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Queremos futuros Maradonas?

Maradona foi, entre uma imensidão de coisas que define um ser humano e jamais será possível esgotá-lo em um pequeno texto, uma figura que incomodou, contestou e que não se permitiu controlar.

Passagens como as eternizadas nos versos de Eduardo Galeano em uma de suas obras primas Futebol ao sol e à sombra, nos ajudam a ter uma noção do tamanho da dor de cabeça que o argentino foi para muitos poderosos, dentro e fora do futebol.

No Mundial de 86, Valdano, Maradona e outros jogadores protestaram porque as principais partidas eram disputadas ao meio-dia, debaixo de um sol que fritava tudo que tocava. O meio-dia do México, anoitecer da Europa, era o horário que convinha à televisão europeia”

Maradona disse coisas que mexeram em casa de marimbondos. Ele não foi o único jogador desobediente, mas foi sua voz que deu ressonância universal às perguntas mais insuportáveis: Por que o futebol não é regido pelas leis universais do trabalho? Se é normal que qualquer artista conheça os lucros do show que oferece, por que os jogadores não podem conhecer as contas secretas da opulenta multinacional do futebol?

Outro momento que ilustra essa, para alguns, assustadora imprevisibilidade do argentino é do início de sua carreira. Diego recusou uma proposta milionária, com o perdão do trocadilho, do River, e buscou ativamente um acerto com o, na época, enfraquecido Boca. Escolheu com o coração, e não com a fria lógica da maior e melhor oferta, o River naquela altura além de melhor estruturado financeiramente, era uma equipe muito mais forte.

Maradona fora do controle, indomável, imprevisível, sempre foi um risco para quem tem tudo sob seu domínio, um risco que essas pessoas não estão nem um pouco dispostas a correr. Talvez por isso os seus erros tenham tido sempre uma repercussão de proporções estratosféricas e o trabalho para ridicularizá-lo tenha sido tão incessante, é interessante para quem foi contestado por ele vê-lo caído.

Um Maradona entre os principais nomes do esporte hoje, como outros e outras que ensaiam surgir na nova cena do esporte mundial, com a repercussão que sua figura teria em um mundo hiperconectado, seria ainda mais ameaçador, e aí não fica difícil de entender que, para essas pessoas que temem as mudanças, quanto menos “Maradonas” melhor. Aqui já falamos do processo de formação de jogadores e jogadoras autônomas, independentes, ou se preferir, livres.

É desse ponto de partida, da personalidade incontrolável de Diego e o que ela representa é que seguimos para pensar sobre o futuro. O primeiro dos questionamentos que fica para quem ama e trabalha com o futebol e se queremos ou não novos “Maradonas”, como sugere o título. Queremos futuros jogadores e jogadoras obedientes ou questionadores? Queremos mudar ou manter as coisas como estão? Tendo clareza do que se quer, fica mais fácil organizar ações que fazem sentido para que se atinja esse objetivo.

O que podemos fazer no dia a dia, ao ensinar o futebol, para ajudar desenvolver as características que identificamos como essenciais? No caso de Maradona, o que o incentivou questionar as injustiças que ele via a sua volta? Alguém o ensinou? Ou será que ao menos alguém permitiu que esse espírito se desenvolvesse? Será que esse espírito questionador tem relação com o seu desempenho dentro de campo? É possível dissociar o Maradona jogador de tudo o que o tornava humano?

Do dia 25 de novembro de 2020 em diante vamos seguir construindo nosso mundo, com mais ou menos Maradonas, tudo depende de nossas escolhas e ações.

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Porque defendo e gosto tanto de Tite

A avaliação de qualquer trabalho, seja positiva ou negativa, não pode ser rasa e imediata. A cruel rapidez com que se espera resultados no futebol brasileiro vai na contramão disso, eu sei. Porém sempre busco o maior número de elementos para adjetivar jogadores, técnicos, dirigentes e etc. E – resumidamente – é pelo histórico, pela cronologia e pelos pontos fortes e fracos que classifico não só personagens, como também times, clubes e seleções.

Por todo esse conjunto da obra, Tite é o melhor técnico brasileiro. Disparado. E o segundo pelotão aparece muito distante dele. Tite é perfeito? Não, longe disso. Sei que para ele faltam algumas competências para trabalhar na primeira divisão do futebol mundial, que é o cenário europeu. Entretanto nenhum outro treinador nascido em solo nacional reúne tantas habilidades como o atual comandante da nossa seleção.

