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Do silêncio da bola às urnas em cólera

Sócrates, entre dois argentinos: que jogador diria hoje que se transferiu de clube para ler Gramsci no idioma original? (Divulgação: Trivela)

 
Ainda era outro dia, quando uma rara espécie da imprensa nacional lançou um debate que poderia, em condições normais, ser até tido como brincadeira, mas era sério. Disse ele, claramente, que política e futebol não se misturam. No esporte, manifestações políticas seriam mera perfumaria, distração para corpos cuja preocupação única deveria ser a performance. Aqueles que ultrapassam a fronteira seriam meros ‘causadores de problemas’. Deveriam, portanto, ser escanteados.
Se a memória não falha, houve muitas críticas ao nosso colega – dentro e fora do esporte. Me parece que agora, às vésperas do mais tenso processo eleitoral das últimas décadas, retomar este debate é quase uma obrigação, sob efeito da sua mais profunda importância. Não pretendo aqui me alongar sobre os motivos que fazem do futebol político – político é tudo o que se passa na polis-, mas gostaria, particularmente, de refletir sobre algumas das ideias que se escondem neste discurso. Vejamos.
A nós, profissionais do esporte, sempre foram imputados os mais diversos predicados – vários deles pejorativos até a raiz. Trabalhar com esporte significa aceitar, a contragosto, uma espécie de marca, uma tatuagem irreparável, geralmente atribuída de fora para dentro. Que marca é essa? É a marca de uma suposta ignorância, de uma suposta inferioridade dada no profissional do esporte na hierarquia das disciplinas. Marca essa que parece herdeira da separação (em nada cartesiana, diga-se) entre mente e corpo. Aos olhos deles, o profissional do esporte seria, simplesmente, um mero refém das atividades do corpo, da educação do físico, de modo que a elas deveríamos nos resignar. Enquanto isso, nossos nobres colegas, das mais diversas áreas, teriam sido presenteados (por uma força divina?) com o talento para as atividades da mente, e para a nobreza estética e social dela derivadas, o que lhes colocaria em uma espécie de panteão. Ou seja, temos aqui um discurso determinista: os profissionais do esporte fomos determinados, marcados (como um gado) a trabalhar com o corpo, enquanto aos outros, pretensiosamente, foi dada a primazia da razão. Nós não precisaríamos pensar: eles pensariam por nós. Basta que aceitemos as decisões de um grupo de notáveis– como alguém propôs outro dia.
Nós sabemos muito bem sobre os elevados perigos do empréstimo do nosso pensamento. Mas, em linhas gerais, todo este panorama nos imputa uma consequência imediata: o silêncio. Em todas as suas vertentes. O problema é que ouvir o silêncio requer absoluta atenção. Repare bem como o silêncio, à sua forma, desliza pelas mais diversas camadas do esporte. No futebol, não seria diferente: árbitros não dão entrevistas. Não estão autorizados a falar. Para além dos apitos inicial e final, é como se simplesmente não existissem. Treinadores e treinadoras, por sua vez, dão inúmeras entrevistas (até demais), mas sabem perfeitamente o que não deve e, especialmente, o que deve ser silenciado. Há coisas perigosas demais a se dizer. Mesmo nossos colegas jornalistas, para quem a liberdade é tida como tão nobre, sabem muito bem o que não pode ser dito. Quando se diz, o silêncio é imposto. Ou seja, além de não nos ser seriamente dado, desde o primeiro instante, o direito ao debate, ainda estamos sob efeito constante da censura alheia. Por isso, silenciamos. Repare bem o ninho em que estamos colocados.
Assim, não me admira que estejamos, como dizia Bernardo de Claraval, sob uma luta de duas espadas: uma do silêncio, outra do desdém. O profissional do esporte, no seu mais legítimo direito ao debate, ou parece não ser levado a sério, ou sequer se manifesta, como se já estivéssemos sob efeito da resignação de que falamos acima, como se estivéssemos profundamente anestesiados. Não me admira, portanto, que soe uma obscenidade quando recorremos à nossa veia política. Ainda que vários dos nossos colegas não demonstrem qualquer interesse neste debate (o que é gravíssimo, pois é assim que se constitui a exploração), há vários de nós que se dedicam, como deve ser, a real compreensão da situação convulsionante que aflige o país e que nos leva, a cada dia, a dançar uma valsa à beira do abismo. Nestes casos, repare que a censura não ocorre apenas pela posição política, mas porque o debate parte do esporte (mesmo fenômeno que se sucede, aliás, com os artistas, cada vez mais censurados em razão dos delírios dirigidos à Lei Rouanet). Imagine você o que seria de Laia Palau – capitã e maior referência da seleção espanhola de basquete – se fosse ela brasileira e revelasse, como fez na última semana ao El País, seu ‘perfil comunista’. Qual seria o nível das reações? Quantos de nós, supostos baluartes do bem, não seríamos absolutamente violentos por uma pura discordância ideológica?
Silenciado pelos outros e por nós mesmos, não me admira que o esporte (e o futebol) tenha acumulado tamanha repressão, que se manifesta na nossa vivência diária, nos nossos treinos, no nosso modelo de jogo, ou em um período tão sensível, como é o eleitoral. Não me admira que aceitemos, por exemplo, soluções simplórias para problemas de tamanha gravidade como os que se criam aqui. Da mesma forma como não resolvemos as contradições das nossas equipes a partir de frases feitas – não por acaso, temos sido tão aliados dos paradigmas sistêmicos/complexos e etc -, por que os mesmos devaneios, que não servem para o futebol servem, serviriam para solucionar os conflitos um país tão elaborado, tão profundamente desigual como o Brasil?
Neste exato instante, é preciso traçar uma linha e dizer que, daqui em diante, não mais. Não mais emprestamos nosso pensamento, pois não estamos à venda. Não nos silenciamos, porque não somos instrumentos da dominação alheia. Não nos damos, em hipótese alguma, o direito à intolerância, ao engano, ao flerte com o fascismo, à negação paranoica dos fatos, às mais absurdas fake news, pois em nada disso reside a natureza solidária do esporte e as soluções que realmente desejamos como sociedade, mas só podem ser um retrato flagrado por quem se vale das agruras de um povo tão sofrido para atender aos interesses alheios. Sob uma feição tão bela, surge uma grande miragem, um engano que desloca nosso legítimo protesto não para uma voz de real mudança, mas para um simples patrocínio da selvageria e da barbárie, que nos explora sob os panos e, não bastasse isso, que ainda nos faz comprar, cegamente, este discurso.
E, ao fim, voltamos ao lugar de onde partimos. Em silêncio.
Até quando?

