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Quando aspectos psicológicos determinam o favoritismo

Crédito imagem: Gilvan de Souza/Flamengo

Há poucas semanas atrás, duas das três principais equipes do futebol brasileiro de 2021, Flamengo e Palmeiras, apresentavam desempenhos e ambiente de trabalho que colocavam o Flamengo como forte favorito ao título da Copa Libertadores. Por um lado, o Palmeiras oscilava e perdia pontos para equipes tradicionalmente menos expressivas e que possuem investimentos muito menores. Nos quatro primeiros jogos disputados neste mês de outubro, somou somente 2 pontos, dentre 12 possíveis. Por sua vez, o Flamengo vinha sendo arrasador e atropelava seus adversários com seguidas goleadas. No mesmo intervalo, foram 10 pontos conquistados, dentre 12 possíveis, e 10 gols marcados.   

Enquanto estes resultados colocavam o Palmeiras em crise, já que passou a sofrer com fortes críticas da mídia esportiva e pressão da torcida com manifestações de insatisfação – por exemplo, a pichação do muro do clube com ataques à diretoria, jogadores e treinador – do lado do Flamengo eram só elogios à equipe do treinador recém-contratado, Renato Gaúcho.

Neste momento, qual era a equipe favorita ao título da Copa Libertadores numa eventual final: Palmeiras ou Flamengo? Indiscutivelmente, o Flamengo.

Bem… passemos a abordar, então, a influência dos aspectos psicológicos neste favoritismo. À época das semanas de jogos exemplificados nas linhas acima, era a equipe flamenguista que aparentava melhores condições psicológicas. A palavra “aparentava” deve ser ressaltada, pois, na psicologia, sobretudo no âmbito dos processos de grupo, há conteúdos explícitos e implícitos, que operam tanto no nível consciente, quanto inconsciente. 

Infelizmente, no futebol (mas também em outras modalidades esportivas), costuma-se lembrar da psicologia do esporte somente para apagar incêndios, em situações adversas e de derrotas. Mas a equipe do Flamengo, mesmo sem a presença de um(a) psicólogo(a) esportivo(a) em sua comissão técnica, mostrava-se (aparentemente) autoconfiante, auto eficaz, concentrada, com níveis de ansiedade e motivação equilibrados e com bom funcionamento grupal. Por sua vez, o Palmeiras mostrava sinais de ansiedade elevada, tensão, nervosismo e, sobretudo, baixa autoconfiança. O treinador Palmeirense, em entrevista, disse que a equipe sofria com questões de ordem mental e confiança para o jogo. Vale destacar que se tratam somente de suposições. E suposições levantadas com base na observação dos atletas e comissão técnica nos jogos e entrevistas na mídia televisiva. Ou seja, desconheço a rotina de treinos e vestiário de ambas equipes. Tampouco tenho dados de análises e testes psicológicos desenvolvidos em ambas equipes, algo fundamental no trabalho da psicologia esportiva.    

Cabe, nesse momento, fazermos a seguinte indagação: as condições psicológicas determinaram o desempenho de ambas equipes ou o desempenho determinou as condições psicológicas? Ou seja, foram as vitórias que fizeram do Flamengo, semanas atrás, uma equipe mais concentrada, confiante e equilibrada emocionalmente, por exemplo, ou tais condições psíquicas que fizeram da equipe flamenguista vencedora?   

As duas questões levantadas podem estar corretas. Ou seja, ao mesmo tempo que uma equipe melhor preparada emocionalmente terá melhores condições de vencer as partidas, ao vencê-las, ela tenderá a manifestar melhores condições psíquicas. A vitória, o gol, assistências, boas defesas, trazem, ainda que momentaneamente, maior confiança, equilíbrio emocional e melhor ambiente de trabalho aos jogadores e comissão técnica da mesma forma que a confiança, por exemplo, possui relação direta com a performance do jogador. Sim… qualquer um(a) que tenha jogado futebol pode confirmar esta afirmação, mas vale ressaltar que as pesquisas produzidas no campo da psicologia esportiva confirmam cientificamente essa relação.  