Para facilitar o entendimento, divido as competências de um técnico em duas partes: a primeira é a de campo. Conhecimentos de jogo, sistemas, táticas, metodologia de treino, intervenção durante uma partida, etc. A segunda se refere a gestão do ambiente: comunicação, liderança, relacionamentos, etc. E quando coloco Tite como o melhor que temos nessas duas esferas, gosto de salientar o esforço pessoal dele em aprimorar todas as competências necessárias para aumentar a probabilidade de sucesso.  Acompanho a carreira de Tite desde 2001, quando chegou com o Grêmio ao título da Copa do Brasil. E é nítido que há quase vinte anos atrás ele não dominava tantos princípios e subprincípios ofensivos como agora. E que a comunicação dele, um pouco professoral à época, não causava os efeitos positivos na maioria dos atletas como agora.  

O cargo de técnico da seleção tem uma exposição acima do normal. Os extremos, principalmente os negativos, aparecem muito – basta um jogo ruim ou uma convocação discutível, para aparecer uma avalanche de críticas. Mas com toda a frieza que uma análise como essa requer, ratifico: Tite é o profissional mais completo que temos. E o que é legal, ele não nasceu assim. Se esforçou para evoluir. E hoje merece estar onde está. 

*As opiniões dos nossos autores parceiros não refletem, necessariamente, a visão da Universidade do Futebol

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Sobre o jogo de futebol como um jogo de distração

Não faz muito tempo, falamos aqui sobre algumas características do jogador inteligente. Num primeiro momento, escrevi um pouco mais diretamente sobre a capacidade de ler nas entrelinhas, e a importância disso no jogo jogado. Outro dia, usei como exemplo o gol do Jordi Alba no jogo entre Espanha x Itália, em 2012, para ilustrar meu ponto: lendo as entrelinhas, Alba viu além.

Hoje, gostaria de acrescentar uma outra característica importante do jogador inteligente, que é a capacidade de distrair. De distrair para atrair ou, até antes disso, de perceber o jogo de futebol como um jogo de distração, no qual estamos constantemente buscando distrair o adversário, sem perder de vista as nossas intenções coletivas. Deixem-me falar um pouco melhor sobre isso.

***

Durante o período de quarentena, Daniel Alves fez uma live muito interessante com Bernardinho, treinador multicampeão no voleibol brasileiro e mundial. Num certo momento, Dani Alves relembra uma história de quando Guardiola disse, literalmente, que iria ensiná-lo a jogar sem bola. O próprio Dani diz não ter entendido – como assim seria possível jogar bem sem a bola? – afinal, é com a bola que jogamos futebol! Mas, na sequência, Guardiola teria ilustrado um pouco do que entende do jogo de futebol e, especialmente, um pouco do que pode ser o jogo de futebol quando pensamos a partir da distração. Segundo o próprio Dani Alves:

“Por exemplo, uma vez o Guardiola chegou pra mim, falou assim: ‘Dani, eu vou te ensinar uma coisa: vou te ensinar a jogar sem bola’. (…) Ele falou assim: ‘a bola tem que estar no pé do Messi, do Iniesta, do Xavi, porque eles são a distração. E você ataca o espaço sempre deixado por eles.’ Então eu comecei a entender ‘cara, eu não preciso estar com a bola no pé todo o tempo… eles precisam estar com a bola no pé todo o tempo!’ (…) Então é um jogo de distração (…) a bola distrai e quem é inteligente ocupa os espaços deixados.”

Quando pensamos no jogador inteligente, talvez fique subentendido que o jogador inteligente, de alguma forma, seja um tipo de protagonista, ou pelo menos tenha a responsabilidade de ser o protagonista, mas num jogo coletivo, com tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo, não precisa ser necessariamente assim. O jogador inteligente pode muito bem não ser um protagonista com a bola, não porque não saiba ou não queira, mas porque entende que talvez outros atletas sejam ainda melhores com a bola do que ele, e que isso não vai limitá-lo, mas vai fazer dele ainda melhor do que é. Messi, Iniesta e Xavi – que não eram apenas eles, separados, mas as relações que faziam entre eles, juntos – decidiam muitos jogos, e justamente por isso atraiam tanta atenção dos adversários que, além de atrair, também eram capazes de distrair: abriam espaços para que os outros decidissem. Como dissemos antes, atrair para distrair.