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Manifestações políticas e o marketing no esporte

São vários os atletas de destaque no futebol do Brasil que se posicionaram em torno dos seus candidatos favoritos dos mais diversos cargos eletivos para o sufrágio do próximo domingo. Uns mais escancarados, outros mais comedidos, mas manifestam-se. Delicada situação, uma vez que pode não refletir o posicionamento do clube para o qual trabalham, e acabar por interferir na imagem percebida que a instituição persegue. Em certos casos, podem colocar a torcida – ou parte dela – contra (ou a favor) e interferir em algo que é sagrado: “o vestiário”, ou seja, mexer com as relações de trabalho entre os colegas de profissão.
Em primeiro lugar o futebolista possui opinião e, em muitos casos, é formador dela. Antes disso, cidadão com direitos e deveres. É natural que existam preferências, encadeadas por diversos fatores. Outrora desincentivada, por motivos históricos de coerção e repressão, atualmente tergiversar diante das provocações que desafiam o país (pobreza, desemprego, violência e corrupção) pode representar falta de compromisso. Omissão. A sociedade confere tanto valor e significância aos atletas de destaque que, hoje em dia – também não mais como antes -, cobram algo de volta. E não há nada de errado em ter estas opiniões.
Afinal de contas, de acordo com o artigo número 5 da Carta Magna da República, é livre a manifestação do pensamento.

Elenco do SC Corinthians Paulista no início dos anos 80 incentivando a participação nas eleições (Reprodução: Instagram)

Nesse sentido, cabe ao clube que emprega o atleta elaborar comunicação interna acerca de manifestações políticas, a fim de preservar o relacionamento entre colegas de trabalho. Tudo isso para que não se perca o foco do objetivo comum da organização, que são resultados esportivos e financeiros. De modo algum desincentivar a manifestação, mas ao publicá-la, que seja provida de bom senso. Vivemos em ambiente repleto de intolerância e mal entendimento. Qualquer ruído na comunicação pode ter uma ruim consequência. Ao mesmo tempo, sempre houve um desalento quanto à participação da sociedade brasileira em um processo eleitoral, como rescaldo dos tempos do regime de exceção. Entretanto hoje estamos em uma democracia, este processo está ao alcance de todos, portanto, todos têm responsabilidade nele. A participação deve ser sadia para gerar inquietações saudáveis.

Na Espanha, mesmo com uma orientação regional que o Athletic Bilbao possui, é incomum observar seus atletas fazerem manifestações pró-independência do País Basco. No FC Barcelona em relação à Catalunha, alguns (poucos) fazem manifestação similar, mas não chegam a ser radicais, mesmo o catalonismo sendo política institucional do clube. Por outro lado, o Sankt Pauli da Alemanha é conhecido pela tolerância religiosa, sexual e de inclusão de minorias étnicas. Mesmo assim, quando seus funcionários tornam públicas as suas declarações, é feito com bastante bom senso.

Atletas do SC Corinthians Paulista com faixa em referência à Democracia, no início dos anos 80 (Foto: Antônio Lúcio/Agência Estado)

Portanto, é preciso se manifestar. Ao mesmo tempo, perceber que há uma multidão que pensa diferente de você. O bom exercício destas manifestações se dá a partir do respeito à opinião do próximo e do outro em relação à sua. O debate destas ideias, com tolerância, a fim de atingir propósitos comuns, dentro de um plano comum para toda a sociedade, rumo à justiça social, é capaz de transformar este país.

 

Em tempo: boa eleição a todos!

Em tempo 2: nesta semana faz ‘aniversário’ o “Massacre do Carandiru”, um dos episódios mais vergonhosos do nosso país. 

 

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Choque de realidade

O Campeonato Brasileiro de 2018 é um dos mais emocionantes da história. A 11 rodadas do término, há apenas quatro pontos entre o Palmeiras, que assumiu no último domingo (30/09) a liderança do certame, e o Flamengo, quarto colocado. No entanto, não é a competitividade o assunto na principal competição do esporte mais popular do país. O que chama mais atenção na atual temporada é que ela tem sido um retrato fiel (e fielmente preocupante) de algumas questões fundamentais sobre o atual momento do futebol no país.
A recente mudança no comando técnico do Palmeiras, que trocou Roger Machado por Luiz Felipe Scolari, foi uma senha para o time alviverde abraçar o jogo reativo, o que ganhou ainda mais força com o uso de formações alternativas no Campeonato Brasileiro. Os paulistas preservam titulares na principal competição do país, apostam em um repertório pobre – o que é reforçado pela ausência de seus grandes nomes – e vencem. Cria-se então um ciclo reforçado pelos resultados.
Internacional e São Paulo, outros times de jogo reativo e que usam passes longos para quebrar linhas, completam o pódio atual do Campeonato Brasileiro. E o Flamengo, dono de um dos maiores orçamentos do país, viveu durante grande parte da temporada um conflito justamente pela personalidade de seu jogo. O potencial financeiro carrega consigo uma pressão por ser propositivo e dominante, coisas que os rubro-negros não têm conseguido de forma linear.
O Campeonato Brasileiro – e isso não é de hoje – é uma competição de quem não quer a bola. O Corinthians campeão de 2017 já havia sido um grande exemplo de time com repertório pobre, caracterizado pelo jogo reativo e pela falta de domínio de suas partidas.
Há ainda o elemento Grêmio. Campeão da Libertadores em 2017, o time gaúcho notabilizou-se por uma clara definição de prioridades. Sempre que houve sobreposição de calendário ou dificuldade para administrar o elenco, o técnico Renato Gaúcho tirou titulares do Campeonato Brasileiro.
A principal competição do futebol nacional, portanto, é um evento em que os principais times têm outras prioridades, o calendário é canibalizado pela própria organizadora (a CBF tira sobrepõe partidas da seleção e do Brasileiro, afinal) e não há qualquer discussão sobre o modelo de jogo vigente. Mais do que isso, rodada após rodada, o assunto no país do futebol segue sendo a extensa coleção de erros dos árbitros e auxiliares.
Existe uma crise de ideias no futebol brasileiro, e um reflexo disso é a participação que os jogadores nascidos no país têm em outros ambientes. Na Liga dos Campeões da Uefa, por exemplo, a maior parte dos representantes dos pentacampeões mundiais atua em posições lineares. O contingente em funções de criatividade é exponencialmente menor.
Isso ficou claro nas semifinais da Copa do Brasil, por exemplo. Assistir aos jogos entre Palmeiras e Cruzeiro e Corinthians e Flamengo horas depois de partidas da Liga dos Campeões é suficiente para mostrar como o futebol no Brasil é mais lento e menos propositivo, o que acaba refletindo também na formação de atletas.
O futebol brasileiro precisa de discussões que aprofundem temas. Precisa de debates que não se limitem à participação dos árbitros ou ao clubismo. Precisa de um olhar que seja verdadeiramente interessado e que considere o choque de realidade promovido pela comparação com o que acontece na Europa.
A questão é: quem tem interesse nisso?
 