Confirmada então esta relação, voltemos à questão do favoritismo. Se no início de outubro o Flamengo era amplamente favorito ao título da Libertadores numa eventual final com o Palmeiras, será que hoje ainda pode-se dizer o mesmo? Jogadores profissionais de futebol não desaprendem a jogar num espaço de tempo tão curto, não é? Por sua vez, bastam poucas derrotas para elevar o tom das críticas e aumentar significativamente o nível da pressão que atletas e treinadores recebem e, consequentemente, todas as condições psicológicas que antes eram favoráveis, se tornam adversas. Quero dizer, com isso, que ao mesmo tempo que uma derrota num clássico e uma eliminação nas semifinais da Copa do Brasil são capazes de desiquilibrar emocionalmente uma equipe, três vitórias consecutivas são capazes de fazer uma equipe retomar sua confiança e performar em suas melhores condições técnicas, táticas e físicas.

Semanas atrás, o Palmeiras sofria com as críticas e grande pressão da mídia e de torcedores. Hoje, é o Flamengo que vivencia tais condições. Entretanto, há duas diferenças que influenciam, no meu entendimento, o favoritismo para o lado palmeirense: 1) O treinador Palmeirense, mesmo no momento adverso, e com afirmações que tenham explicitado certas fragilidades, jamais demonstrou falta de confiança no seu trabalho e no grupo de atletas. O treinador flamenguista, por sua vez, ao entregar o cargo à diretoria, explicita não confiar que é capaz de levar sua equipe ao título da Libertadores, questionando a competência de ambos, dele e dos jogadores; 2) Estar bem preparado psicologicamente não significa que as derrotas não acontecerão, mas sim que elas não serão capazes de desarticular e estereotipar o grupo frente à sua tarefa. O Palmeiras, que conta com uma profissional da psicologia do esporte na comissão técnica, demonstrou estar preparado para lidar com as adversidades e retomou o equilíbrio e as vitórias. Entretanto, tenho dúvidas se o Flamengo e seu treinador, sempre adversos à presença deste profissional no clube e reticentes quanto à importância da psicologia esportiva no futebol, estão também preparados para superar o momento delicado que estão passando.

Ainda assim, se faz necessário também mencionar o fato de que as equipes não costumam ser bem preparadas para lidar com o favoritismo. Afinal, se por um lado o favoritismo pode fazer dos atletas mais auto eficazes e autoconfiantes, por outro, ele eleva a já exacerbada pressão pela vitória.  Para finalizar, vou direto ao ponto. Tecnicamente, acho a equipe do Flamengo superior. Psicologicamente, o Palmeiras me parece melhor preparado. Como os aspectos psicológicos podem determinar o desempenho (técnico, tático e físico) de uma equipe, arrisco dizer que o favoritismo mudou de lado e coloco, neste momento, o Palmeiras como provável campeão da Copa Libertadores. Entretanto, tenho clareza dos riscos de tal palpite, afinal, a psicologia não se trata de uma ciência exata e o jogo possui, dentre outras virtudes que o tornam fascinante, a imprevisibilidade.

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Estrutura ganha jogo?! Mas que estrutura?

Crédito imagem: Pedro Souza/Atlético

O resultado de uma equipe dentro de campo é fruto de tudo o que o clube produz na sua totalidade. Claro que alguns departamentos tem uma influência maior do que outros. Mas todos que trabalham em uma instituição esportiva tem a sua parcela de contribuição no que acontece dentro das quatro linhas.

Fixar os olhos apenas no campo e na bola pode ser perigoso. Principalmente se esse olhar for o do dirigente. Investir, por exemplo, quase que a totalidade do orçamento em salários para jogadores e desprezar outros profissionais que talvez não tenham a mesma visibilidade e relevância para o torcedor, mas que são fundamentais para potencializar a performance pode ser um erro fatal.

Vamos a uma situação hipotética, mas que é muito frequente no Brasil: um clube médio declara que ainda não tem verba para criar um departamento minimamente estruturado e aparelhado de Análise de Desempenho e Mercado. Esse mesmo clube, porém, gasta milhões para contratar um jogador baseando-se apenas no “olhar clínico” de algum dirigente estatutário “abnegado” e “apaixonado” pelo clube. E em muitos momentos esse mesmo caro jogador pode se machucar (o que faz parte) e demorar além do necessário para se recuperar. Se voltarmos o olhar para o departamento médico, talvez esse clube possa estar defasado em termos operacionais e estruturais. E quando esse jogador volta, mesmo que tardiamente, pode ser que ele fique um certo tempo sem jogar bem, apesar de estar clinicamente recuperado. Buscando o staff da instituição não encontramos um psicólogo, para auxiliar o jogador na parte mental. Mais alguns meses e esse clube começa a atrasar salários porque as despesas estão maiores do que as receitas…já viu um filme parecido?

