexto, do entendimento e da bagagem que cada jogador traz, da interação entre os atletas e de cada setor da equipe, se o salário está em dia, se a logística para jogos fora de casa é bem feita e outras centenas de fatores. E tudo isso pode demorar…

Frisando dentro desse cenário: não sou contra demitir treinador. Se há conhecimento para avaliar o trabalho e não há perspectiva de melhora a troca passa a ser natural. Mas o que vemos hoje não é bem isso. 

O torcedor atual cada vez mais afoito quer ver seu time jogando bem e convencendo. Sem lembrar que do outro lado tem um adversário com os mesmos objetivos. Esse mesmo torcedor, que em tempos pré-pandêmicos ia ao estádio, hoje tem no ambiente virtual sua plataforma preferida, e talvez única, de desabafar. E o dirigente sente esse desabafo de uma maneira mais direta e paradoxalmente mais real e não virtual do que uma vaia no estádio após o jogo . E se não há base sólida para uma avaliação criteriosa, trabalhos promissores são interrompidos com a famigerada expressão “dar uma resposta pra torcida”.

O futebol é o que é muito por conta da participação do torcedor. Ele é fundamental. É a grande essência de tudo. Mas torcedor torce e dirigente dirige. Quem manda no processo tem sempre que ouvir a torcida, mas nunca se basear apenas nela para tomar decisões. Até porque o foco do torcedor é ganhar o próximo jogo, curto prazo. E nada grandioso no futebol foi construído sem uma clara visão de futuro, pensando no longo prazo.

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Precisamos falar sobre interacionismo I – O modernismo de Taubaté

Crédito imagem: Lucas Figueiredo/CBF

‘Migalhas dormidas do teu pão,

raspas e restos, me interessam,

pequenas porções de ilusão,

mentiras sinceras me interessam’

Nas últimas conversas – o leitor e a leitora devem se recordar – falamos de conceitos que parecem mais convenientes ao meio acadêmico do que o chão de quadra ou campo, do tipo paradigma ou epistemologia. Termos, contudo, um tanto importantes para compreendermos os porquês, os comos e quandos de ações e intervenções tomadas na vida vivida e, por tabela, da associação entre método e didática que compõe o fazer pedagógico em treinamentos e jogos no esporte e no futebol.

Ressaltamos as diferenças entre as teorias do conhecimento inatista, empirista e interacionista e suas consequências práticas, sem perder de vista que, seres humanos complexos que somos, somos influenciados, em maior ou menor medida, por cada uma dessas correntes epistemológicas. Mesmo assim, o(a) professor(a)/treinador(a) não deve jamais se furtar perseguir mais fortemente uma delas para embasar seu fazer docente. Não existe prática, afinal, sem teoria. As teorias existem como ‘farol’ às práticas.

Tentamos deixar claro, também, o apreço ao interacionismo, teoria epistemológica descendida do paradigma emergente e que norteia abordagens didático-metodológicas voltada ao ensino, aprendizagem e treinamento esportivo – e ao futebol, mais especificamente. Modelos de ensino interacionistas tem ecoado com alguma força, pelas palavras de pedagogos e pedagogas no Brasil e no exterior, mesmo que distantes, evidentemente, da unanimidade (e Nelson Rodrigues respira, em algum lugar, aliviado). Se o tradicionalismo, no jogo e na vida, insiste em resistir à fórceps, sob batuta, às vezes, de gente grotesca, não são poucos e poucas os e as que sabem que as relações humanas e o ato de jogar ganharam novas conotações e não podem ficar presos ao passado. 

Toda essa estima por condutas interacionistas não pressupõe cegueira crítica. Enquanto pedagogos e pedagogas do esporte precisamos nos ater ao interacionismo educacional que vislumbramos e dizemos praticar. Existem várias ramificações dele, alicerçados por autores, linhas de pensamentos e, mesmo, intencionalidades que possuem diferenças significativas. Trocando em miúdos, tem muita coisa aí por que até parece, mas não é. Falando de futebol, tenho, de modo particular, notado certa confusão retórica: como se a confirmação de uma conduta interacionista não-tradicional passasse, necessariamente, pela aplicação rasa de termos como moderno, jogo, lúdico e, principalmente, aos pertencentes ao ‘tatiquês’ – e, então, enche-se a retórica de basculações, amplitudes, organização funcional, jogo posicional, entre tantos outros.

O interacionismo que defendemos é aquele que, sim, fundamenta o jogo, ou melhor, a Pedagogia do Jogo, dotada, por sua vez, de uma conceito-chave: intencionalidade. A natureza de uma prática pedagógica, em qualquer contexto e, principalmente, no futebol, é regida por intenções – e lá se vão quase três décadas que intelectuais do esporte, como o francês Claude Bayer e o português Júlio Manuel Garganta, para não citar o Prof. João Batista Freire, reverberam essa ideia.

Se tens a intenção de controlar e prever todas as condutas de seus ou suas atletas em campo ou quadro, trago notícias não tão boas, camarada. Interacionista não é aquele ou aquela que simplesmente baseia suas aulas e treinamentos a partir das matrizes de jogos, supostamente contextualizados. A não aplicação de sessões de atividades analíticas e o aposentar das filas indianas e dos cones marcadores podem representar nada mais que uma ingênua pseudo-fuga aos métodos tradicionais se a essência imprevisível, caótica, sistêmica e incontrolável do jogo não for contemplada. É, como a gente diz no interior paulista, comida requentada.

Boa intenção nem sempre é sinônimo de intenção adequada. O ato de condicionar comportamentos, ações e jogadas pré-estabelecidas – gatilhos estimuladores – a todo momento, ainda que pelo jogo, é clássica representação do behaviorismo ou comportamentalismo pedagógico. O jogo, que deveria ser fim, é meio para se praticar o comportamentalismo, abordagem derivada da psicologia positivista do início Século XX, essencialmente técnica e empirista. Trata-se de querer pintar uma parede com cor azul, utilizando tinta vermelha.

O comportamentalismo, de modo bastante objetivo, possui duas vertentes: uma tida como ‘metodológica’, atribuída ao estadunidense John Watson, e outra entendida como ‘radical’, fundada por Burrhus Frederic Skinner, já citado em conversas anteriores. Esta última dá o tom às práticas pedagógicas tecnicistas pela noção de condicionamento operante: estimulo uma ação desejável através de reforços negativos (punição) ou positivos (premiação). O bicho pós-vitória ou as intermináveis corridas ao redor do gramado dos(as) jogadores(as) atrasados(as) no treinamento são exemplos corriqueiros de posturas comportamentalistas, mas não nos apeguemos apenas a eles.