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Entre a FIFA e o Mercado

Bem-vindos ao nosso Entre o Direito e o Esporte” dessa semana! A coluna de hoje fecha o nosso mês sobre o que a gente acha “Entre o Direito e o Mercado” quando a gente pensa no futebol que a gente vê na televisão, ouve no rádio, ou assiste pela internet.
Esse mês nós demos uma olhada no que a gente encontra “Entre o Clube e o Mercado”, ou seja, aquela história do “jogador-pizza” e os tais dos “direitos econômicos” do atleta. Esse mês a gente também conversou sobre aquilo que está “Entre o Jogador e o Mercado”, em outras palavras, a ideia de “influência de terceiros” (TPI) quando a gente fala sobre o contrato do seu time com aquele jogador.
Hoje nós vamos fechar o mês dando uma olhada no que a gente acha entre a FIFA e o mercado. Hoje nós vamos conversar sobre a ideia de “TPO” (third-party ownership), que é quando um terceiro (que não o seu clube) ganha “alguma coisa” na transferência do jogador do seu time para outro. Hoje nós vamos dar uma olhada no artigo 18tre do Regulamento sobre o registro e transferência de jogadores da FIFA (RSTP) – e que está sob revisão (novidades logo mais!).
Para deixar tudo mais direto, esse é o mapa de hoje: vamos começar dando uma olhada no que é esse mercado, ou seja um resuminho rápido do que a gente viu esse mês; depois vamos ver em que pé esse mercado está hoje quando a gente coloca a FIFA no jogo; e daí fechamos o mês conversando sobre a “poeira debaixo do tapete” para pensar no nosso amanhã.
Bora?
O “bazar do futebol” é a janela de registro do verão europeu. Sabe quando os clubes daqui têm aquele receio de perder aquele jogador? Então, bem aí! Nesse período o futebol movimenta muito dinheiro ao redor do mundo, e esse dinheiro (geralmente) vem de uma “quebra de contrato” – como a gente já viu. E é como um bazar de emprego… tem gente que vai de um emprego para outro de graça, agora alguns poucos valem tanto que saem a peso de ouro!
Aqui é bom lembrar que as transferências internacionais são feitas pelo ITMS da FIFA, e os valores dessas transferências são registrados ali nesse programa online. Depois de cada “janela de registro” a FIFA/TMS lança um report (boletim) com os dados de movimentação do mercado internacional da bola. O mais recente (pós setembro/18) traz que o “mercado da bola” movimentou mais de USD 2 bilhões nas 5 “maiores” ligas europeias (Inglaterra, França, Alemanha, Itália e Espanha) em um total de 503 transferências onerosas ($) entre 01 de junho e 01 de setembro desse ano.
Tá, e o que eu quero dizer com isso? Essa transferência é a “ruptura antecipada” do contrato de trabalho (CEDT) do seu clube com aquele jogador – que nem a gente viu na segunda coluna desse mês. Esse “fim de partida” (como diz meu grande amigo Jean Nicolau) antes do tempo se dá pelo pagamento de um valor (“multa contratual” que no Brasil é a cláusula indenizatória desportiva hoje em dia) ou por um “mútuo acordo” (que é quando os clubes negociam o valor da transferência dos direitos federativos do atleta, e é o que mais acontece na prática).
Lembra que a gente deu uma olhada em como isso se junta com aquela história do “endividamento dos clubes” e a “necessidade de caixa” (de curto prazo) no nosso Brasil e que isso refletia na “mercantilização” dessa “cláusula contratual”? Pois é, aqueles tais dos “direitos econômicos” que vem dos “direitos federativos” eram (ou são) repassados para terceiros em troca de um “alívio de caixa”.
Isso, no fundo, é um investimento desse terceiro em um ativo (intangível?) do seu clube (aka, o potencial valor de um atleta em uma transferência futura). É aquela história que a gente já viu da soja e da dívida do banco, sabe? O “investidor” não é dono do jogador, mas é do valor da transferência.
Resumindo: mercado de transferência movimenta muito dinheiro. Os contratos entre clubes e jogadores costumam ser “rompidos” para uma transferência, o que faz esse dinheiro girar. Clubes (brasileiros) têm desafios financeiros e precisam de maneiras para conseguir caixa de curto prazo. “Investidores” aproveitam a oportunidade “mercantilizando” os “direitos federativos” e transformando em realidade os tais dos “direitos econômicos” sob o contrato daquele jogador de futebol com o seu time.
E a gente já viu que a FIFA não gosta muito disso… e com razão quando a gente pensa no excesso. Agora, desde 01 de maio de 2016 nenhum clube ou jogador pode entrar em acordo com qualquer terceiro pelo qual esse possa receber algum direito referente aos “direitos econômicos” de um atleta. E isso inclui casos de transferências onerosas de um clube para outro (definitiva ou temporária) ou qualquer outra compensação (como mecanismo de solidariedade, indenização por formação e “taxa de vitrine”).
É isso que fala o artigo 18tre do RSTP/FIFA que aparece por aqui no seu equivalente da CBF, o RNRTAF. Lá fala que terceiro é qualquer um que não seja o clube da onde sai o atleta, o clube para onde vai o atleta, ou qualquer outro clube pelo qual o atleta tenha jogado. E lembra que a FIFA (ou a CBF) pode punir (medidas disciplinares) quem descumprir essas regras.
Em outras palavras, a FIFA disse um “não-não” para os tais dos “direitos econômicos” – que nem ketchup na pizza para os italianos, ou abacaxi na pizza para os italianos, ou qualquer coisa na pizza para os italianos (mas, vai… frango com catupiry é bom. Né não?). Esse “não” da FIFA foi replicado pelas Federações Nacionais do futebol (como a CBF) pelo mundo. Esse “não” da FIFA “proíbe” (como uma lei até, mesmo que do futebol) o repasse dos direitos derivados da transferência dos direitos federativos de um atleta profissional de futebol a terceiros (“TPO”). Esse “não” da FIFA “varreu para debaixo do tapete” um mercado que ainda existe dentro das “exceções legais” e o “jeitinho do futebol”.
Agora… toda regra geral é a verdade mais pura? Não. A única regra geral é que toda regra geral é… geral. Então casos específicos podem ser a sua exceção na prática. Lembra que os italianos não gostam de nada em pizza inclusive pizza na pizza? Então… peixe pode. Cultura é cultura e cada um tem a sua, agora que essa é uma bela exceção da regra… é! E aqui a gente tem logo 3 das boas: a “taxa de vitrine”, o “regulamento sobre o trabalho com intermediários da FIFA” (RWI/FIFA), e as recentes decisões da Câmara de Resolução de Disputas da FIFA (DRC/FIFA).
Window shopping. Aqui a regra geral é fácil (e até cruel pela comparação): se você quer vender um produto, o melhor jeito é arranjar uma boa vitrine (como as mídias sociais hoje em dia). No futebol isso é quase dia a dia. Quando um clube “menor” tem uma possível estrela e sabe que pode receber a “bolada” para manter o elenco na próxima temporada, era (é) comum que emprestasse para um clube “maior” pelo qual o atleta tivesse uma maior “visibilidade” (leia-se: olheiros de fora vissem o jogador em ação). O Clube que recebia o jogador (a “vitrine”) ficava com uma fatia de uma futura transferência do atleta e isso ficou conhecido como “taxa de vitrine”.
O agente que agencia e o intermediário que interm… deixa para lá. O RWI/FIFA traz parâmetros sobre o pagamento feito pelo serviço do intermediário – quando representa um atleta e quando representa um clube. Em tese, o intermediário não pode continuar a ter o direito de receber valores em uma nova transferência na qual ele não trabalhe diretamente. Ou seja, não pode ficar com parte dos “direitos econômicos” do contrato do atleta. Mas… na prática é como discutir se um tomate é uma “fruta” ou um “fruto”, o gosto é o mesmo. Se o intermediário trabalha na transferência, a história pode ser outra já que pode receber uma porcentagem do valor da operação e… bom. Aí já foi. Mas vale lembrar que aqui a gente está falando sobre os intermediários registrados no “sistema FIFA”, ou seja, no nosso caso aqueles que têm registro na CBF – que, aliás, tem o seu RWI que se chama RNI ou Regulamento Nacional de Intermediários.
A exceção da exceção que é a nova regra geral – ou o “trava línguas” da FIFA. Em 26 de junho de 2018 o Comitê Disciplinar da FIFA decidiu que atletas não são considerados terceiros na definição do artigo 18tre do RSTP/FIFA e que podem receber parcela do valor da transferência de seus “direitos federativos” para outra equipe. Em outras palavras, podem ter “direitos econômicos” sobre si mesmos. É tipo dançar quadrilha, sabe? “Olha a chuva… é mentira”, só que “Não pode direitos econômicos… brincadeira”. Brincadeira de lado, essas 4 decisões ainda não estão disponíveis. Então ainda não tem como saber o limite dessa nova flexibilização. Contudo… fica a pergunta: “como se controla o que o jogador vai fazer com o que é dele?”. E… bom, essa é uma resposta que eu não tenho.
Essas 3 exceções são só alguns exemplos entre tantos outros – como o “clube empresa”, o “licenciamento da operação de futebol” de um clube para um terceiro, e o “clube-ponte” (que hoje não é tão fácil quanto um dia foi). Essa recente flexibilização nada mais é do que a “poeira não cabendo mais debaixo do tapete” já que a causa não foi tratada junto da consequência com uma estruturação de uma solução via o licenciamento (que agora temos por aqui, mesmo que não 100%) e a ideia de fair play financeiro (que ainda não temos por aqui… ainda).
Assim, quando a FIFA foca em uma das consequências é natural que essa solução seja só temporária. Afinal, a causa varia de realidade local para realidade local e o “Senado do futebol” (os Comitês FIFA) faz a regra para o mundo todo, né?
Aqui é só lembrar da semana passada. A ideia de “TPI”, ou a “influência de terceiros” no contrato de trabalho do seu time com aquele jogador. Sabe? A proibição do “TPO” foi nada além do resultado da ineficiência da proibição da “TPI” pela FIFA.
De novo, aqui o desafio não eram os tais dos “direitos econômicos” em si. E, sim, as consequências do “mal uso” desse jeito de gerar investimento (dinheiro) no futebol – como a gente viu ao longo desse mês por aqui.
Com isso, essa “recente” flexibilização é um reconhecimento do óbvio… “a realidade está lá fora” sempre.