Perceba que o analista, o médico e o psicólogo não são agentes famosos para o mundo externo do futebol, não podendo servir de muletas para alguns dirigentes no famigerado argumento de ‘dar uma resposta para a torcida’ na primeira crise, mas esses profissionais são extremamente importantes para a performance esportiva. E eu poderia citar inúmeros outros profissionais que não têm visibilidade, mas são pessoas fundamentais no sucesso esportivo. Ou se o advogado não for competente o clube não pode perder pontos por alguma irregularidade?! O gerente de logística não pode prejudicar a recuperação dos atletas escalonando mal voos, hotéis e campos para treinar em jogos fora de casa?!

Não estou aqui pregando que o torcedor conheça todos os funcionários do clube que ele torce. Meu foco está nos gestores. Nos tomadores de decisão. Esses têm que entender de todo o processo, entender da complexidade que é o jogo de futebol e saber que a vitória começa fora de campo. 

A torcida resta desconfiar do processo e da estrutura se na primeira crise for contratado um medalhão… a felicidade momentânea pelo reforço pode virar frustração lá na frente…

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Jogar futebol e brincar no espaço da rua: experiências de vida e aprendizagem para além da prática

Crédito imagem: Marinho Ramos/Semcom

O encontro de duas ou mais crianças no espaço da rua configura um rico cenário de aprendizagens motoras, afetivas, intelectuais, sensoriais, morais e sociais que nem sempre são percebidas num primeiro momento, mas são experiências que devem ser observadas no processo de desenvolvimento humano. Então, podemos dizer que a partir da experiência vivida nas situações das brincadeiras da rua, as crianças constroem conhecimentos cognitivos e relacionais que ao longo do seu desenvolvimento ampliam sua confiança e participação nas atividades individuais e coletivas, que acontece a partir da curiosidade própria da experimentação, da criatividade, da interação e da própria prática da brincadeira.

O espaço da rua é entendido aqui como aquele ambiente no qual as crianças podem brincar, sem a interferência dos olhares dirigidos do adulto, ou seja, qualquer espaço que possibilite a oportunidade das crianças participarem de atividades motoras como: correr, pular, dançar ou de se divertir com a prática social que domina o imaginário de grande parte das crianças brasileiras: o futebol.

A experiência da criança em brincar de futebol com outras crianças no espaço da rua não se limita às aprendizagens dos conteúdos formais, mas se dirige à formação da criança inteira, preparando-a para atuar num mundo baseado em conhecimentos formais, relacionais e sociais. Isso porque, no momento do jogo, ocorrem vários tipos de aprendizagens simultaneamente. Ao mesmo tempo em que aprendem a jogar, logo, a terem controle sobre seus movimentos, a fim de alcançarem um determinado objetivo, também aprendem a se relacionarem com o grupo com as seguintes qualidades: respeito, sinceridade, solidariedade, autocontrole, autoconfiança, espírito de grupo, companheirismo, união, participação, responsabilidade, humildade e valorização do outro, elaboração de regras etc.

Dessa forma, o jogo de futebol ou qualquer outra brincadeira com outras crianças no espaço da rua, torna-se relevante durante a sua infância quando sabemos que o desenvolvimento humano não é um processo natural e sim produto de processos sociais mediados pela cultura, construídos na interação.

Então, a oportunidade de vivenciar experiências recreativas na rua se dá na relação entre o conhecimento cognitivo e as relações humanas, e neste caso, a presença do outro se torna fundamental.  O outro pode ser outra criança, o ambiente da rua, o outro que transforma na interação que constitui aprendizado em constante movimento que na maioria das vezes comporta mudanças, dificuldades, inovações e adequações, sem um saber previsto, ao contrário, com possibilidade de experimentar, criar, discutir, elaborar entre o grupo de crianças.

Essa interação no espaço da rua é um ambiente propício para aprendizagens, afinal, o saber da experiência não é o saber do objetivo previsto, ao contrário, é o desconhecido, é a possibilidade, é o experimentar. E isso, as crianças sabem fazer muito bem quando brincam, jogam e elaboram regras.