Condicionar a atuação de jogadores(as) de acordo com as zonas que ocupam no campo de jogo e impor a execução de um mesmo sistema de jogo, sem levar em consideração as especificidades dos contextos e circunstâncias enfrentadas, são ações que evidenciam uma perigosa armadilha a que, desconfio, não nos damos conta: é relativamente fácil nos tornarmos escravo(as) de padrões táticos imutáveis, de certo fetiche pela ordem e controle das condutas de quem joga (como se estivéssemos no Play Station) e vestirmos a carapuça de senhores do jogo e reproduzem, didática e metodologicamente, o tecnicismo behaviorista. Que também é refletido por aqueles ou aquelas que, à beira do campo ou da quadra, gritam, esperneiam, berram e narram o jogo aos(às) atletas, ditando, com detalhes, o que cada um deve fazer. E, que fique claro, não me refiro diretamente às cobranças, usualmente feitas com vocabulário não muito sereno e, sim, às instruções fechadas e impositivas. 

Não há nada de interacionismo nisso tudo. O que existe, no máximo, é uma maquiagem pedagógica que rebusca mais do mesmo: o neo-tecnicismo. Expõe, na verdade, o conflito do profissional que almejo ser, o dito ‘moderno’, que rompe paradigma, e o que, de fato, sou, contraditório, imperfeito e que leva consigo, sim, alguma bagagem do tradicionalismo pedagógico – internalizado depois de tantos anos de influência. Por essas e outras, (re)conhecermos nossas próprias epistemologias da prática é crucial porque elucida muitas de nossas crenças e concepções que interferem nos processos relacionais, de aprendizagem e ressignificação do conhecimento – qualquer conhecimento. 

O neo-tecnicismo passa, primeiro, pela cultura sebastianista e messiânica que ronda o cotidiano de treinadores(as) de futebol: acima do bem e do mal, validam heteronomia demais e autonomia de menos neste meio. Segundo, pelo profundo (des) conhecimento de instâncias conceituais do fenômeno jogo. Quando o Prof. Alcides Scaglia clama pela necessidade de que se devolva o jogo ao jogador, há um pedido implícito e urgente de que reconheçamos nossas limitações frente a ele e deixemos de tentar domar seu caráter anárquico. E que, fique claro, não extingue, em hipótese alguma, nossas responsabilidades em organizar e sistematizar processos de ensino, aprendizagem e treinamento, para alcançar determinado objetivo ou estrutura de jogo. 

Não tenho a intenção aqui de imputar juízo de valor às condutas tomadas como exemplos do comportamentalismo pedagógico. No altíssimo rendimento, treinadores(as), reféns do resultadismo tresloucado, das exigências absurdas de performance a curtíssimo prazo, de condições estruturais e financeiras pouco viáveis e do calendário de jogos irracional, optam por salvar a própria pele a partir do, supostamente, convencional. É legítimo, dado que os gatilhos proporcionados por esse tipo de abordagem são capazes de atender as necessidades imediatas do contexto. No fim das contas, funciona como um extintor, que até ajuda a apagar o incêndio em uma casa.

O problema é que o condomínio, o bairro e a cidade seguem todos em chamas.

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Sobre os ricos e os riscos de um futebol líquido

Crédito imagem – Reprodução

Causou bastante alvoroço quando, no último domingo, doze dos auto-intitulados grandes clubes da Europa anunciaram a criação de uma Super Liga, com participantes fixos (portanto, sem acesso nem rebaixamento), a ser iniciada tão breve quanto possível. A criação dessa nova liga significa, por exemplo, o automático desligamento desses clubes da UEFA Champions League. Tenho certeza de que vocês leram muitas coisas sobre isso desde então, de um modo que eu não preciso entrar em muito mais detalhes de um ponto de vista informativo.

O que de fato gostaria de fazer é pensar com vocês em que medida nós, profissionais do futebol, podemos lidar com as mudanças de hoje e com as mudanças que se avizinham. Embora não seja exatamente uma novidade, é importante considerarmos que a tendência, nos próximos anos, é que os profissionais do futebol tenhamos cada vez menos voz. Posso estar errado, mas imagino que isso acontecerá a partir da premissa contrária, ou seja, os espaços de reflexão e de fala de atletas, treinadores, gestores e etc podem até aumentar (muito pelas novas formas de comunicação que haverá nos próximos anos), mas essa será apenas uma forma de maquiar que a real tomada de decisão levará cada vez menos em conta o bem-estar do jogo e dos seus profissionais: o mais provável é que sejamos cada vez mais um meio a partir do qual investimentos são aplicados e recuperados. Os vínculos humanos, por exemplo, são cada vez mais um problemas. Em outras palavras, trata-se de um claro processo de desumanização.

Quando penso nessas coisas, não deixo de considerar a grande influência que recebi, ainda nos meus primeiros anos de formação, do sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Bauman é um sujeito que me foi importante enquanto eu ainda engatinhava numa tentativa de saber mais do que apenas futebol. Foi por ele que pude pensar, por exemplo, sobre esse caráter líquido da modernidade, que se caracteriza por um tempo em que nada é feito para durar muito. Não é preciso irmos muito longe para perceber como isso pode se refletir no jogo jogado: nossos vínculos profissionais são bem mais efêmeros do que já foram (e o mercado de treinadores ilustra isso bem), a meia-vida estratégica das nossas equipes parece cada vez mais curta (porque a circulação das informações pela internet faz com que os padrões das nossas equipes sejam ainda mais identificáveis) e mesmo a nossa própria formação está sempre sob ameaça, de um modo que estamos constantemente nos pressionando para saber cada vez mais (porque os saberes que sabemos nunca são suficientes). E é claro que o mesmo se sucede com as relações humanas, que também não são feitas para durar. Embora sejamos conhecidos de muita gente pelas redes sociais, não estamos necessariamente mais próximos uns dos outros. Na verdade, a impressão é que as relações não apenas estão se fragilizando, como estão se tornando empecilhos, de um modo que lidar com o outro, especialmente aquele que nos incomoda (como incomoda, por exemplo, a existência dos clubes pequenos), é uma tarefa da qual fugimos cada vez mais.

Sobre essa dificuldade na lida com o outro, Bauman escreve o seguinte, no seu clássico livro Amor Líquido:

“O advento da proximidade virtual torna as conexões humanas simultaneamente mais frequentes e mais banais, mais intensas e mais breves. As conexões tendem a ser demasiadamente breves e banais para poderem condensar-se em laços. Centradas no negócio à mão, estão protegidas da possibilidade de extrapolar e engajar os parceiros além do tempo e do tópico da mensagem digitada e lida – ao contrário daquilo que os relacionamentos humanos, notoriamente difusos e vorazes, são conhecidos por perpetrar. Os contatos também exigem menos tempo e menos esforço para serem estabelecidos, e também para serem rompidos. A distância não é obstáculo para se entrar em contato – mas entrar em contato não é obstáculo para se permanecer à parte. Os espasmos da proximidade virtual terminam, idealmente, sem sobras nem sedimentos permanentes. Ela pode ser encerrada, real e metaforicamente, sem nada mais que o apertar de um botão.”