Tenho trabalhado isso de uma forma bastante insistente com meus atletas já há algum tempo, especialmente nos jogos de manutenção da posse com restrição de toques. Vejam bem, quando fazemos um jogo de manutenção da posse – vamos supor um 6 v 6 num espaço de 40m x 30m – com um toque apenas na bola, é claro que ganhamos algum requinte de ritmo na circulação da posse, assim como refinamos a tomada de decisão, a importância do perfilamento o corpo e etc, mas também abrimos mão de algumas coisas, e uma delas é precisamente a possibilidade de distrair a partir do domínio. Num jogo de dois toques, por exemplo, fica muito mais claro o quanto a bola é uma isca, e o simples fato de dominá-la (bem) é capaz de atrair o adversário – exatamente para distrai-lo. O simples fato de retirá-lo de onde está em direção a bola pode abrir, às suas costas, o espaços de que precisamos para progredir. Domínio, atração, distração, passe.

Ao mesmo tempo, talvez o que também faça uma grande diferença para o jogador inteligente seja essa capacidade dupla, de tanto distrair para o outro, quanto de permitir, de acordo a situação do jogo, que o outro distraia para si. Nos dois casos, há uma ponte que os une: é preciso pensar no depois. Não é que a distração seja um fim nela mesma, é um meio para se chegar em algum outro lugar uma, duas, ou várias jogadas adiante. Neste sentido, a analogia com os jogadores de xadrez, que aparece logo nas primeiros linhas do livro Guardiola Confidencial – quando é relatado um encontro de Pep Guardiola com Garry Kasparov, é de fato muito verdadeira: o jogador de xadrez antevê diversos padrões do jogo, está pensando várias jogadas adiante e é capaz de fazer isso intuitivamente. É disso que também se trata o processo formativo: da capacidade de fazermos dos atletas tão atentos ao presente que são, inclusive, capazes de pensar repetidamente sobre o futuro sem distanciar-se dos problemas do instante. Não deixa de ser uma arte.

Como é uma arte todo o processo formativo – mas vamos falando sobre isso aos pouquinhos.

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O ataque do River de Marcelo Gallardo

O River Plate de Marcelo Gallardo tem se estabelecido como um dos grandes destaques do futebol sul-americano e mundial. Não apenas pelos 6 títulos internacionais nos últimos 5 anos, mas pela sua autenticidade na maneira de jogar. O que “El Muñeco” Gallardo conseguiu construir nos últimos anos se trata de uma identidade de jogo que sobrevive, se renova e se fortalece a cada temporada, algo que emociona seus adeptos e desperta o interesse e admiração daqueles que são amantes de equipes que expressam personalidade forte e altas doses de paixão pelo jogo.

Um desses amantes é ninguém menos que Pep Guardiola, que manifestou em 2019 sua admiração pelo trabalho artesanal do treinador argentino

“Precisamos ver o futebol sul-americano. Parece que existe apenas a Europa no mundo, e eu não entendo como Gallardo não é indicado entre os melhores treinadores do mundo. Não apenas por um ano, mas sim por tanto tempo” – Pep Guardiola

A partir de agora vamos iniciar uma série que irá analisar as características ofensivas do supercampeão argentino e como Gallardo organiza sua equipe no momento de disposição da bola, observando como muitos mecanismos táticos ofensivos permanecem vivos e favorecendo a interação dos jogadores durante todo esse período.

A construção do jogo

O início de jogo depende muito da conduta do adversário que geralmente optam por pressionar em bloco alto. Então, o início de jogo com bola longa se torna uma reação imediata dos millonarios onde os laterais buscam uma posição mais avançada no campo e esperam um passe longo dos centrais, caso não haja vantagem em iniciar o jogo com passes curtos. Após o passe longo dos centrais ou do goleiro o comportamento dos laterais passa ser de reduzir opções dos adversários e de ganhar a 2ª bola com encaixes individuais na região central do campo. Toda essa estrutura formada pelos laterais e médios é protegida pelos centrais que ficam responsáveis pelas coberturas e pelos duelos com os atacantes adversários que tentam aproveitar os espaços livres das costas. Veja alguns exemplos a seguir:

Imagens: Reprodução/Jonathan Silva

As imagens mostram momentos diferentes desse jogo, mas representam os comportamentos que mais se reproduzem na fase de início de jogo do River.