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Neymar, não ligue tanto pra internet…

Crédito imagem: AFP

Neymar ama jogar futebol. Isso é nítido. Toda vez que ele está em campo fica escancarado o seu amor por correr, driblar, chutar e etc. Porém, quando Neymar vem a público e diz que não sabe se terá “cabeça” para o futebol após a Copa do Mundo do ano que vem, também fica claro o quanto as críticas e as cobranças o abalam. Mas será que Neymar tem a exata noção do todo ou ele pega apenas o pequeno recorte das redes sociais para se sentir desta maneira?!

Tenho certeza que Neymar seria muito mais feliz e até produziria mais se ele não tivesse acesso à internet. Por maior que seja o impacto do mundo virtual (não nego e jamais negarei isso) ele não representa a globalidade de nenhum universo. A prova disso foi o carinho não só que Neymar recebeu, mas também Tite, Gabigol e toda a seleção brasileira, no jogo contra o Uruguai, na semana passada em Manaus. 

Neymar é um ídolo brasileiro. Um ídolo mundial. Se ele passear livremente por qualquer rua de São Paulo, de Paris e de Barcelona será ovacionado pela esmagadora maioria. Alguns pouquíssimos irão torcer o nariz e ficar de lado. Talvez justamente esses que pegam o celular e xingam pelas redes sociais.  Entretanto coberta pelo falso anonimato virtual essa pessoa é brava apenas digitando. Pessoalmente, mesmo que tivesse oportunidade, duvido que falaria ‘na cara’ o que escreve.

Neymar é disparado o melhor jogador do Brasil. Entendo que desde muito novo ele tem grandes responsabilidades. O dinheiro, talvez, já nem está mais entre as três, quatro, cinco principais prioridades. Que ele sinta o quão é querido. De verdade. Nas ruas. Nas estádios. Com ‘pessoas físicas’. Para que as poucas ‘pessoas virtuais’ não ganhem essa partida.

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O jogo lento brasileiro

Crédito imagem: Lucas Uebel/Grêmio FBPA

É normal ouvirmos no mundo do futebol que os jogos no Brasil são mais lentos do que na Europa. Claro que isso não está relacionado à velocidade dos jogadores, já que se pegarmos as distâncias percorridas a maioria dos jogadores por aqui corre mais do que os que estão lá fora. Porém aqui muitos correm errado. Correm a toa. Mas, enfim, mesmo que equivocado, falar que o jogo aqui é mais devagar é mais específico do que o termo vazio e comum: ‘lá se joga outro esporte’.

A impressão de um jogo mais ágil se dá pelo volume de ações. Por exemplo, ao receber a bola um jogador pode pará-la, dar um, dois, até três toques antes da próxima ação. Ou ele pode já ter escaneado tudo a sua volta e assim que a bola chega já executar a ação seguinte. Essas frações de segundos somadas em um esporte coletivo criam a sensação de um jogo mais dinâmico para quem está assistindo.

E nisso entra um outro elemento ainda incipiente no Brasil: o jogar sem a bola. Por aqui ainda é difícil incutir a ideia de que longe da bola não quer dizer longe do jogo. Dentro do exemplo que citei de a ação com a bola ser executada rapidamente, se houve uma marcação curta, agressiva e atenta, quem tem a posse será levado automaticamente a ser mais rápido, sob pena de perder a bola.  Se a marcação é frouxa e distante, inconscientemente o portador também será levado a uma ação mais lenta. 

Perceba como o jogo é um todo. Todas as fases e elementos estão conectados. O todo é maior do que a soma das partes. Uma marcação distante incentiva a uma posse mais lenta, com muitos toques “inúteis”, antes de a próxima ação concreta ser de fato realizada. E vice-versa. O jogo brasileiro ainda tem muitos momentos em que nada acontece. Se antes a cadência do meio-campista brasileiro encantava a todos, hoje isso é visto como falta de intensidade. O alto nível é jogado em pressão de tempo e espaço. O jogo é mais rápido no decidir, agir e recuperar. Enquanto ainda ficarmos discutindo e lamentando a escassez dos clássicos ‘camisas 10’, o jogo europeu de alto nível ganhará ainda mais velocidade em comparação com o nosso.