Não deixa de ser um exemplo muito simbólico sobre o que se passa nessa conversa da Super Liga. Quando pegamos a entrevista de um Florentino Pérez, por exemplo, cuja noção de solidariedade parece que passa por considerar a compra de atletas para clubes médios e pequenos, fica bastante claro que a criação de uma outra liga é como o mero apertar de um botão, um movimento destituído de compromissos sociais mais amplos, e obviamente muito mais preocupado com interesses particulares. Florentino fala do novo brinquedo como um adolescente falaria da nova namoradinha virtual – sem qualquer preocupação com os sentimentos da anterior. Quando vemos a postura dos clubes alemães, desde a divulgação da notícia, que em uníssono dizem não à nova liga, parece que temos uma conversa diferente. É claro que não seremos ingênuos de achar que a postura dos alemães é apenas e tão somente solidária, mas também não podemos ignorar que eles parecem considerar outras variáveis que não apenas a flutuação das ações na bolsa.

Mas reparem que todos esses movimentos, dos quais estamos falando, não estão à parte, mas na base do jogo jogado. Não é por um acaso que normalizamos a busca desenfreada pela intensidade, que o tempo-espaço do portador da bola parece cada vez menor, não é por acaso que a posição foi se dissolvendo no sentido da função, não é por acaso que os sistemas táticos, que por muito tempo foram vistos como sinônimos de tática, hoje são apenas números de telefone – e logo serão ainda menos. Quando escrevi, no início de 2020, sobre isso que se chama de futebol moderno, defendi que ele passa por pelo menos duas características básicas. A primeira, que não é bem o nosso ponto aqui, é um jogo de palavras – o futebol moderno tem uma novilíngua, que se apresenta menos como alternativa do que como obrigação. Mas a segunda característica, essa sim mais relacionada com o que estamos falando, tem a ver com uma nítida dissolução de fronteiras: o que o futebol moderno escancara é o sumiço das margens que separavam, por exemplo uma posição da outra, uma função da outra, que separavam defesa, ataque e transições, que separavam os saberes de cada membro da comissão, enfim… as fronteiras que deixavam mais claro o lugar de uma coisa e de outra no jogo jogado foram se dissolvendo – da mesma forma como se dissolveram as fronteiras do mundo nessa revolução tecnológica que vivemos hoje em dia.

De modo que não será uma surpresa se o futebol do futuro se tornar um tipo de futebol em que o sólido vai se desmanchando ainda mais em favor do líquido – talvez do vapor. O que, evidentemente, também nos exige uma resposta. E que pode ser – considerando que as megaligas serão privilégio de poucos – tanto passiva quanto subversiva.

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A importância da avaliação inicial para o planejamento no futebol de formação

A Avaliação Inicial é a fase mais embrionária da temporada. Este momento tem especial importância no momento do início de um novo trabalho, e quando um grupo recebe novos elementos, quer venham de outra categoria ou de outro clube. Principalmente quando tratamos de categorias de base, onde ainda existem grandes diferenças de nível de jogo entre os jogadores e também grandes alterações do ponto de vista maturacional.

A Avaliação Inicial tem como principal objetivo compreender o que os jogadores conseguem executar e o seu entendimento do jogo.

Neste momento da temporada, o mais recomendado são tarefas e exercícios com menor complexidade, onde o foco está em evidenciar aspectos individuais de relação com a bola e comportamentos do jogo de forma mais isolada, além de realizar “jogos livres/formal” de acordo com a quantidade de alunos disponíveis. Este é também um momento em que, em maior proporção em relação ao que acontece na maior parte da temporada, o que se procura são sinais dos jogadores para o treinador, em detrimento de grandes instruções do treinador para os jogadores.


Como referido anteriormente, este é um momento em que o treinador observa o que os jogadores já sabem fazer, não é propriamente um momento aquisitivo (ainda que inevitavelmente os jogadores poderão evoluir). Como tal, quem tem de nos dar informações são os jogadores.

Observamos a realização dos exercícios, vamos orientando, mas se constatamos uma sucessão de erros com a mesma origem e o erro persiste mesmo depois da intervenção, isto é um alerta.

Está ali identificada uma falha que é preciso trabalhar. Depois de reunir todas essas informações, temos vários pontos de partida para começar a delinear o planejamento segundo as necessidades dos jogadores.

O treinador não deveria instruir os jogadores sem saber as suas carências/necessidades assim como um médico não pode medicar um paciente sem saber do que este sofre, primeiro o médico tem de proceder a alguns exames iniciais para, depois de ter toda essa informação reunida, prescrever a medicação necessária para o seu tratamento.

E você, como inicia os trabalhos com um novo jogador/time?

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A regulamentação dos e-sports no Brasil

Com o estrondoso sucesso dos esportes eletrônicos, surgiu neste setor um vasto mercado a ser explorado e, com essa onda, trouxe à tona a necessidade de regulamentação do mercado de apostas esportivas online.

Com o avanço da internet e a constante evolução da tecnologia virtual na criação de novos games, passaram a ser cada vez mais interativos e competitivos e, com isso surgiu a modalidade eSports (modalidade esportiva virtual). As pessoas que antes jogavam sozinhas em suas casas, ou em grupos (no mesmo console), agora podem jogar conectados à internet – online, interagindo e competindo com jogadores de todo o mundo.

Eles contam com um espetáculo que ultrapassa os campeonatos oficiais e estende-se para plataformas de vídeo e streaming, em que é possível ver jogos casuais entre jogadores – ou pro-players – famosos, receber dicas e interagir com personalidades icônicas do cenário, cativando cada vez mais aficionados pelo esporte. No Brasil o cenário não é diferente, inclusive, nos últimos anos, clubes desportivos como Cruzeiro, Flamengo, Corinthians e Santos investiram em seus próprios times de eSports.

No cenário nacional há uma grande promoção em apostas esportivas, sendo impulsionado por personalidades para divulgar os sites de aposta por meio de tráfego pago (tráfego pago se refere aos visitantes que chegam até um site, loja ou página por meio de anúncios publicitários em plataformas específicas) e de referência (resume basicamente o que um link faz ao levar uma pessoa de um site para outro), para que haja um maior engajamento e disseminação da informação.

Diante deste cenário, considerando que no Brasil os jogos de azar e locais que promovam – bingos ou cassinos – são terminantemente proibidos, esta coluna tem por objetivo desmistificar as apostas esportivas no cenário dos eSports e seu atual arcabouço regulatório. Para isso, torna-se necessário apresentarmos um breve conceito histórico sobre os jogos de azar.

No Brasil os jogos de azar são proibidos por força do decreto-lei 9.215/46, bem como na Lei das Contravenções Penais (Decreto-lei 3.688/41), que aduz sobre exploração de jogos de azar em lugar público ou acessível ao público.

Conforme dispõe o artigo retromencionado, consideram-se jogos de azar: (I) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte; (II) as apostas sobre corridas de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas e (III) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva.