Fonte: Amazon

 
E o amanhã? Bom, como a realidade está lá fora, a FIFA vai tentar adaptar (mais uma vez) seus regulamentos ao mercado e criar uma possível “nova era” de transferências. Essa proposta ainda não está disponível ao público, mas já se sabe que vai alterar tanto o atual “sistema de intermediação” como o de transferências. Ou seja… vai mudar a p* toda!
Entre o futebol e o mercado a gente vê a relação entre clube e atleta. Essa relação passa entre vários terceiros, inclusive a FIFA. E assim o futebol fica entre a FIFA e o mercado. O artigo 18 do Regulamento sobre registro e transferência de atletas da FIFA é o fruto dessa realidade do futebol como negócio. Uma realidade que passa pela “janela de registro” na nossa linha do tempo. Uma realidade que deixa o futebol mais perto do direito. E uma realidade que aparece no nosso dia a dia de torcedor.
É isso, hoje a nossa conversa foi longa e fico por aqui! Desejo a todos vocês um ótimo final de semana! Convido a ficarem comigo no “Entre o Direito e o Esporte” para o nosso mês de outubro. Semana que vem vamos começar uma nova conversa sobre doping. Feito? Deixo meu convite para falarem comigo por aqui, pelo meu LinkedIn ou pelo meu Twitter. Obrigado e até semana que vem!
 

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São Paulo e Internacional pararam de evoluir. Quais as razões?

Se antes colocávamos apenas São Paulo e Inter como favoritos ao título brasileiro hoje devemos considerar outras equipes na busca pelo troféu. Palmeiras, Flamengo e Grêmio têm chances não só matemáticas, como também técnicas, táticas, físicas e emocionais de conquistar o Brasileirão. Desses cinco postulantes, vejo o Palmeiras em um momento mais positivo de crescimento. Só que, mais do que isso, penso que São Paulo e Internacional estão caindo, piorando, perdendo desempenho.
Parto sempre de que o jogo de futebol é caótico, imprevisível e suas ações são aleatórias. Por mais que possamos sempre estudar e tentar entender padrões de comportamentos coletivos, é a falta de certeza do que exatamente vai acontecer dentro das quatro linhas que torna o futebol tão apaixonante mundo afora.
E, dentro dessa complexidade, uma equipe se comporta como um sistema: ou ele está evoluindo ou está piorando. Não tem meio termo. Se um time de futebol não está criando novas relações entre si, jogando melhor, criando novas maneiras de resolver os problemas do jogo ela está pior. Primeiro, porque os adversários aprendem a neutralizar os seus pontos fortes. Segundo, porque você passa a não ter condições de ganhar de outras equipes que estejam evoluindo.
São Paulo e Internacional estão exatamente neste contexto: não há evolução no jogar dessas equipes. Pode-se reduzir a análise tricolor, por exemplo, aos desfalques. Ok, até concordo que Everton e Rojas fazem falta. Sem eles, não há escape pelos lados do campo. Mas, é justamente aí que a equipe tem que evoluir como um todo para criar novas relações e ter alta performance. O Inter é a mesma coisa. Pode-se falar que as rápidas transições e a maneira intensa de jogar com e sem a bola dos gaúchos geram um ‘cansaço’ muito grande. Prefiro ver que não há apenas um problema para explicar a queda de rendimento e sim algo maior e complexo para traduzir a derrota para a Chapecoense e o empate contra o Corinthians.
O Campeonato Brasileiro não vai ser decidido na sorte. Ficará com o caneco quem evoluir mais nas últimas rodadas. É a força mental e a crença nas suas próprias forças; são novas ideias táticas, é o aprimoramento físico e técnico de jogadores que são chaves. É tudo junto e ao mesmo tempo. Esse é o complexo, mas possível de ser entendido, futebol.
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Sobre o jogo que não se joga com os pés

Sergio Busquets: o futebol que não se joga com os pés (Divulgação: ESPN)