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Versatilidade individual, triunfo coletivo

Crédito imagem: Tobias Hase

Embora análises conservadoras no futebol sejam tendenciosas a defender que jogadores permaneçam atuando em uma única posição ao longo de suas carreiras, a natureza dinâmica e interativa do esporte pode favorecer leituras mais flexíveis (tanto para quem desempenha as ações dentro de campo como para quem enxerga margens de crescimento fora dele). Talvez pela falta de alternativas na iniciação, pelo contexto que os acompanha durante o processo de formação ou até mesmo pelas circunstâncias com maior pressão no regime profissional, muitos jogadores demoram a encontrar o seu diferencial competitivo devido a repetições automáticas em uma posição rígida, que consequentemente podem limitar o rendimento esportivo.

No entanto, se nos afastarmos de um julgamento estático, será que as supostas ‘funções de origem’ refletem o real potencial de cada indivíduo? Se o jogador em questão puder opinar, quais seriam as suas preferências, a sua leitura, o conhecimento sobre as suas principais valências e lacunas? Seria possível estimular o desenvolvimento de jogadores polivalentes por meio de oportunidades em diferentes funções?

Na literatura acadêmica, enquanto estudos sobre a prática deliberada investigam o engajamento precoce ou tardio em uma modalidade específica (por exemplo, no futebol), questionamentos em torno do volume e qualidade de treinos debatem a especialização e a diversificação em atividades esportivas. Isto é, ao se envolver com o esporte, um indivíduo pode se aprimorar ao praticar exclusivamente uma única modalidade e/ou se desenvolver por meio da participação em distintas atividades. Não se trata apenas de um acúmulo de horas em treinamento, mas sim da variedade, tipos e intensidade das experiências do praticante, que também é influenciado pelo seu próprio grau de motivação, disposição e comprometimento. Dez mil horas para quê? Como? Onde? Com quem? Contra quem?

Transportando o raciocínio ao campo de futebol, independentemente da idade ou histórico, todo e qualquer jogador apresenta margens de evolução, recuperação e adaptação, pois sua curva de aprendizado não é fixa, tampouco estática. Ainda que o processo de identificação, maturação e desenvolvimento de talentos seja gradual, não-linear e específico a cada indivíduo, conforme as etapas de transição se aproximam do âmbito profissional a tendência é que oportunidades, tentativas e alternativas para testar variações sejam cada vez menores. Porém não impossíveis.

Vamos a alguns exemplos para facilitar a compreensão.

Ao seguir os passos de seu antecessor Philipp Lahm no Bayern de Munique e na seleção alemã, Joshua Kimmich se destaca atualmente como um dos principais meio-campistas da Europa, mas também permanece apto a atuar como lateral (outrora sua posição primária), adaptando suas valências na construção ofensiva e na retaguarda defensiva dependendo das exigências de cada função. Um de seus antigos companheiros de equipe, David Alaba elevou a versatilidade a níveis ainda mais admiráveis com a sua capacidade e conhecimento em se ajustar como lateral, zagueiro ou meio-campista. Caso semelhante ao do brasileiro Fabinho, um dos atletas fundamentais do recente ciclo vitorioso do Liverpool. Na Inglaterra, João Cancelo e Oleksandr Zinchenko também oferecem maior flexibilidade ao Manchester City. E retornando à Alemanha, Christopher Nkunku encontrou sua ascensão esportiva no setor ofensivo do Red Bull Leipzig após a concorrência em Paris limitar suas aparições no meio-campo e no ataque.

Fabinho, Alaba e Nkunku: exemplos de jogadores versáteis que potencializam o êxito coletivo.
Créditos: (1) Press Association / (2) Reprodução/@David_Alaba/Twitter / (3) Reprodução/@C_Nkunku/Instagram
Oleksandr Zinchenko: de meio campista no PSV a lateral no Manchester City.
Fonte: Man City/YouTube

A narrativa em questão obviamente passa longe de argumentar que todo jogador deva trocar de posição, pois as limitações de tempo reduzido, menor confiança e aversão aos riscos também dificultam eventuais inovações na camada profissional. Mas mesmo em uma única posição, a abertura ao senso crítico e criativo pode ajudar alguns jogadores a se tornarem especialistas em suas funções mediante o aprimoramento de sua percepção visual, coordenação motora e atenção às demandas de jogo da equipe.

De forma resumida, ao questionar as necessidades e pontos de melhoria para uma posição específica, despertamos o questionamento sobre as condições técnicas, táticas, físicas e psicológicas do indivíduo que executa a função, aliado às interações e características dos seus companheiros de equipe, além da capacidade de leitura das ações dos adversários. Vale lembrar que o futebol é um esporte de contato coletivo, marcado por constantes deslocamentos, coberturas e reorganização espaço-temporal.