O decreto teve como fundamentação o fato de que os jogos de azar eram nocivos à moral e aos bons costumes e, consequentemente, todas as casas de jogos operavam no Brasil foram fechadas. Apesar de tal proibição ser da década de 1940, é importante notar que a lei continua vigente e, consequentemente, jogos de azar continuam proibidos no Brasil. Dessa forma, é questionável como tantas personalidades icônicas, estão jogando, apostando, inclusive algumas vezes fazendo transmissões ao vivo via plataforma streaming (Twitch) vez que tal prática enquadra a uma contravenção.

A resposta ao questionamento anterior é simples, vez que o fato de a aposta ser realizada no ambiente virtual, ou seja, por meio da internet, é o fator-chave permissivo aos usuários e apostadores, por não estarem locados em território brasileiro.

Nesse contexto, é possível dividirmos as apostas em três modalidades, quais sejam: (I) apostas legais, como a loteria controlada pela Caixa Econômica Federal e as corridas de cavalo organizadas em hipódromos autorizados; (II) apostas ilegais, como as conduzidas em cassinos e (III) uma modalidade de apostas que se encontra em um vácuo legislativo, visto que não há uma regulamentação clara, sendo essas as apostas esportivas feitas em ambiente virtual.

A falta de clareza da legislação brasileira permanece e nos conduz a uma brecha interpretativa de que incorre na contravenção o local, físico ou virtual, que promova apostas no território brasileiro. Desta maneira, o que se pode perceber é que caso o site estiver hospedado em um servidor no exterior, o apostador não estaria incorrendo em crime algum. Vale dizer que o Direito Penal brasileiro se adota, via de regra, o princípio da territorialidade, segundo o qual aplica-se a lei brasileira ao crime cometido em território nacional. Há exceções, mas que não se encaixam ao presente caso.

A conclusão a que se chega é de que se o indivíduo está apostando em um site com servidor sediado em um país estrangeiro onde apostas são legalizadas, ele não estaria incorrendo em contravenção penal – a atividade seria análoga à do brasileiro que viaja para Las Vegas e utiliza seu cartão de crédito para apostar nos cassinos da região. Desse modo, embora os jogos de azar sejam ilegais no Brasil, tal proibição não se aplica ao brasileiro que, pela internet, aposta em um site estrangeiro sediado em um país onde a aposta é legalizada.

Após uma breve análise do atual cenário regulatório das apostas no Brasil, resta claro que este deve sofrer modificações, a fim de tornar a legislação sobre apostas mais adequada à época em que vivemos, principalmente considerando a explosão que teve o mercado de apostas esportivas e de jogos virtuais no Brasil.

Enquanto não há regulação, os sites estrangeiros continuam dominando o mercado das apostas esportivas no Brasil e, consequentemente, captando recursos de apostadores brasileiros que poderiam ter destinos como, a seguridade social, o FNSP, as entidades e unidades executoras de escolas públicas, entre outros, previstos no artigo 30 da lei 13.756 – que trata sobre a destinação do produto da arrecadação da loteria -, caso a loteria de apostas fosse brasileira e regulamentada nos moldes do que prevê o supramencionado artigo 29.

É inegável que quanto mais o Governo Brasileiro prorroga a regulamentação das apostas esportivas no Brasil, maior é o ganho que ele deixa de ter. Os dados apontam que as apostas esportivas online movimentam bilhões de dólares por ano, sendo esse valor totalmente remetido ao exterior. Embora o Governo Brasileiro cobre Imposto de Renda dos apostadores sobre os rendimentos obtidos com apostas online no exterior, tal valor é ínfimo perto dos benefícios que poderiam ser obtidos caso as apostas acontecessem aqui no Brasil – ainda mais se considerarmos não apenas os impostos que incidiriam sobre as empresas de aposta, mas também a geração de empregos e todo o valor que deveria ser revertido para a sociedade como produto da arrecadação da loteria.

Diante do exposto, conclui-se que a efetiva regulamentação das apostas no Brasil, considerando o atual contexto, é mais do que necessária e deve ser realizada o quanto antes. É pertinente observar que as apostas esportivas só aumentaram nos últimos anos e, enquanto não há sua regulação, os sites estrangeiros consolidam-se no mercado nacional. E no tocante ao cenário esportivo, a criação de equipes de eSport pelos Clubes Desportivos torna-se mais uma maneira de divulgação da marca do Clube nacionalmente e internacional. Deve ser vista como uma estratégia de visibilidade, podendo angariar novos torcedores, investidores e patrocinadores, principalmente no cenário atual onde toda e qualquer receita adicional poderá impulsionar os clubes a novos patamares.

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O menino e a bola

“Bola na trave não altera o placar, bola na área sem ninguém pra cabecear, bola na rede para fazer o gol, quem não sonhou em ser um jogador de futebol?”. Este é o refrão da música “Uma partida de futebol”, composta por Nando Reis e Samuel Rosa e imortalizada pela banda mineira de pop rock Skank. 

Pois bem, no país latino americano chamado Brasil, colonizado a partir de  1500 por europeus vindos de Portugal, ao longo do tempo construiu sua própria cultura e história em meio a tantas diversidades e adversidades, tendo nesse período contribuições de diferentes etnias e culturas de várias partes do globo terrestre, dentre elas, a de um homem que ficará marcado para a eternidade, pois, retornando da Inglaterra, onde permaneceu por aproximadamente dez anos até a conclusão de seus estudos,  desembarcou em São Paulo no final do século XIX, trazendo consigo duas bolas, um par de chuteiras e um livro de regras de um novo jogo chamado futebol. Seu nome? Charles William Miller, ou simplesmente, Charles Miller.

Desde então, esse esporte foi ganhando espaço em todas as camadas sociais, chegando ao ponto em que, quase como uma regra, quando nasce uma criança aqui no Brasil, se ela for do sexo masculino, um de seus primeiros presentes será uma bola e uma roupa estampada com o símbolo de um futuro time do “coração”. Nesse meio tempo, a criança, desde pequena, vai interagindo e tentando dominar esse brinquedo, e por muitas vezes acaba sendo dominada por ele, o que só aumenta o seu encanto por esse objeto.

Não diferente, eu também fui um menino que foi arrebatado pelos encantos desse objeto chamado bola. Quando ainda pequeno, por volta dos 5 anos, lembro de ter ganhado uma de presente dos meus pais e, desde então, nossa relação foi constante e permanece até hoje. No início, brincava sozinho e não queria dividir ela com ninguém. Certo tempo depois, comecei a ter que compartilhá-la para poder brincar com os amigos da vizinhança. 