 
Num passado não muito distante, tive uma experiência bastante agradável como treinador nos Estados Unidos. Basicamente, trabalhei com garotos e garotas entre 4 e 17 anos, durante o verão americano, em um contexto substancialmente permeado pela iniciação esportiva, mas com alguns jogadores e jogadoras (especialmente elas) que tinham, nitidamente, maior facilidade para jogos com a bola nos pés. Como os leitores e leitoras bem sabem, americanos têm maior facilidade para modalidades executadas com as mãos (futebol americano, basquete, hoquei e beisebol, por exemplo), mas não são exatamente íntimos com as modalidades que exigem trato com os pés. Parece, aliás, um tema interessante para nossos colegas sociólogos.
Considerando o contexto, gostava de recorrer, geralmente no primeiro dia, a um artifício que usava como meio para estimular a racionalidade daqueles pequenos e pequenas, ainda ingênuos sobre eles mesmos e sobre o mundo, vários deles herdeiros do (aparente) conforto econômico americano. Em algumas das primeiras conversas, eu fazia uma pergunta bastante simples: com qual parte do corpo nós jogamos futebol? Os garotos e garotas, em uníssono, respondiam: com os pés, coach! Eu respondia que não, não é com os pés. Dependendo da ocasião, repetia a pergunta: com qual parte do corpo nós jogamos futebol?
Alguns dos pequenos e pequenas repetiam a resposta (como se quisessem jogar comigo), enquanto outros já pareciam incomodados, buscando outro caminho – exatamente o que eu queria. A minha pergunta, em alguma medida, era socrática, pois carregava uma pequena ironia (eironeia): eu sabia a resposta, mas meus pequenos interlocutores, ainda não. Alguns deles, eventualmente, chegavam perto ou mesmo no exato lugar que eu esperava. Quando não, logo após a segunda pergunta, eu mesmo dizia: o futebol não se joga com os pés, buddies. Se joga com o cérebro!
É claro que, em português, cérebro não é o melhor termo. Mas é importante dizer que nos EUA, até uma certa idade, é terminantemente proibido cabecear a bola, em qualquer situação (razão pela qual não era razoável dizer que se joga com a cabeça). Mas a essência estava ali: os pés apenas desenham o que se passa na mente, e quanto mais saudável e criativa ela for, melhores serão os pés. Na condição de treinador/educador, me parece razoável estimularmos nossos pequenos e pequenas, desde a mais tenra idade, a perceberem que seu desempenho não está atrelado a um suposto dom, um presente divino que, por si só, definiria os bons e os maus. Jogadores e jogadoras não são, apenas estão. Para se jogar bem futebol, é preciso modular, através do processo de treino-jogo, o tempo e o espaço (e o engano, diz Menotti) que são as chaves para, aí sim, responder aos problemas do jogo, na sua inteireza.
É claro que nada disso se encerra na iniciação. Meus colegas da especialização e do rendimento bem sabem da importância de desenvolvermos o indivíduo que está para além do jogador. Para isso, é evidente que não basta educar somente as pernas e os pés, é preciso educar a mente e o coração. Me parece razoável sonharmos com jogadores e jogadoras que saibam refletir com autonomia, que sejam donos e donas de si, capazes de olhar para o espelho e para os outros com uma criticidade que, como podemos perceber, está em falta nestes tristes dias em que vivemos. O processo de treino é um processo pedagógico e nós, treinadores e treinadoras, somos educadores do ser, responsáveis diretos e indiretos não apenas pelos resultados do fim de semana, como também pelo destino, ainda que em parte, de atletas que, por onde forem, carregam junto uma pequena ou grande parcela daquilo que lhes deixamos. Como cada atleta é único, é claro que cada um se apropriará à sua forma do que fizermos, razão pela qual, como já dissemos aqui, é imprescindível que nosso esforço, como treinadores e treinadoras, seja no sentido de ampliar nossas fronteiras, de nos tornarmos nativos e estrangeiros, de nos tornarmos plurais, uma vez que um treinador, em um grupo de atletas, não é apenas um, são vários.
Quando leio, na The Tactical Room #45, a ótima entrevista da bióloga Loles Vives com Richard Pruna, médico-chefe do Barcelona, me admira a conversa sobre a importância dada no clube ao assim chamado treinamento cognitivo. Para Pruna, trata-se de ‘propriedades intelectuais que ostenta o jogador e que afetam seu rendimento no campo, como a capacidade de processamento de informação, conhecimento, experiência, tomada de decisões, tempo de reação, timing, memória de curto e longo prazo, visão, audicão, processamento senso-motor, atenção, estímulos cognitivos, antecipação e percepção do tempo e do espaço’, todas habilidades treináveis. Ora, parece mesmo que o futebol não se joga com os pés! Quando os atletas se lesionam, Pruna faz questão que se mantenham os treinamentos cognitivos, pois não é indicado que se afrouxem os músculos da cognição, que se percam as ‘habilidades mentais’, que sustentam jogadores de tamanha inteligência para aquele contexto. Um dos grandes exemplos certamente é Sergio Busquets, longe de ser o mais físico dos atletas, mas dono de uma inteligência absolutamente descomunal.
Mas repare que, agora, não mais falamos apenas da inteligência, da racionalidade, mas também dos sentidos – o que reforça nossa hipótese de que não basta educar a mente. Na verdade, para treinadores e treinadoras, é preciso encontrar outra via, um caminho que não nos prenda nem na razão, nem nos sentidos. Que nos faça pensar, sentir e, principalmente, interagir!
Sobre isso, falamos em breve.

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A Homofobia e o Marketing do Esporte

Há alguns dias ganhou grande repercussão a manifestação homofóbica de (pequena) parte da torcida de um grande clube no Brasil. Muito triste isso tudo. Sinal de intolerância, de desrespeito. Como se as escolhas (quaisquer escolhas) dos nossos próximos pudessem ser julgadas publicamente. O gesto não foi exclusivo desta torcida, mas vê-se isso Brasil adentro e faz-nos pensar que vivemos na idade da pedra, ou estamos retrocedendo no que diz respeito ao convívio em harmonia e compreensão das diferenças.

Antes de tudo, o futebol está ao alcance de todos, independente de etnias, religiões, gênero, idade e opções sexuais. Tudo isso faz o esporte – e especificamente aqui, o futebol – ser único, espaço livre e democrático. A grande característica das grandes equipes vencedoras ou reconhecidas pelo planeta todo é a sua pluralidade e capacidade de integrar e agregar diferentes pessoas e personalidades. Foi assim com a seleção uruguaia no bicampeonato Olímpico de 1924 e 1928 e a Copa de 1930, foi assim com a seleção brasileira em 1938, na França; assim também foi com o Brasil de 1970 e a Holanda de 1974. Lembrada mundialmente, o Sankt Pauli (que disputa a Bundesliga 2, segunda divisão da Alemanha), é muito ativa em acolher imigrantes, refugiados e no combate à extrema direita e homofobia (foto abaixo).

Muro do estádio “Millerntor”, do Sankt Pauli, clube de Hamburgo atualmente na segunda divisão da Alemanha. (Foto: Twitter @GlasgowStPauli)

 

Com tantos avanços tecnológicos, nos mais diversos setores da economia e no seu contributo para a sociedade, percebermos hoje que reações de homofobia, xenofobia e intolerância é completa e total incoerência. Por isso parece que estamos em retrocesso. São inconcebíveis quaisquer dessas manifestações. Muitos clubes, federações, confederações e ligas de futebol falam em “fair-play”, tolerância, respeito, democracia, dentre outros valores. No entanto, é preciso praticá-los, vivê-los, lembrar sempre destes valores e aplicá-los em todas as tomadas de decisão e comunicações de todas as instituições esportivas.