Um centroavante, por exemplo, deve se adaptar a situações com intensa marcação, pouco espaço ou tempo disponível dentro da área, que exigem um rápido raciocínio no seu deslocamento, priorizando o equilíbrio na mecânica para finalizar a jogada com qualidade técnica. Quando o mesmo centroavante recebe um passe ou lançamento de costas para o gol, a antecipação na jogada pode afastá-lo dos defensores, permitindo que ele retenha a posse de bola girando o corpo ou facilitando a próxima jogada com um passe a um dos companheiros que visualizam o ataque de frente. Por fim, se o próprio centroavante conduz a bola em direção à área adversária, a projeção da sua corrida pode manipular os defensores a reagirem no momento em que ele optar por um passe, drible ou aceleração prévia ao chute. Em cada exemplo hipotético há variações para o centroavante executar os fundamentos técnicos, medir a velocidade necessária em seus movimentos e prever as possíveis consequências de suas escolhas táticas. Tudo em questão de segundos, considerando as interações ao seu redor.

Poderíamos ilustrar outros casos, mas a reflexão também fica a critério de como cada leitor interpreta o jogo. Talvez o ângulo mais importante seja espelhar pensamentos que traduzam a dinâmica interativa do futebol, cujas situações reais exigem versatilidade conforme o jogo acontece. Por exemplo, muitas vezes um atacante se ajusta como lateral ao acompanhar uma transição defensiva, zagueiros ajudam o setor ofensivo em oportunidades com bola aérea, enquanto meio-campistas monitoram deslocamentos com e sem bola para definir em que setor do campo devem agir ou reagir. Hoje, aliás, até mesmo goleiros apresentam maestria ambidestra para participar ativamente da construção de jogadas, representando (possivelmente) a posição que mais evoluiu na última década.

“Não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas sim o que melhor se adapta às mudanças.” – Charles Darwin

Zé Roberto: versátil em campo e flexível a adaptações ao longo de sua carreira profissional.
Créditos: (1) Imago/Ulmer / (2) Paulo Pinto/AE / (3) Reprodução/SE Palmeiras

A versatilidade atrai benefícios individuais que fortalecem o diferencial competitivo de quem a protagoniza. Ainda assim, o real triunfo é coletivo.

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O futebol como negócio

Crédito imagem: Reprodução/Conmebol

Ainda ouviremos, vinda de quem dirige o futebol brasileiro, a frase de Michael Corleone dita no filme O poderoso chefão: “Não é nada pessoal, são apenas negócios.” Com ela, nossos ilustres dirigentes responderiam aos reclamos da torcida brasileira a respeito da decadência do futebol pátrio, com seus espetáculos insuportáveis. De fato, eles, que dirigem o futebol e outras coisas no Brasil, sabem que não precisaria ser assim tão ruim o jogo de bola por estas bandas, mas, com muito menos trabalho e com igual ou maior lucro, para que melhorar?

Talvez nem tenham nada contra o povo brasileiro, sobretudo a parcela admiradora e torcedora do nosso futebol, mas são apenas negócios. Não se trata de futebol, especificamente. Poderia ser qualquer outra atividade profissional, como exportação de carne, reciclagem de lixo, venda de franquias, não importa, desde que produza lucros astronômicos. Portanto, por que não o futebol? Das práticas sociais esportivas, certamente a mais lucrativa no cenário brasileiro; seu peso na economia brasileira não se limita ao Esporte e assume importância considerável.

Não é de hoje que o futebol assumiu ser, além de uma prática social que expressa, de modo hegemônico, nossa cultura corporal, uma poderosa arma política e de rentabilidade econômica incomparável. Em sua tese de doutorado, a professora Mariana Martins (2016) já corroborava essa compreensão, e ainda acrescentava que há um mercado que gira em torno do futebol, que atua, então, como um meio de valorização de outros negócios.  

A transformação dos estádios em arenas multiusos, a espetacularização das transmissões das partidas e a apropriação do futebol como objeto de marketing foram outras mudanças efetivadas que o transformaram, acima de tudo, num negócio.  