Nessa época, brincávamos onde podia e “não podia”. Ainda me lembro dos gritos de minha mãe dizendo: “Aí não é lugar de jogar bola! Vai quebrar as flores do meu quintal e sujar as roupas que estão limpas no meu varal.” Continuava esbravejando: “Esses meninos não têm jeito!”. Mas a rua era o nosso lugar predileto, porém, com o crescimento urbano e o aumento de veículos no trânsito, esse lugar teve que ser transferido. Assim, com a ajuda de alguns pais e moradores (adultos e crianças), um campinho de terra foi construído em um terreno baldio que ficava em frente à minha casa. Foi então que, no prazo de uma semana, um mutirão garantiu o novo espaço para jogar.

O interessante de se contar é que nesse espaço jogavam homens, crianças e até mulheres. Digo isso porque, em nossa sociedade, esse lugar é tido como um ambiente quase que exclusivo para o sexo masculino, mas em nosso campo não, elas tinham espaço, mesmo que alguns na vizinhança dissessem que lá não era lugar de mulher. 

O tempo foi passando e chegou o momento de ir para a escola. No primeiro ano esse novo ambiente não era muito diferente daquilo que tinha vivido até ali, pois no antigo “prezinho”, as brincadeiras ocupavam o maior tempo da rotina escolar. No entanto, a partir do ano seguinte as coisas começaram a mudar e o espaço das brincadeiras foi perdendo lugar para as coisas “sérias”. O tempo que as crianças permaneciam sentadas e imóveis na suas carteiras já era maior do que o que elas tinham para se movimentar, extravasar etc., pois tinham que dar conta das intermináveis tarefas, inclusive as lições de casa.

Foi assim que o menino peralta, com tanta energia fora da escola correndo atrás de uma bola ou na hora do recreio, parecia ser outra criança, a ponto de a professora chamar os seus pais e recomendar que o levasse ao médico, pois seu comportamento era de uma criança apática, e tudo indicava que poderia ser uma anemia. 

Minha mãe, seguindo tal recomendação me levou ao médico e fez todos os exames necessários, mas clinicamente, não havia nada de errado, e ela se pôs a perguntar: “Como pode um menino, que nas horas em que está em casa não para um minuto sequer, e na escola não tem a mesma energia?”. Ainda me recordo de ter escutado as conversas de minha mãe com meu pai sobre as queixas da professora a meu respeito, em que ele dizia que o melhor a fazer era me tirar da escola, pois quando eu ficasse maior, se assim eu desejasse, voltaria aos estudos. Porém, minha mãe dizia que lugar de criança é na escola e não iria fazer isso. 

            Foi nesse contexto que me formei na educação básica, embora não tenha tido nenhuma reprovação. O que fazia era memorizar e esquecer os conteúdos logo depois das provas, que, para mim, pouco tinham sentido. Tanto é que, quando concluí o Ensino Médio não queria saber de continuar os estudos. Logo consegui meu primeiro emprego em uma indústria têxtil no período noturno como ajudante de maquinista. 

Nesse período, pude refletir o quanto é difícil a vida de um operário, uma vez que as condições de trabalho não são as melhores, entre elas, baixa remuneração, periculosidade (ruídos, altas temperaturas, poluição etc.); não tendo uma perspectiva de carreira. Foi então que, conversando com os amigos do futebol de várzea, comecei a pensar em outras atividades que valorizassem melhor o trabalhador. Nesse momento, investi em um curso profissionalizante de solda e desenho mecânico para concorrer a uma vaga, em meu município, de soldador em uma empresa metalúrgica multinacional, pois esses mesmos amigos me disseram que poderiam me ajudar a conquistar esse emprego, o que de fato ocorreu.

            Embora, nesta empresa, as condições de trabalho fossem um pouco melhores em relação à indústria têxtil, logo percebi que também não haveria muitas perspectivas de crescimento pessoal e profissional. Foi em meio a essas reflexões que me pus a perguntar o que realmente eu gostava de fazer, chegando à conclusão de que a bola e o esporte sempre estiveram presentes na minha vida e, assim, deveria cursar Educação Física.

            Foi por esse motivo que conheci a obra “Educação de Corpo Inteiro”, do professor João Batista Freire e, desde então, me interessei por pesquisar mais sobre seus temas, dentre eles,  a “Pedagogia da Rua”, expressão que o autor utilizou como uma metáfora no livro Pedagogia do Futebol, em que  se discute o modo de ensino desse jogo, trazendo a ideia de que a “rua” tem seu próprio modo de ensinar em nosso país, o qual deveria ser investigada para se tornar, de fato, uma pedagogia, isto é, uma ciência que tem como objeto de estudo os processos de ensino e aprendizagem.

            Nesse sentido, acredito que também fui educado pela “Pedagogia da Rua”, a qual reconheço que teve e tem um valor muito grande na pessoa que sou. Aprendi, por exemplo, a conviver com as diferenças, resolver os conflitos em que nos envolvíamos, e a ser responsável pelos meus atos, a vivenciar valores de justiça e injustiça, ou seja, nesse espaço pude ser o protagonista da minha própria história, o que na escola, como um mero receptor de informações, era praticamente impossível.  

Acredito que as coisas que aprendi na “rua” foram além dos conteúdos formais da escola, oportunizando ensinamentos para toda a vida. Assim, para que essa pedagogia possa se tornar realidade, e um dia estar presente nas escolas brasileiras, faz-se necessário refletir e conhecer de modo mais aprofundado o fazer pedagógico que há nesse ambiente.

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É possível uma poética do tempo-espaço no futebol?

Vocês sabem que um dos motivos por que o jogo de futebol é apaixonante está precisamente na sua pluralidade. O jogo de futebol não é uno – é múltiplo, são vários. Se vocês preferirem uma linguagem mais científica (que não deixa de ser poética), podemos emprestar as palavras do professor Jorge Olímpio Bento, para quem o desporto, onde o futebol está incluído, tem um caráter polimórfico e polissêmico, ou seja: assume formas e sentidos muito diversos, que portanto talvez dependam de outras variáveis que não apenas a objetividade.

Vejam o caso do tempo e do espaço, por exemplo. Uma das coisas que nos afligem quando pensamos o tempo e o espaço no jogo de futebol é que eles residem numa certa dimensão de abstração: embora a gente saiba mais ou menos do que se trata, nós não sabemos ao certo como dizê-lo. Na impossibilidade de defini-los, vamos fazendo deles mais palpáveis. Por exemplo, ainda que digamos que pequenas mutilações que fazemos do jogo de futebol acontecem por razões puramente didáticas (algo como mutilações do bem), elas continuam sendo feitas, e não deixam de ter uma expressão importante exatamente na separação entre tempo e espaço. Quando escrevo tempo-espaço no título deste texto, escrevo não apenas porque é bonito, mas porque talvez seja uma das formas de pensá-los a partir de uma poética, não apenas de uma metódica. Estão, ao mesmo tempo, juntos e separados por um hífen – de um modo que seja possível pensá-los em conjunto, um pensamento meio que siamês, sem desconsiderar as particularidades de cada um.