Com tudo isso, é preciso se perguntar: como uma instituição quer ser lembrada e reconhecida? Pela intolerância? Oxalá, não. Uma simples nota de repúdio para vergonhosas manifestações? Menos complicado do que aplicar ações que agreguem e integrem. Assim como as equipes mencionadas acima, eternizadas na história por terem pensado diferente, “fora da casinha” (como dizem), tido visão e bom senso, assim precisa agir toda a comunidade do futebol.

 

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Quem promove um campeonato?

O episódio de Boca Juniors x Cruzeiro é emblemático: após cruzamento da esquerda, o zagueiro brasileiro Dedé disputou a bola e acertou com a cabeça o goleiro Estebán Andrada, que sofreu fratura no maxilar. Eber Aquino, que inicialmente identificou lance normal, teve ajuda do VAR (sigla para árbitro auxiliar de vídeo, em tradução livre) para rever a jogada e tomou uma decisão absurda: expulsou o defensor. Em minutos e com uma escolha simples, o juiz transformou-se em exemplo de pelo menos três coisas: a importância do fator humano no uso da tecnologia em esportes, a fragilidade política do Brasil no atual momento da Conmebol (Confederação Sul-Americana de Futebol) e a dificuldade que a entidade continental tem para lidar com a identidade de seu principal produto.
Por partes, portanto:
O uso da tecnologia no esporte é um caminho sem retorno e uma contribuição incrível, independentemente da modalidade. O futebol saiu atrás em muitos sentidos, sobretudo pela reticência histórica da Fifa, entidade que comanda o esporte em nível mundial. O VAR é um advento que oferece uma série de possibilidades para mudar o jogo, mas não existe solução mágica. Se não houver uma preparação mais adequada dos seres humanos e uma noção mais clara de critérios e caminhos, o futuro seguirá distante. Não há robô ou inteligência artificial que funcione sem parâmetros bem definidos e sem o respaldo de uma figura humana. No fim, por mais que as máquinas tomem decisões ou sirvam como alicerce para esse processo, tudo depende de pessoas.
A fragilidade política do Brasil também é algo a se discutir. O país ainda tem Wilson Seneme, presidente da comissão de arbitragem da Conmebol, mas tem sido notoriamente escanteado – sobretudo depois de o atual presidente da CBF (Confederação Brasileira de Futebol), Antonio Carlos Nunes, ter protagonizado um episódio de comédia pastelão em 2018, quando furou articulação do continente para escolha da sede da Copa de 2026 e votou no Marrocos – os países sul-americanos haviam combinado apoio ao projeto tríplice de Canadá, Estados Unidos e México.
Há diversos reflexos da debilidade política da CBF no atual momento. Na edição 2018 da Libertadores, por exemplo, o Cruzeiro foi prejudicado de forma assustadora pela arbitragem e o Santos foi eliminado após punição pela escalação irregular do uruguaio Carlos Sánchez. Boca Juniors e River Plate, em contrapartida, usaram atletas que não tinham condições de estar em campo – a própria Conmebol admitiu isso –, mas não receberam qualquer sanção.
Isso nos leva ao terceiro ponto: a Conmebol sempre teve entre suas características mais evidentes um absoluto descaso com a Copa Libertadores, o principal evento organizado pela entidade. A história de “clima de Libertadores” é um triste compilado de cenas como policiais com escudos em riste para atletas poderem bater escanteios, violência de atletas e torcedores, ameaças e toda sorte de assédio moral e físico. Como competição, a verdade é que a Libertadores é extremamente mal organizada – e que é assim desde sempre.
O que nos leva ao principal ponto do texto: existe (ou deveria existir, pelo menos) um compromisso de quem organiza com todos os aspectos de uma competição. Entidades como CBF e Conmebol são obrigadas a pensar em fatores como relações institucionais, qualidade do produto apresentado, experiência do público e caminhos para a evolução do que elas comercializam.
Na América do Sul, contudo, estamos acostumados ao contrário. Não existe detrator maior dos torneios da Conmebol do que a própria Conmebol. Não existe problema maior no Brasil do que a própria CBF.
É o que acontece, por exemplo, com as convocações recentes da seleção brasileira. A primeira lista de Tite depois da Copa incluiu jogadores de times envolvidos nas semifinais da Copa do Brasil, e isso gerou um desgaste extremo da comissão técnica da equipe nacional com diretores e torcedores dos times.
Na convocação recente, Tite poupou jogadores dos times que estão na semifinal da Copa do Brasil. Ainda assim, teve de justificar a convocação de Éverton, que desfalcará o Grêmio em uma rodada importante do Campeonato Brasileiro.
Éverton é novo, recebeu apenas a segunda convocação de sua carreira e atua em uma das posições mais disputadas da seleção brasileira. Se abrir espaço para outros jogadores, pode sofrer um prejuízo no espaço que tem lutado tanto para conquistar.
Tite também tem uma necessidade de renovar a seleção brasileira após ter sido eliminado nas quartas de final da Copa de 2018, mas não pode montar a equipe com todos os jogadores que deseja. Isso a meses de uma Copa América que será realizada no Brasil.
Para completar, os amistosos da seleção brasileira pós-Copa tiveram a seguinte lista de rivais: Estados Unidos, El Salvador, Arábia Saudita e Argentina. Não há como formar um time forte sem submeter seus jogadores a desafios de um porte maior do que essa lista.
Tudo isso acontece porque a CBF não consegue organizar um calendário que tenha intervalos nas Datas Fifa. Em outros países, as competições nacionais param quando as seleções jogam.
Além de não criar janelas, a CBF não se posiciona. O desgaste de Tite teria sido menor se a entidade tivesse tomado frente. Seria uma situação diferente se a convocação ou a não convocação de jogadores de determinadas equipes partisse da própria entidade.
A história das convocações da seleção brasileira é apenas um exemplo, e um exemplo extremamente recorrente, mas há outros episódios. A verdade é que a CBF não tem um plano ou um projeto definido para tratar o futebol no Brasil ou para lidar com a imagem do produto que ela vende.
A Conmebol tampouco cultiva o interesse do público pelo esporte em âmbito sul-americano. A Libertadores é uma competição de apelo, mas o interesse pelo evento não vai além do valor que os torcedores dão ao título.
O mercado de entretenimento hoje é cada vez maior e mais diversificado. Na América do Sul, as entidades seguem achando que não precisam se preocupar com isso e que o interesse pelo futebol seguirá sendo orgânico.
Em algumas décadas, o resultado disso pode ser um apequenamento irreversível. O videogame, a TV e o cinema não deixam de investir em caminhos para afagar o público e dialogar com seus consumidores. O futebol está perdendo essa briga no continente.
 