Há ainda outra abordagem que poderíamos fazer a partir desta compreensão do futebol enquanto negócio. O futebol, por vezes, não é somente um negócio para os empresários, patrocinadores, clubes, emissoras de televisão e investidores (dentre outros), mas é também uma importante fonte de renda para as famílias, certamente, que visualizam na carreira do seu filho (e quem sabe, no futuro, da sua filha) uma possibilidade de ascensão social.

Dessa forma, muitas famílias investem na carreira do seu filho. Destinam os recursos limitados que possuem para que ele possa treinar, comer melhor, viajar para fazer testes/peneiras, comprar uma boa chuteira. E não é raro que larguem até mesmo seus empregos para terem maior disponibilidade para cuidar integralmente da sua carreira e fazer dele, seu filho, um ídolo do futebol profissional. 

Pois é… para ter o futebol como um negócio, e muito rentável, é preciso transformar os jogadores em celebridades.  O público vive de mitos, de heróis, de ídolos! Mas empresarialmente falando, isso é coisa fácil de resolver: mitos e ídolos podem ser fabricados a qualquer momento, basta incensar um jogador por algum tempo, produzir vídeos apenas com suas boas jogadas, congestionar as redes com as imagens do escolhido e, pronto!, está feito o herói. O público também vive de escândalos, de denúncias, de jogadas e arbitragens duvidosas. Há muita coisa para empolgar a torcida; nem só de futebol vive o futebol! Se o futebol é, então, uma mercadoria e um negócio, ele precisa de produtos. É aí que entram os jogadores. Mas esse debate vamos deixar para um próximo texto.

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Vamos desfrutar de Abel Ferreira

Crédito imagem: Reprodução/SE Palmeiras

O empoderamento que os treinadores estrangeiros têm aqui no Brasil é inegável. O ambiente os protege mais. Torcida, imprensa, diretoria…todos têm uma paciência e uma tolerância maior. Porém, chega um momento que esse prazo extra se esgota e eles entram no mesmo balaio dos técnicos brasileiros: ou ganha ou sai. Por isso, no final das contas, o que vai prevalecer é a competência. É a qualidade do trabalho. Independentemente da nacionalidade, todo técnico aqui no Brasil paga, cedo ou tarde, pelo imediatismo e ausência de critério de avaliação por quem toma as decisões.

Por isso, quando o português Abel Ferreira vem aqui e com tão pouca idade – 42 anos – conquista esses excelentes resultados com o Palmeiras e, mais do que isso, convence não só pelo jogo, mas também pela comunicação, pelo exemplo, oratória e mentalidade, devemos aproveitar, usufruir e aprender ao máximo.

Abel é um estrategista nato e estuda o jogo nos seus pormenores. Ainda temos dificuldades em avaliar e conceituar termos como jogo bonito, jogo propositivo, jogo eficiente e etc. Ainda paira uma errônea ideia de que para jogar bem tem que ter mais posse de bola que o adversário, ficar mais tempo instalado no campo ofensivo, trocar mais passes e etc. Abel nos mostra que a beleza está em se ter uma ideia clara do que fazer com e sem a bola, em todas as fases do jogo, e executar tudo isso o mais próximo da excelência. 

E o que dizer da mentalidade preparada para o alto rendimento que o técnico português demonstra em cada aparição pública, com os microfones… além de explicar detalhadamente o porquê de cada decisão técnica e tática, Abel fala com uma propriedade acima da média para os nossos padrões sobre alta performance, cultura vencedora, sucesso pessoal e coletivo. Com seus conhecimentos sobre PNL (Programação Neurolinguística), o português dá aula em cada entrevista sobre liderança, relações interpessoais e de como fazer uma gestão eficaz do ambiente.

Um dos erros que não podemos cometer no futebol é acreditar que já sabemos tudo. Que o nosso conhecimento atual, seja pelo estudo seja pelo tempo de prática, já nos condiciona ao sucesso. É preciso humildade e mente aberta para aprender com tudo e com todos. Enquanto ficarmos repetindo que somos os pentacampeões mundiais e que os outros é que têm que aprender com nós estaremos não apenas parados no mesmo lugar, mas sim regredindo. Sim, temos que aprender com o português Abel Ferreira!

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“Ame e jogue o que quiseres”… escritos sobre o Futsal


Crédito imagem: Reprodução/CBFS

Há um tempo eu li uma carta que me marcou e me fez refletir por diversas questões. Essa carta foi escrita por Kobe Bryant ao se aposentar e foi destinada a quem ele era apaixonado desde muito cedo: o basquetebol.

