Crédito imagem: Ricardo Duarte/SC Internacional
Em pleno século XXI, quando os estudos e pesquisas sobre pensamento sistêmico, complexidade, inter e transdisciplinaridade, entre outros conceitos, estão cada vez mais disponíveis no universo de conhecimento do futebol, não podemos mais continuar pensando em entender e avaliar atletas (e equipes) pelos critérios tradicionais, já que neles os pressupostos básicos da simplicidade, estabilidade e objetividade, característicos do paradigma cartesiano-mecanicista, infelizmente ainda predominam. É com esse olhar que ainda se consideram as clássicas e obsoletas “partes física, técnica, tática e psicológica” do desempenho esportivo, tratadas, quase sempre, de forma isolada, fragmentada e descontextualizada do todo.
Em uma nova perspectiva, alicerçada por uma visão sistêmica do futebol, o atleta deve ser visto na sua integralidade e totalidade, ou seja, na sua relação consigo mesmo (enquanto ser humano que é), na sua relação com a natureza e com o meio cultural ou social onde vive concretamente (i.e., em sociedade).
Sabemos que esta pretendida mudança cultural não é algo simples de ocorrer, uma vez que o paradigma tradicional, cuja metodologia indica que precisamos, em primeiro lugar, conhecer as partes para depois entender o todo, está arraigado em nossa cultura desde que René Descartes (1596-1650) estabeleceu os princípios dessa visão mecanicista, tornando-se hegemônico em nossa sociedade. É desde os séculos XVI e XVII, portanto, que este modo de interpretar a realidade procura dar destaque ao particular, às partes, à especialização, em detrimento de uma compreensão mais holística ou sistêmica dos fenômenos naturais, humanos e sociais.
Um exemplo bem claro deste modelo, em que o domínio da parte antecede obrigatoriamente o domínio do todo, é a crença de que para se aprender a jogar futebol, primeiro precisamos aprender as partes; em outras palavras, aprender os seus fundamentos (passe, chute, domínio da bola etc.), para só depois ter condições de jogar o jogo, propriamente dito, com mais qualidade. Este é um modelo questionado pela abordagem sistêmica, que trabalha com outros pressupostos.
É nesta perspectiva que propomos que o diagnóstico e a avaliação de um atleta (e mesmo de uma equipe) devem ser realizados de forma distinta da tradicional. Nesta proposta, consideramos níveis e dimensões ou estruturas de análise que refletem ou levam em conta toda a complexidade da realidade esportiva e existencial, da forma mais ampla possível. Neste sentido, consideramos cinco níveis e seis dimensões ou estruturas de análise, explicitadas na sequência.
Os cinco níveis de análise seriam os seguintes: o(a) atleta, o(a) treinador(a), a equipe, o treino e o jogo.
Vamos tentar entender cada um dos níveis sob o olhar sistêmico:
- 1. O(A) ATLETA não pode mais ser visto(a) apenas como uma máquina capaz de produzir resultados esportivos, como faz a visão mecanicista ou cartesiana. Um indício de que ainda adotamos este paradigma é quando nos referimos a atletas como sendo “peças de reposição”, como partes de um mecanismo ou engrenagem. Na verdade, um(a) “jogador(a) de futebol” é, antes de tudo, um ser que pensa, que sente, que se movimenta, que chora, que tem dúvidas, procurando dar algum sentido humano a tudo que faz. Esse ser humano (futebolista) é movido pela “faísca” do sonho de se tornar um excepcional jogador ou jogadora de futebol. Podemos dizer que é a partir de seus propósitos (objetivos, metas, sonhos) que ele se movimenta, trazendo consigo uma determinada intencionalidade, que o faz tentar se superar a cada dia para atingir seu sonho. Muito longe, portanto, de ser uma máquina ou peça de uma engrenagem. Na perspectiva sistêmica, o atleta é, ele próprio, um sistema, condicionado por diferentes subsistemas: biológico (anatômico, fisiológico, biomecânico, bioquímico), psicológico, emocional e social; todos eles funcionando de forma integrada, indivisível e complexa.
- 2. O(A) TREINADOR(A), não é somente aquele(a) que define a escalação do time ou substituições, escolhe a tática a ser utilizada no jogo e os tipos de treinamentos técnico-táticos que devem ser ministrados durante a semana. É preciso superarmos a visão tecnicista, ainda prevalente, sobre o seu papel na equipe. O treinador ou treinadora, na verdade, deve ser aquele(a) que inspira todos a se superarem a cada momento, alinhados aos propósitos dos atletas e aos seus próprios, devidamente acordado com os objetivos e metas da instituição em que trabalha (no caso, o seu clube). Para isso, é necessária uma visão muito mais ampla a respeito dessa liderança inspiracional.