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Entre o Jogador e o Mercado

Bem-vindos ao nosso Entre o Direito e o Esporte” dessa semana! Hoje vamos continuar a nossa conversa sobre o que a gente acha “Entre o Direito e o Mercado”, hoje vamos continuar a dar uma olhada naqueles tais dos “direitos econômicos”, hoje vamos continuar e ver para além do que a gente acha “Entre o Clube e o Mercado”. Nessa segunda-feira a gente vai trocar uma ideia sobre o tal do artigo 18bis do Regulamento sobre o Registro e a Transferência de Jogadores da FIFA (RSTP).
E para deixar tudo mais claro e direto, esse é o nosso mapa do dia: primeiro vamos dar uma olhada no que tem aí (a ideia de influência) e para que isso apareceu no RSTP; depois vamos ver o que é essa tal de influência e como isso deu as caras depois do tal do “18bis”; e fechamos com as consequências dessa regra FIFA.
Bora lá?
E quando a gente pede bis… no futebol a gente fala do RSTP/FIFA. A regra geral aqui é controle, controle do mercado, mercado que a gente viu semana passada quando conversamos sobre os tais dos “direitos econômicos”. Imagina que é dia de jogo do seu time. O “pôfexo” sabe que os jogadores do seu time gostam de um joguinho (de FIFA). Esse joguinho dá uma “atrapalhada” no horário de sono deles. E aí? O técnico do seu time vai lá e puxa o fio quando dá o horário para o pessoal descansar.
A FIFA teve uma ideia bem parecida 10 anos atrás quando decidiu proibir (e não regulamentar) a “influência de terceiros” no contrato de um jogador de futebol com o seu time. E tudo isso começou com um caso bem próximo de quem é aqui de São Paulo… o “caso Tevez” – claro que quando ele estava no West Ham United da Inglaterra “emprestado” pela MSI, depois do S. C. Corinthians P. e não durante.
A ideia era simples, “eu proíbo e logo não tem mais”. Mas o que era para não ter mais? O repasse dos tais dos “direitos econômicos” continuariam. A ideia era acabar com alguns “gatilhos contratuais”. Esses gatilhos eram cláusulas (partes do contrato) que obrigavam o seu clube a transferir um jogador quando (escolha o motivo) acontecesse e fosse ligado a um “retorno no investimento” feito por alguém – alguém que não o jogador ou o seu clube.
Agora é quando você puxa a minha orelha e fala “Roberto, você tá falando grego, cara!”. Essa tal da third-party influence (TPI ou “influência de terceiros” quando a gente fala nos “direitos econômicos”) é a chave da questão. Imagina que você vai participar do MasterChef. Imagina que no primeiro desafio você tem que fazer uma tapioca – e pensa “boa, timê!!!”. Imagina (só) que nesse seu primeiro desafio no MasterChef vem a Paola e avisa que você vai ter que fazer a tapioca só com beterraba (para a goma) e 03 ingredientes que ela escolher. Você ainda pensa “boa, timê”?
Então, era um pouco isso que acontecia em alguns casos. O “terceiro” tinha controle (ou influência) sobre quando o seu time podia usar o jogador, quais regras do seu time esse atleta podia ignorar, e quando o seu time tinha que transferir esse amigo. Pois é! Ganhava um prato que sabia o que fazer para render, mas… não podia fazer render como queria porque tinha alguém mandando fazer de outro jeito.
Foi assim que a FIFA disse que proibiu essa influência de terceiros quando colocou em seu RSTP que os clubes não podiam mais ter qualquer contrato que desse a possibilidade a um terceiro de influir no relacionamento entre o seu clube e um jogador – fosse como atleta, fosse como “ativo do clube” (tipo quando transfere o jogador por um dinheiro, sabe?).

Pexels/The Earth Archive

E isso pegou ou esses terceiros ainda estavam assim?
É, ainda estavam assim. A FIFA não fez nada mais além de “jogar para debaixo do tapete” o que continuou acontecendo. Era quase como se a sua professora na escola dissesse “não pode colar”, saísse da sala e não voltasse mais. Quem ainda quisesse ia ignorar a regra e fazer do mesmo jeito – dependendo só do peso da própria consciência.
Agora você me pergunta “por que isso… não tinha nenhuma consequência?”. Opa, tinha a possibilidade de “imposição de medidas disciplinares” se um clube fizesse um contrato com TPI. Só que se você tira isso do CEDT e não tem acesso aos outros contratos, como que você prova que alguém teve essa influência numa transferência? Pois é, não prova.
A influência de terceiros continuava de lá para cá com repasses de “direitos econômicos” como acordo em um processo trabalhista, uso de “direitos econômicos” como garantias em contratos de empréstimo, troca de “direitos econômicos” por uma chuteira até. Enfim, “direitos econômicos” apareciam por aí como água. Se usava para tudo… só que dando voz a quem (para a FIFA) não poderia ter voz algumas vezes.
De novo, aqui o desafio não eram os tais dos “direitos econômicos” em si – como a gente viu semana passada. E, sim, as consequências do “mal uso” desse jeito para gerar investimento (dinheiro) no futebol. O artigo 18bis do RSTP só fez uma coisa nesse mercado: jogou a poeira para debaixo do tapete. E onde isso levou é o que vamos conversar na próxima semana!
Fico por aqui, e desejo a todos vocês um ótimo final de semana! Convido a ficarem comigo no “Entre o Direito e o Esporte” nesse fechamento de setembro. Semana que vem vamos continuar a nossa conversa sobre aquele tal do “jogador pizza”, focando no artigo 18tre do RSTP/FIFA – “a era da proibição”. Beleza? Deixo meu convite para falarem comigo por aqui, pelo meu LinkedIn ou pelo meu Twitter. Obrigado e até semana que vem!
 

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Transição Defensiva: ideias de exercícios para o treinamento da reação pós-perda

Cada processo de treino é único, específico, e cada equipe tem necessidades e características próprias, que requerem um tipo de intervenção, um planejamento específico e adequado para a resolução dos problemas por parte do treinador. Em resumo, a modelação da ideia de jogo deve ser encarado como um traje feito à medida, ajustado e compatível com as necessidades e características em questão.
Dito isto, o intuito desta publicação não é propor “receitas de bolo” aos colegas treinadores, até porque não acreditamos nisso, mas trazer algo mais prático à coluna, ideias e possibilidades práticas de exercícios que potencializem a aquisição de determinadas ideias de jogo e que, logicamente são adaptáveis e modificáveis para cada realidade.
Nesta coluna trago, em conjunto com Yuri Salenave[1], alguns exercícios que podem contribuir com a melhoria (em maior ou menor grau) de algumas interações que a equipe pode apresentar no instante da perda da bola, especificamente o conceito de “perde-pressiona”, ou seja, a equipe reagir rapidamente perante à perda da bola, pressionar de maneira agressiva o adversário com bola e o espaço próximo, fechando e controlando os espaços importantes.
Alguns dos aspectos que o treinador, em minha opinião, deve considerar no momento da elaboração dos exercícios de um treinamento são: “aspecto”/“fração” da ideia de jogo que se pretende evidenciar; detalhes ao nível da estratégia para o próximo jogo; tipo de contração muscular (predominante); mecanismo metabólico implicado (predominante); gerenciamento das dinâmicas de desempenho-fadiga-recuperação; espaço; tempo; número de jogadores; regras; intensidade máxima relativa; etc., segundo o dia do padrão semanal.
Mais uma vez, é importante referir que os exercícios que apresentaremos estão apenas para ilustrar determinadas ideias, num caráter meramente exemplificativo, mas que podem servir como base para novas criações e ideias para os colegas treinadores. São 5 possibilidades de propensão, de acordo com as diferentes escalas de organização da equipe: individual, grupal, setorial, intersetorial e coletiva[2].