Entretanto, as minhas habilidades com o arremessar a bola na cesta são questionáveis, por isso eu não venho falar do basquetebol. Esse texto será dedicado ao futsal, por quem eu sou apaixonada desde muito cedo. Nessas próximas linhas, irei pontuar e dar uma ideia geral sobre a proporção que essa modalidade em específico tomou na minha trajetória de vida.

Confesso que eu não sei exatamente quando o futsal surgiu na minha vida, mas sei que foi paixão “ao primeiro chute”. Ao brincar na rua, eu aprendi a jogar altinha, golzinho; eu e meus amigos ali da vizinhança fazíamos competições para ver quem “petecava” mais e fazíamos do portão da vizinha o nosso “gol” – torcendo para que a bola não caísse no quintal dela, que poria fim ao nosso “campeonato”.

Fora das duas linhas da calçada, eu tentava entender o porquê diziam que existe esporte para homens e esporte para mulheres. Por que dessa pergunta? Você já deve imaginar: eu, enquanto mulher, “não devia” praticar esse esporte, pois não era “adequado”.

A dimensão que o futsal tinha na minha vida era tamanha, e suficiente para que eu levasse essa paixão para dentro da quadra da escola na qual eu estudava. Eu observava e via que as meninas só escolhiam o vôlei, e num certo dia eu escolhi o que “só” os meninos podiam escolher: o futsal. Imagine você o falatório que não foi naquele dia, principalmente, em que eu escolhi jogar esse jogo dito como masculino.

Depois disso, foram surgindo outras meninas que gostavam também de jogar, e isso foi suficiente para montarmos um campeonato interclasses na escola com equipes inteiramente femininas. No ano seguinte, surgiram as Olimpíadas Estudantis – campeonato interescolar do município de São Paulo – e agora nós podíamos representar a escola com a modalidade esportiva que por muito tempo não nos deixaram jogar. Os treinos eram no contraturno escolar e eu lembro perfeitamente dos professores chegando na quadra com os materiais, da conversa anterior ao treino, dos erros e acertos nos exercícios e do frio na barriga gerado pela expectativa do dia do jogo.

Toda a junção dessas vivências tornou o futsal ainda mais grandioso para mim: foi através dele, e dos professores que não me deixaram desistir de praticá-lo, que eu descobri o gosto pela Educação Física e a escolhi como profissão. O meu primeiro emprego? Foi trabalhando com futsal. Eu pude usá-lo para formar meninos e também meninas. Aliás, foi com elas que eu entendi a importância da minha insistência, anos atrás, de mostrar que o esporte não tem gênero.

Se antes algumas meninas compunham as equipes da escola sem gostar muito do jogo e mais na intenção de vivenciar experiências diferentes, a geração atual – que eu tive o prazer de treinar – estava lá porque era apaixonada, como eu, pelo esporte e isso estava explícito no brilho dos olhos de cada uma.

Foi através do Futsal que eu representei a mesma escola como aluna e como Professora. As duas ocasiões foram fundamentais para a minha formação, mas foi com os olhos da docência que eu vi o quanto o esporte pode transformar vidas. As meninas conseguiram êxitos materiais (troféus e medalhas), mas mais do que isso, elas contribuíram, mesmo sem saber, para que outras meninas acreditassem que também podem jogar com a bola nos pés.

Então, posso dizer que esse texto tem um pouco da menina de 9 anos que não entendia o porquê a prática do Futsal era bem quista somente aos meninos. Essas linhas são escritas também pela jovem de 14 anos que jogava, representava a escola e que aprendeu valores fundamentais que contribuíram para que ela pudesse estar onde está atualmente.

Por fim, esse texto foi estruturado pela mulher de 20 e poucos anos, já Professora, que pôde usar o Futsal para treinar e formar meninos que valorizam e apoiam as meninas que conservam essa paixão pelo esporte; e que treinou e formou meninas que vão sair por aí mostrando que as quadras, campos, pistas e locais de jogos podem e devem ser ocupados por mulheres. Mais do que isso: são essas meninas que hoje inspiram outras a percorrerem essa mesma caminhada.

Portanto, ao Futsal, a minha eterna gratidão.

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(*) Referência do título à frase de Santo Agostinho: “Ame e faz o que quiseres, porque quem ama não erra. ”