- 3. A EQUIPE, dentro dessa mesma abordagem, é também um sistema complexo, que se constitui como tal pelas relações dinâmicas de seus subsistemas – atletas, comissão e staff -, cujo trabalho (treinamentos, jogos, entre outras atividades) determina ou condiciona o desempenho individual e coletivo dentro de todas as suas inter-relações, em que a intersubjetividade, a instabilidade e a imprevisibilidade são suas características básicas.
- 4. O TREINO, por sua vez, é o ambiente de aprendizagem, onde os(as) atletas se exercitam, sob o comando do(a) treinador(a). Busca-se alcançar permanentemente a melhoria do rendimento esportivo, este visto de maneira complexa (multifatorial e interdependente), simulando o ambiente e a realidade do jogo sempre que possível. Caso contrário, as ações fragmentadas, características dos treinamentos tecnicistas, correm o risco de se descontextualizarem da própria realidade do jogo e, portanto, perderem muito do seu sentido.
- 5. O JOGO (EQUIPE A X EQUIPE B) é, por fim, o grande sistema que conecta todos os anteriores, colocando os(as) atletas e as equipes em um sistema de colaboração e confronto permanentes. O “sistema jogo” é condicionado por vários aspectos, como as regras (regulamento), o tempo, o espaço, entre muitos outros elementos, objetivos e subjetivos, que caracterizam toda a complexidade do jogo.
Agora vamos considerar as dimensões ou estruturas de análise do(a) atleta, como um microssistema que estabelece relações com outros sistemas. Para esta fundamentação, apoiamo-nos em estudos desenvolvidos e aplicados pelo respeitado Professor Francisco Seirul-lo, Diretor de Metodologia do Treinamento do F.C. Barcelona. Seirul-lo inspirou o trabalho de inúmeros profissionais do futebol, entre eles Pep Guardiola, que não esconde sua admiração pelo mestre e que contribuiu de forma decisiva nas ideias de jogo e preparação de suas equipes.
São seis as estruturas de análise dos(as) atletas:
- 1. ESTRUTURA COGNITIVA – responsável pelos atos ou processos de aquisição de conhecimento, que ocorrem por meio da percepção, atenção, memória, associação, raciocínio, juízo, imaginação, pensamento e linguagem, e que produzem os estímulos necessários às tomadas de decisão.
- 2. ESTRUTURA COORDENATIVA – responsável pelos atos ou ações motoras simples e complexas, que são realizadas pelos atletas geralmente de forma aberta, com e sem bola.
- 3. ESTRUTURA CONDICIONAL – responsável pelos estímulos que exigem a manifestação de qualquer das capacidades físicas (ou atléticas) básicas, tais como velocidade, resistência, força, potência em suas diferentes especificidades e processos metabólicos próprios.
- 4. ESTRUTURA SOCIOAFETIVA – responsável pelos estímulos que regulam as relações sociais (entre os indivíduos), tais como a cooperação, a solidariedade, o respeito, a compaixão, a coesão entre os atletas, entre outros.
- 5. ESTRUTURA EMOCIONAL-VOLITIVA – responsável pelos estímulos que controlam as emoções e a motivação (vontade), envolvendo os desejos, as necessidades e os interesses dos sujeitos ou indivíduos. No esporte de alto rendimento, esta estrutura demanda uma força mental especial, muito vinculada a seus propósitos.
- 6. ESTRUTURA CRIATIVA-EXPRESSIVA – responsável pelos estímulos que exigem respostas que fogem dos padrões estáveis preestabelecidos, que só podem ser desenvolvidos em ambientes de aprendizagem próprios, onde a possibilidade e a aceitação do erro e de transcender certas regras são essenciais dentro do processo de desenvolvimento dos(as) atletas.
Portanto são os cinco níveis de análise do jogo e estas seis estruturas (ou dimensões) de análise dos atletas que constituem os elementos que permitem substituir o olhar tradicional, fragmentado, mecanicista, ainda hegemônico, por uma visão mais sistêmica e complexa do futebol e do esporte em geral.
A proposta aqui defendida é que nos preparemos para superar o paradigma mecanicista com o qual avaliamos os fenômenos ocorridos no futebol (e na vida), em que a parte – muitas vezes – é confundida com o todo, levando-nos a interpretar equivocadamente a realidade, dificultando um melhor diagnóstico e uma melhor avaliação e, consequentemente, dificultando a necessária integração de todas as ações voltadas ao ótimo desempenho esportivo. Este é o convite!