Na figura 2, os laterais Mercado e Vangioni buscam uma vantagem posicional sobre os atacantes da equipe colombiana como primeira opção, posicionamento padrão dos laterais de Gallardo. Na figura 3, o volante Ponzio e o lateral Vangioni se projetam para realizar os encaixes individuais na região central do campo e o lateral direito Mercado tem a função de acompanhar esse movimento para também proteger o centro do campo.

Imagens: Reprodução/Jonathan Silva

O mesmo comportamento acontece nos exemplos acima, anos depois. Aqui temos os laterais Montiel e Casco avançando para esperar o passe longo dos centrais.

Imagens: Reprodução/Jonathan Silva

Nas três imagens percebemos claramente a estrutura de contenção central posicionada para ganhar a 2ª bola. Importante ressaltar a interação dos volantes Ponzio e Enzo Pérez que têm a função de auxiliar os laterais intensificando a pressão nessa região do campo.

Na figura 9, a bola é rebatida pela equipe gremista para as costas da estrutura de contenção central e vemos Pinola se preparando para a disputa da bola e Maidana se projetando para uma possível cobertura defensiva.

Na Figura 10 o mesmo acontece, a bola é rebatida pela equipe do Flamengo e também retorna para uma região central atrás na estrutura de contenção e quem se responsabiliza da próxima disputa é o central Pinola e quem estabelece a cobertura defensiva é Martínez Quarta que também divide sua atenção com a projeção de Éverton para um espaço importante deixado pelo avanço do lateral Casco.

Esses exemplos demonstram como a equipe de Gallardo assume riscos ao avançar seus laterais para recuperar a bola em profundidade, ainda que deixem espaços nas costas dos laterais. Nessa situação a preferência é apostar nos duelos defensivos dos bons centrais para garantir a posse de bola, eliminar a chance de gol e iniciar seu ataque posicional, que será o tema da continuação de nossa série sobre o ataque do River Plate, na semana que vem!

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O sub-aproveitamento do que cada jogador tem de melhor

Todo treinador tem uma ideia de jogo preferida. Um modelo com princípios e sub-princípios ofensivos, defensivos e de transições com que tenha mais afinidade. Mas como não há uma única maneira capaz de levar equipes à vitórias, o bom técnico é aquele que consegue adaptar suas ideias ao contexto e, principalmente, aos jogadores que tem a disposição.

O olhar primeiramente para dentro é fundamental e pré-requisito para o sucesso. Não há como ter uma ideia fixa inicial , por melhor que ela seja, e querer que um grupo execute-a, sem respeitar e entender as características individuais. É infinita a riqueza que cada jogador tem a oferecer. O treinador que mais se aproxima do êxito é aquele capaz de identificar as potencialidades disponíveis e a partir disso criar sistemas e mecanismos.

E partindo do jogador para a equipe, do indivíduo para o coletivo, passamos a ter outra situação que também é riquíssima: a sinergia entre os jogadores. Para exemplificar: nenhum 1-4-4-2 é igual. Equipes podem ter a mesma estruturação no espaço de jogo, mas elas essencialmente serão diferentes por conta das características de cada jogador e o que emerge da relação entre eles. Quando vemos um time potencializando o que cada indivíduo tem de melhor parece que ao invés de onze há quartorze, quinze jogadores em campo. Por outro lado, quando há um esforço e um gasto de energia muito acima do normal a impressão que passa é que o time está com um, dois, até três jogadores a menos.

Convicção e confiança são fundamentais em qualquer profissão. E, claro, no futebol não é diferente. Contudo, vale mais acreditar e confiar no próprio trabalho, no processo a ser desenvolvido, do que em ideias pré-concebidas. Olhar para o grupo, para a cultura, para o ambiente e para o contexto é fundamental para aumentar as probabilidades de vitórias. Guardiola, Klopp, Mourinho e tantos outros profissionais de sucesso foram mudando no decorrer dos anos e dos clubes. A flexibilidade e a inteligência circunstancial são as chaves para o triunfo no futebol atual.