Este me parece um ponto precisamente importante porque a poética de qualquer coisa – e do tempo-espaço no futebol não seria diferente – reside precisamente na ambiguidade. O que é uma metáfora ou uma hipérbole, na própria linguagem, se não um alargamento do tempo e do espaço que moram no pé da letra? Nós vivemos um momento, que não é específico do futebol mas se reflete na gente, em que confiamos cegamente nos supostos avanços do que chamamos de ciência, ou do que chamamos de tecnologia (acho que as duas palavras, via de regra, são mal aplicada), mas acho que é menos uma expressão de confiança do que da fé, é quase que uma religião, são novos ídolos, de uma forma que não apenas não somos capazes de exercer continuamente a própria falseabilidade característica da ciência – ou seja, a capacidade de refutação consistente de uma teoria, para prová-la cientifica – como também, e especialmente, estamos perdendo de vista tudo aquilo que não se considera como ciência. No caso do tempo-espaço, temos diversas mensuráveis de controle do espaço percorrido, das intensidades a partir das quais o espaço é percorrido, do estresse fisiológico causado por um certo espaço percorrido em uma certa intensidade, temos milhões de mensuráveis objetivas – mas isso não significa que elas possam dar conta de todo o nosso pensamento e de toda a nossa prática. A objetividade almeja um certo grau de universalidade, mas a subjetividade, a quem se atribui um caráter menor, perigoso, impreciso e subversivo, é capaz de explorar um outro caminho, que faz da nossa experiência única, irrepetível – e é a partir da exploração mais poética da subjetividade que podemos, a meu ver, não apenas dar à ciência parte do que lhe falta, como dar à universalidade os graus de pluralidade, de que falávamos no começo do texto. A poética do tempo-espaço não deixa de ser uma busca pela particularidade, pela originalidade, não apenas pela cópia.

Reparem, por exemplo, que o tempo-espaço no jogo de futebol está fatalmente vinculado à noção de tática. A noção de tática, por sua vez, está vinculada à uma contribuição científica muito importante: ocupação e/ou gestão individual, grupal e coletiva dos espaços de jogo. Mas aqui, me permitam fazer dois deslocamentos. O primeiro é mais óbvio: se acabamos de argumentar em favor do tempo-espaço, então a tática seria não apenas uma ocupação/gestão do espaço, mas uma ocupação/gestão do tempo-espaço. Depois, acho particularmente interessante o peso da palavra gestão: a gestão do tempo-espaço presume uma certa administração do tempo-espaço, uma certa manipulação, a partir de uma postura eventualmente planejada, deliberada, calculada e controlada – de um modo que o tempo-espaço do jogo de futebol seria dependente dass habilidades de quem o controla, seja o jogador que joga ou – especialmente hoje em dia – os treinadores e treinadoras que treinam, uma vez que estamos cada vez mais crentes, embora não se assuma isso explicitamente, de que o jogo de futebol existe para atender às nossas vontades, aos nossos saberes e, especialmente, às nossas ideias. Não me parece uma visão de todo acurada. Sobre isso, aliás, publiquei um longo texto na última semana.

Uma poética do tempo-espaço no jogo de futebol é possível, a meu ver, se estivermos dispostos a relativizar nossas capacidades de controle. Ou, se vocês preferirem, se entendermos que o tempo-espaço de jogo não está abaixo, mas acima das nossas vontades. Um dos motivos está no caráter autotélico do jogo, no fato de que o jogo, inclusive como elemento que antecede a cultura, é um fim nele mesmo. O que podemos fazer, de fato, são apostas: apostas em projetos de jogo mais curtos ou mais longos, em projetos de jogo mais posicionais ou mais móveis, em projetos de jogo mais ativos ou mais passivos (inclusive no sentido clássico de passividade – aquele que se deixa levar pelas paixões), de um modo que talvez uma poética do tempo-espaço de jogo seja menos uma gestão e mais uma relação com o tempo-espaço: não depende apenas das deliberações ativas de um ou mais sujeitos, mas depende da qualidade individual/grupal/coletiva das relações que fazemos com o tempo-espaço, reconhecendo que eles não se apresentam como serviçais das nossas vontades, mas se apresentam como querem se apresentar, de acordo com a imprevisibilidade do conflito de forças presente no jogo – de um modo que nos desafia, continuamente, a oferecer respostas mais refinadas ao jogo, de um ponto de vista que não é apenas tático, nem técnico, nem físico, nem mental – mas humano, na sua inteireza.

Por isso, gostaria de insistir na ideia da ambiguidade, de que falávamos acima. Temos uma noção bem clara de que mais tempo-espaço para a tomada de decisão são variáveis positivas. Mas vejam bem, sabendo que o tempo-espaço são finitos (pelas próprias demarcações espaciais e cronológicas do jogo), portanto não é que precisemos sempre de mais tempo-espaço, precisamos nos relacionar com o tempo-espaço disponível de um ponto de vista contextual. Se atraio um adversário com uma condução para propositalmente fixá-lo no meu setor e libertar um espaço às suas costas, estou ao mesmo tempo diminuindo e aumentando o tempo-espaço: diminuo para mim, enquanto portador da bola, mas aumento para um potencial homem livre, ou mesmo para um terceiro homem. Entendem o que quero dizer? Não é que precisemos sempre de mais tempo-espaço, é que à busca por mais tempo-espaço se sucedem buscas por menos tempo-espaço, porque a relação com o tempo-espaço de jogo não é apenas uniforme, linear e objetiva, mas ambígua, incerta, contraditória, particular, singular e sim, é subjetiva. O que um Neymar é capaz de fazer, como fez ontem contra o Bayern de Munique, é um tipo de propriedade que só ele tem, de um modo que qualquer modelo de jogo, por mais cientificamente planejado que seja, não pode desconsiderar que o tempo-espaço de um Neymar é outro, é múltiplo, enxerga o que muitos dos outros não veem e, por isso, subverte a própria relação com o jogo. Não por acaso, uma poética do tempo-espaço também é uma subversão, uma certa violência (simbólica), uma relação atípica, mas incomum, única, particular, irrepetível, capaz fazer do tempo-espaço, no singular, tempos-espaços, no plural. E aqui abrimos um outro mundo. 

Sobre o qual conversamos em breve.

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O olhar do desenvolvimento humano para as categorias de base

Crédito imagem: Thais Magalhães/CBF

Quando falamos de “base”, podemos começar fazendo um trocadilho: qual base os clubes fornecem para estas categorias?