Exercício 1

Ênfase na Transição Defensiva

Possíveis objetivos: Reação imediata e agressiva ao perder a bola; pressionar o homem da bola imediatamente; se aproximar/estar próximo do adversário; buscar contato corporal com o adversário; colocar o pé na bola (dividir); induzir ao pé fraco do adversário; etc.

Escala de Organização: Individual

Descrição: Duas equipes se enfrentam em jogos de 1×1 com goleiros. Quando o portador da bola (neste exemplo o azul) terminar a ação de 1×1 contra o vermelho (gol ou finalização defendida, para fora, bola sair do campo, ser desarmado), o vermelho que estava defendendo sai, e entra um novo jogador vermelho com bola que está situado ao lado da baliza. Este, realizará uma situação de 1×1 contra o jogador azul que estava atacando.

Tão logo termina o lance, o vermelho que estava atacando passará a defender um jogador de azul que entra com bola, produzindo uma nova situação 1×1 e assim, sucessivamente. Ou seja, tão logo o jogador perder a posse da bola, deverá reagir rapidamente para defender. Exercício pode ser realizado em contexto competitivo onde a equipe que chegar primeiro a xgols vence.

Obs: A primeira bola do jogo inicia 1 contra o goleiro

Exercício 2

Ênfase na Transição Defensiva

Possíveis objetivos: Reação imediata e agressiva ao perder a bola; pressionar o homem da bola imediatamente; se aproximar/estar próximo do adversário; buscar contato corporal com o adversário; colocar o pé na bola (dividir); induzir ao pé fraco do adversário; dobra e postura de marcação; etc.

Escala de Organização: Grupal

Descrição: Rondo onde cada dupla tem uma cor específica. Jogam 8×2 ou 6×2, etc., e quando os dois elementos do meio recuperarem a bola, imediatamente a dupla que foi desarmada, ou errou o passe, deve reagir e pressionar imediatamente.

Pode-se valorizar com pontuações o número de passes, desarmes, recuperações após perder a bola, passe entrelinha, jogo em 1 e 2 toques, etc.

Exercício 3

Ênfase na Transição Defensiva

Possíveis objetivos: Reação imediata e agressiva ao perder a bola; pressionar o homem da bola imediatamente; evitar/atrasar a ação do adversário (passe, condução, finalização); cortar linhas de passe próximas; utilizar a “falta tática” quando necessário; estar em estado de alerta; etc.

Escala de Organização: Setorial

Descrição: Formam-se 3 equipes de 4 (posicional), sendo que uma sempre fica no meio marcando. Objetivo das equipes com posse (vermelho e branco) é circular a bola (tanto entre si, em largura, como usar a outra equipe em profundidade para gerar desequilíbrio – opcional), de maneira a criar espaços e fazer gol em uma das 4 mini-balizas. Os azuis devem pressionar (apenas 1 jogador pode saltar e pressionar no campo adversário), cobrir uns aos outros e impedir o gol nas mini-balizas (passe entre linha). Caso consigam recuperar a posse da bola deverão finalizar a bola em uma das balizas grandes, enquanto que as outras duas equipes que estavam com posse, tão logo a perdem, deverão pressionar imediatamente a equipe adversária para impedir o gol e retomar a posse da bola.

Após minutos trocam-se as equipes do meio. Contexto competitivo, equipe que tiver maior saldo de gols vence ao término das repetições.

Exercício 4

Ênfase na Transição Defensiva

Possíveis objetivos: Reação imediata e agressiva ao perder a bola; pressionar o homem da bola imediatamente; evitar o contra-ataque e recuperar a bola para seguir atacando; buscar o controle do espaço em torno da bola; fazer “campo pequeno” rapidamente; utilizar a “falta tática” quando necessário; estar em estado de alerta; etc.

Escala de Organização: Intersetorial

Descrição: Jogo em ¾ de campo, sendo que o meio campo é sinalizado pela linha amarela. Ambas equipes estão divididas em duas metades de 5 jogadores. No campo defensivo estão goleiro, linha de 4 e volante, e no campo ofensivo 2 meias e 3 atacantes (estrutura de jogo 1-4-3-3).

A equipe que tem a posse de bola (no exemplo acima a azul), ao faze-la chegar até o seu campo ofensivo, é permitida a incorporação do volante e um dos dois laterais, de maneira a criar superioridade de 7×5+goleiro.

Gol vale 3 pontos e cada vez que o ataque recuperar a posse da bola no campo ofensivo em até 5 segundos, após perde-la, impedindo o contra-ataque adversário, marca 1 ponto.

Variações: Poderá haver delimitação de toques; a bola só poderá ir de uma metade à outra com passes rasteiros, longos ou ambos; liberar ou não a incorporação de um lateral, etc.

Exercício 5

Ênfase na Transição Defensiva

Possíveis objetivos: Estar em estado de alerta; reação imediata e agressiva ao perder a bola; pressionar o homem da bola imediatamente; controlar o espaço em torno da bola – bloquear as linhas de passe; evitar o contra-ataque e recuperar a bola para seguir atacando; fazer “campo pequeno” rapidamente; temporizar, atrasando as ações do adversário em caso de não conseguir recuperar a bola imediatamente; utilizar a “falta tática” quando necessário;

Escala de Organização: Coletiva

Descrição: Jogo 11×10 em ¾ de campo. Equipes jogam normalmente, até que o treinador coloca uma nova bola em jogo. Ambas equipes deverão ajustar-se permanentemente às novas situações que são criadas pelo treinador.

O objetivo dos azuis é ultrapassar a linha final dos vermelhos com bola controlada, enquanto que os vermelhos devem defender sua linha e marcar gol na baliza grande. Ao alcançar estes objetivos cada equipe marca 3 pontos, sendo que se a equipe que recuperar a posse da bola em até 5 segundos, após perde-la, marca 1 ponto.

Uma possível variação é fazer o exercício à campo todo, num jogo formal de 11×11. Após minutos trocam-se os lados e os objetivos das equipes.

 
[1]Yuri Salenave é mestre em Atividade Física e Desempenho pela UFPEL e atualmente exerce o cargo de auxiliar técnico e preparador físico no C.A. Tubarão (SC) nas categorias Sub-15 e Sub-17.
[2]A escala de organização coletiva se refere à globalidade da equipe, quando todos os setores estão interagindo ao mesmo tempo; a escala intersetorial aborda dois setores em simultâneo (exemplo: defesa + meio campo / meio-campo + ataque); a escala setorial se reporta apenas a um único setor (exemplo: defesa), enquanto que a escala grupal engloba um número significativo de jogadores (3, 4, etc.) mas que não chegam a compor um setor (exemplo: lateral direito – volante direito – extremo direito), enquanto que a escala individual, com o próprio nome sugere, se refere a apenas um jogador.