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O impacto das mudanças de comando técnico no futebol brasileiro – O efeito da troca de treinadores

Relembrando a reflexão inicial, quando o nosso objetivo se volta a avaliar os treinadores de futebol no Brasil, devemos sempre expandir o raciocínio e os cálculos estatísticos para examinar o contexto vigente no país. Devido ao fato do treinador representar apenas uma peça que integra um sistema dinâmico, qualquer comparação simplista de resultados não apenas desconfigura a realidade de um esporte coletivo de alto rendimento, como também prejudica o avanço da modalidade (e dos profissionais atuantes) no território nacional. Por isso, para uma tomada de decisão racional sobre o efeito dos treinadores, é fundamental mensurar critérios objetivos que possam traduzir o contexto em torno da equipe, dos seus adversários e da competição sob análise.

Dando continuidade ao estudo com as respostas da segunda pergunta (Como as trocas de comando técnico impactam o desempenho esportivo no Brasil?) por meio de uma avaliação econométrica compreensiva, nossos modelos de análise de regressão foram capazes de classificar até 67,9% dos casos corretamente. E seguindo o mesmo raciocínio da PARTE 2, reunimos abaixo os principais resultados estatísticos em um agrupamento de 3 núcleos:

A) Ritual do bode expiatório (mudanças subjetivas, sem efeitos objetivos)

B) Calendário

C) Características do treinador

Conforme adiantado na PARTE 2, devido à complexidade dos cálculos na econometria, bem como os parâmetros e testes necessários na metodologia científica, a leitura dos dados no artigo acadêmico pode parecer confusa sem um embasamento teórico. Portanto, para facilitar a compreensão na PARTE 3, ilustramos os resultados estatísticos com percentuais que traduzem um aumento ou diminuição na probabilidade de se alcançar uma vitória (3 pontos) ou ao menos um empate (1 ponto) durante o Brasileirão.

A) Ritual do bode expiatório (mudanças subjetivas, sem efeitos objetivos)

Em termos objetivos, chegamos aqui ao principal resultado do nosso estudo: 7 jogos (ou sétimo jogo, precisamente). Este é o volume de partidas oficiais (ou tempo necessário) que o treinador precisa percorrer até conseguir entregar um índice de contribuição direta (porém parcial) à melhoria de rendimento esportivo de um clube no Brasileirão.

De acordo com a principal evidência estatística extraída da nossa avaliação econométrica que investigou absolutamente todos os 264 treinadores, 594 mudanças de comando (sendo 463 trocas com treinadores efetivos e 131 trocas com interinos), 41 clubes participantes em 6506 partidas oficiais de Brasileirão durante 16 temporadas (2003 a 2018), chegamos, enfim, a comprovação científica de que o treinador de futebol no Brasil necessita permanecer no comando técnico até o seu sétimo jogo antes que ele possa aumentar (de forma parcial) a probabilidade de uma vitória (em 30,8%, precisamente) ou empate (em 40,7%) após assumir a liderança de sua nova equipe.

Ainda assim, tal como identificado nos primeiros seis jogos após assumir o cargo em seu novo clube, o efeito de contribuição do novo treinador não mostra resultados estatisticamente significativos entre o oitavo e o décimo jogo, traduzindo efeitos nulos para a realidade prática (ou seja, sem sinais positivos ou negativos para ajudar a valorizar ou renegar o treinador substituto, pois apenas o sétimo jogo ilustrou resultados de influência parcial). E apesar do primeiro jogo do treinador no novo cargo mostrar um potencial para garantir ao menos um empate (subindo a probabilidade de coleta de 1 ponto em 27,2%), a evidência científica constatada pelo nosso estudo deixa claro que as mudanças de treinadores de futebol durante o Brasileirão não carregam efeitos práticos para a melhoria de rendimento esportivo de seus respectivos clubes. Em outras palavras, um novo treinador sozinho não muda a trajetória na realidade.

É importante ressaltar que, muito embora seja possível identificar casos de novos treinadores que (hipoteticamente) coletaram pontos em todos os seis primeiros jogos, ou até mesmo ao longo das dez primeiras partidas em um novo cargo nesse mesmo período, tais situações respondem por circunstâncias específicas e individuais, reduzindo a avaliação a [1] uma amostra não representativa para a classe de treinadores atuante no Brasileirão e a [2] comparações superficiais com estatísticas básicas, que minimizam a dinâmica do futebol brasileiro.

Segundo os resultados da nossa investigação econométrica, o treinador de futebol no Brasil é alvo do ritual do bode expiatório, uma teoria estabelecida na década de 1960 pela literatura de administração e economia do esporte após a sua primeira série de avaliações criteriosas utilizando o beisebol americano como objeto de análise. Logo, a evidência da nossa investigação reforça estudos acadêmicos que identificaram o mesmo efeito após as trocas de treinadores realizadas em ligas nacionais de futebol na Argentina, Áustria, Bélgica, Colômbia, Espanha, Holanda, Inglaterra, Itália e Portugal.