Antes de tudo, vamos entender seu real significado segundo o dicionário:

BASE – substantivo feminino

1.parte inferior de alguma coisa, considerada como seu suporte

2. Construção

m.q ALICERCE (‘maciço de alvenaria’)

Precisamos aprender a olhar para a base como alicerce na construção do cidadão. Fala-se muito em jogador, craque, competitividade, nível técnico, talento, clubes, negociação e tanto outros termos tão conhecidos no mundo fascinante do futebol. Fala-se tanto sem falar de “alguém”, sem olhar para aquele indivíduo, aquele menino ou aquela menina, que muitas vezes, por conta da idade, não tem estrutura, uma base interna emocional e intelectual para tantas cobranças, tantos termos que não o traduz. Espera-se muito retorno sem dar suporte. Se continuarmos assim, arrisco dizer que nossas categorias de base poderão se transformar em uma “fábrica de seres humanos frustrados”. Precisamos olhar com mais responsabilidade social, emocional e intelectual para esse cenário. E, só assim, conseguiremos virar esse jogo e fazer das categorias de base um suporte para o desenvolvimento humano e até, quem sabe, uma “fábrica de realização de sonhos” para futuros adultos.   

Vamos lá, vou agora contextualizar os aspectos do desenvolvimento.

Um dos motivos do desenvolvimento humano ser tão complexo é que as mudanças ocorrem em muitos aspectos diferentes do eu. Para simplificar, podemos falar separadamente sobre o desenvolvimento físico, cognitivo e psicossocial em cada período da vida, mas na verdade, tais aspectos estão entrelaçados. Cada um deles afeta os outros.

As mudanças no corpo, no cérebro, na capacidade sensorial e nas habilidades motoras são todas partes do desenvolvimento físico. As mudanças na capacidade mental – tais como aprendizagem, memória, raciocínio, pensamento e linguagem – constituem o desenvolvimento cognitivo. O crescimento da memória de uma criança, por exemplo, contribui para a experiência emocional da ansiedade de separação: quando a criança começa a ser capaz de se lembrar do passado e projetar o futuro, seu desenvolvimento emocional é afetado.

O autoconhecimento desenvolve-se continuamente a partir da infância. O crescimento cognitivo que ocorre durante a terceira infância (dos 6 aos 12 anos) permite aos jovens desenvolver conceitos mais realistas e mais complexos de si mesmos e de sua capacidade de sobreviver e ter êxito em sua cultura. A autoestima desenvolve-se à medida que as crianças começam ver a si mesmas como integrantes valiosos na sociedade.

Segundo Diane E. Papalia, autora do conhecido livro “Desenvolvimento Humano”, podemos categorizar, dos 6 aos 12 anos de idade, o período da Terceira Infância; e dos 12 aos 20 anos de idade, o período da Adolescência. Dessa forma, entende-se que, quando falamos de categorias de base ou formação, estamos literalmente falando de um indivíduo em sua formação integral humana.

Ir à escola, ficar longe dos pais, lutar para conquistar seu espaço no grupo de amigos, frustrar-se com tarefas, sentir-se aceito e outras experiências “comuns” às faixas etárias que me refiro já fazem um grande “estrago” na evolução cognitiva, mental e emocional se não forem bem elaboradas e direcionadas. Agora, imagina só quando falamos em realidades como morar fora de casa, não ter a escola como seu principal ambiente de amadurecimento psicossocial, quando a necessidade de se sentir aceito não é apenas por “um grupo de amigos”, mas sim por uma torcida inteira apaixonada pelo time. E vamos além: muitas vezes, o que se escuta é que “serve ou não serve” aquele “produto” para o time. São muitos valores humanos negligenciados e regendo a vida de um adolescente.

E então, o que acontece muitas vezes é que o “dar certo” ou o “não dar certo” vai para a conta do comportamento do (a) atleta, como se todo esse cenário citado não influenciasse diretamente em suas competências comportamentais (a disciplina, o comprometimento, a tomada de decisão, o trabalho sob pressão etc.). Acaba se tornando mais conveniente para os tomadores de decisão sobre o futuro do atleta falar que “a personalidade de fulano é que é difícil de lidar.”

Outro ponto importante, que vamos mais uma vez recorrer a Papalia:

Personalidade é a maneira peculiar e relativamente consistente de uma pessoa sentir, reagir e se comportar.  Que pode ser alterada e moldada a partir do desenvolvimento social, sendo a referência principal a partir das relações com os outros e o ambiente no qual o indivíduo está inserido.

Após toda essa resenha sobre um pequeno fragmento do desenvolvimento humano (que é infinitamente mais complexo), fica claro que se focarmos em estruturar uma base sólida de desenvolvimento integral do cidadão, que considera desenvolver o ser humano em suas dimensões intelectual, física, emocional e social/cultural, estaremos mais seguros de que o atleta estará muito bem acolhido pelo sujeito. E, assim, assertivamente conseguirá atingir melhores resultados em todas as áreas da sua vida.

Porém, se o foco permanecer nos resultados, estaremos “atropelando” e “rejeitando” um ser humano que não é ainda “conhecedor de si”, e sim “apenas” dono de um talento, que pode ser por ele mesmo perdido.

Ser reconhecido, carregar títulos, conquistar contratos milionários deve ser visto como consequência de um indivíduo bem estruturado internamente e em constante evolução. O resultado, quando vem da consistência diária de bons hábitos e bons valores, torna-se um propósito de vida que vai muito além de ganhar ou perder.

Aí sim, caminharemos com as categorias de base!

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O peso do contexto no futebol

Crédito imagem: Lucas Figueiredo/CBF

A flexibilidade é uma das principais características que um treinador deve desenvolver para ser bem sucedido no futebol. Adaptabilidade é fundamental no alto rendimento. Claro que há ideias e conceitos de jogo que são inegociáveis. O próprio perfil de liderança e gestão de grupo também deve ter uma ideia macro. Porém se o sucesso mora nos detalhes – e de fato mora – há particularidades que devem ser específicas e circunstanciais para cada trabalho desenvolvido.

O contexto de cada clube traz implicações diretas na atuação do treinador na criação de uma forma de jogar. E o primeiro ponto de tudo é entender primeiramente as características dos jogadores que se tem. Os atletas condicionam as ideias, nunca o contrário. E claro que a qualidade do grupo está muito atrelada à gestão, finanças, análise de desempenho, dentre outras coisas que são do clube. Nunca é só um elemento. É sempre sistêmico.

Esse próprio cenário vai determinar se a equipe tem condições de título ou se luta apenas para se manter na divisão. E sabemos que isso mexe diretamente com a parte mental dos jogadores. Fica muito mais difícil, por exemplo, ter coragem nas ações com a bola quando se está sempre na corda bamba. Diante disso, a condução do grupo por parte do treinador também deve ser estritamente circunstancial. E se estou falando tanto de contexto, as relações com o ambiente também devem ser singulares. A maneira de lidar com cada diretoria, torcida e imprensa é diferente e única em todo lugar do mundo.

O melhor técnico de hoje não é o que tem mais conhecimentos técnicos, táticos e metodológicos. Nem o que já teve no passado, excelente liderança e habilidades de comunicação. Mas sim o que entra em ‘estado presente’ no aqui e no agora e que com isso consegue rapidamente perceber tudo ao seu redor e agir com eficácia. A soma e a correlação das habilidades e conhecimentos prévios é o que vai garantir a performance de hoje. O técnico é contratado pelo que fez ontem, mas conseguirá resultados se conseguir se moldar ao que o hoje pede.

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Como o jornalismo pode contribuir com o futebol?

Crédito imagem – Rafael Ribeiro/CBF

Foi ao ar ontem a edição 50 de nosso FutTalks, no qual tivemos o privilégio de bater um papo com o jornalista Juca Kfouri, que falou, entre outros assuntos, sobre a gestão e o futuro do futebol brasileiro e a importante função do jornalismo como promotor do desenvolvimento do esporte no Brasil e no mundo. É sobre essa relação, do jornalismo com o futebol que iremos tratar nessa coluna. 

Juca tem em sua biografia profissional a publicação da denúncia sobre a “máfia da loteria esportiva” na revista Placar, em 1982, um esquema organizado com o objetivo de fabricar resultados que envolveu árbitros, jogadores, dirigentes e, inclusive, jornalistas.

Esta e outras passagens de sua carreira credenciam Juca a defender a investigação jornalística como essencial para o exercício da profissão, que deve ser pautada pela publicação de conteúdo que aborda questões de interesse público, definição subjetiva por excelência, mas que de qualquer maneira demanda um alto investimento de tempo e recursos, como foi no caso da reportagem sobre a “máfia da loteria esportiva” que demandou mais de um ano de trabalho para ser publicada.

A bola levantada por Juca nos traz ao grande dilema do jornalismo,  que é o de encontrar uma forma de financiar uma atividade que, quando é fiel à sua essência geralmente é bastante “anti-comercial”. Quem paga a conta de um ano de investigação sobre a “máfia das loterias”?

Nesse ponto Juca destacou a relação atual entre as empresas de comunicação, emissoras e outras plataformas, e seus fornecedores, as ligas, federações e confederações, como parceiros comerciais, questionando como a equipe de jornalismo de uma emissora que concorre de tempos em tempos pelo direito de transmitir determinado campeonato, vai investir com constância na produção de reportagens que tragam conteúdo potencialmente negativo sobre seu parceiro. Como solução para esse dilema, o jornalista cita a estrutura existente no mercado americano, na qual as emissoras dividem os profissionais de produção de conteúdo em dois departamentos, o de jornalismo e o de eventos. Enquanto aqueles responsáveis pela cobertura do evento o fazem com a devida e merecida pompa, o departamento de jornalismo trabalha nas pautas que julga ser de interesse público relacionadas ao esporte e, em alguns casos, do próprio evento em questão, de maneira independente.

Pensando no contexto do Brasil atual, vivemos uma catástrofe que impacta não o futebol, mas a todos nós, em muitos casos pessoalmente e que não pode, de maneira nenhuma ser ignorada pelo jornalismo. Como nos encontramos em um momento de descolamento da realidade, vale colocar alguns dados em perspectiva. No dia 6 de abril, o Brasil contabilizou 4195 mortes por Covid-19, reforçando, em um dia. Número absurdo, inaceitável, e, repetindo, diário, que supera em muito outras tragédias que deixaram marcas profundas em nossa história, como o rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho, ou o incêndio na boate Kiss, este último que vitimou 242 pessoas em 2013. Temos tido nos últimos dias mais de 16 “boates Kiss”a cada 24 horas vitimadas pela Covid!

Teria a atuação jornalística independência para investigar e se posicionar sobre tal contexto levando em consideração que quem decide em qual conteúdo investir, as emissoras, está dependentemente relacionado à cadeia produtiva do futebol, as ligas, federações, confederações e a seus próprios patrocinadores? A pergunta aqui não é retórica, mas feita para promover a reflexão levantada por Juca Kfouri.

É a partir dessa reflexão que puxamos uma outra, que só pode ter como origem a atuação profissional que tem como prioridade o interesse público, ou, no caso, com o impacto social e econômico do futebol em nosso país. Quais são os atores mais afetados pela paralisação das atividades do futebol? Assim como acontece em toda a sociedade, são aqueles que não tem reservas suficientes para parar por 3, 6, 12 meses, sob pena de morrer de fome, ou no caso de CNPJ’s – associações sem fins lucrativos ou empresas – fecharem as portas. Não à toa, quanto mais descemos na pirâmide do futebol masculino, mais aumenta o percentual de jogadores que defendem a necessidade de continuar jogando, segundo pesquisa promovida pela Federação Nacional dos Atletas Profissionais de Futebol – FENAPAF, divulgada em maio de 2020.

É ponto pacífico para os especialistas em saúde pública de que passou da hora de um esforço coletivo de grandes proporções por parte de toda a sociedade para frear o número de contaminações e as consequentes internações e mortes evitáveis pela Covid-19. Mais uma vez, mais de 4 mil pessoas por dia morrem no Brasil por conta da doença, 4 mil! Só é possível frear as contaminações com o distanciamento social, esse, por sua vez, viabilizado com condições mínimas de sobrevivência para todos os brasileiros, principalmente os mais vulneráveis, grupo no qual estão incluídos os jogadores, jogadoras e outros profissionais do futebol que se encontram já há algum tempo sem renda.

No ano passado a CBF liberou um pacote de resgate às equipes que disputam as Séries C e D, com valores equivalentes à média de duas folhas salariais dos atletas de cada competição. O mesmo apoio foi disponibilizado dado aos clubes das Séries A1 e A2 do Campeonato Brasileiro Feminino, segundo a própria entidade.

Hoje, com a pandemia atingindo diariamente o seu pior nível no país, a CBF consegue repetir a implementação de um pacote semelhante? É possível costurar algum apoio do tipo com patrocinadores? As emissoras poderiam ajudar de alguma forma? E o poder público, como poderia atuar?

E os clubes fora desse raio de apoio? Aqueles que não disputam competições nacionais?

Segundo números de 2019 da própria CBF, existem 742 clubes profissionais no Brasil. 120 participaram das competições nacionais masculinas nas séries A, B, C e D em 2020, ou seja, mais de 600 não foram contemplados por esse colchão de proteção. Quantos profissionais desses clubes se encontraram sem renda desde o início da pandemia? Como isso tem impactado as economias locais das cidades sede desses clubes? A pandemia talvez esteja “servindo” para escancarar de vez a divisão entre quem realmente vive do futebol e quem apenas se agarra a um sonho para sobreviver. O futebol dos pequenos clubes no Brasil seria então, inevitavelmente inviável?

Todos as reflexões acima, dependem de um jornalismo forte para ganharem espaço no debate público, para isso é fundamental pensar maneiras de financia-lo, ou ao menos estrutura-lo como no exemplo dos Estados Unidos levantado por Juca Kfouri, de forma a permitir tanta independência quanto possível. Talvez esteja aí um caminho para que o jornalismo contribua de maneira mais significativa para o desenvolvimento do futebol brasileiro.