B) Calendário

Ao dissecar os fatores externos que efetivamente influenciam o rendimento esportivo ao longo do campeonato brasileiro (leia-se a qualquer momento do Brasileirão, independente do treinador que esteja na função), nossos dados mostraram que as variáveis relacionadas ao calendário competitivo são condicionantes a interferir na coleta de pontos de um clube.

Inicialmente, o aspecto mais importante se destaca com a vantagem do mando de campo. Caso a equipe sob observação seja a mandante da partida, sua probabilidade de vitória sobe em até 261,8%, enquanto as chances de assegurar ao menos um empate sobem em até 263,5%. Com base nestes índices, jogar com o mando de campo representa a maior vantagem competitiva (em termos estatisticamente significativos) encontrada na liga nacional do futebol brasileiro. Sinais de maior presença de torcedores a favor da equipe no estádio, pressão sobre a arbitragem, maior familiaridade dos jogadores com o espaço físico ou campo de jogo, além de menos desgaste logístico no deslocamento ao local da partida (em comparação ao adversário visitante) podem ajudar a explicar o peso superior deste resultado. Vale ressaltar que o mando de campo pode servir para escolher outros destinos onde a partida deva acontecer na prática e, portanto, não significa que o clube mandante atue sempre em seu próprio estádio oficial.

Nossa segunda constatação ligada ao calendário diz respeito a diferença de pontos entre os clubes sob observação antes da partida. Isto é, para cada ponto a mais que a equipe apresente no momento em comparação ao seu adversário, a probabilidade de vitória aumenta em 2,3% (por ponto), enquanto as chances de garantir pelo menos um empate aumentam em 2,6% (por ponto). Este resultado traduz como as disparidades no acúmulo de pontos na tabela do campeonato tendem a distanciar ainda mais os clubes de maior potencial esportivo e econômico em comparação aos clubes que não conseguem acompanhar o mesmo ritmo competitivo ao longo da temporada (enaltecendo a diferença qualitativa entre as equipes em termos de níveis de jogadores).

Nossa terceira evidência estatisticamente significativa em torno do calendário refere-se aos clássicos locais (considerando que identificamos 504 clássicos entre os 6506 jogos sob análise). De forma resumida, toda vez que uma equipe (ou treinador) enfrenta um rival tradicional histórico da mesma cidade (ou estado em alguns casos específicos), a probabilidade de vitória é reduzida em 19,3%. Apoiados pela ausência de um efeito na incidência de empates, podemos argumentar que um clássico local no Brasileirão carrega um potencial menor para garantir a coleta de pontos frente a equipes rivais.

Por fim, também devemos valorizar a ausência de impacto sobre o rendimento esportivo por parte de outras 3 variáveis de controle presentes na nossa avaliação: [1] o fato do adversário ter trocado de treinador antes do jogo, [2] a diferença no percentual de aproveitamento entre as equipes e [3] a diferença de dias de descanso antes da partida sob observação. Embora não-significativos pelo cálculo estatístico, esses 3 elementos fortalecem indícios de como o calendário de jogos poderia ser manipulado de forma estratégica por parte dos clubes no planejamento de confrontos com maior antecedência.

C) Características do treinador

Chegando ao último agrupamento de resultados que merecem maior atenção, reunimos os prognósticos estatísticos provenientes de características específicas sobre o treinador atuante no Brasil.

Se o treinador responsável por conduzir a equipe na partida sob observação for interino, a probabilidade de coletar pontos é reduzida drasticamente, elevando o risco de derrota. Segundo os índices que encontramos, o treinador interino diminui em 41,5% a probabilidade de uma vitória e em 51,3% a probabilidade de um empate (em qualquer momento do campeonato brasileiro). Tais consequências levantam outro sinal de alerta sobre o impacto prejudicial de mudanças de líderes durante a temporada, pois a transição desde a saída de um treinador efetivo até a chegada de seu substituto tende a agravar o rendimento esportivo da equipe.

Além dos interinos, os treinadores nascidos fora do Brasil também aumentam consideravelmente o risco de derrota durante a temporada. Isto é, de acordo com os dados extraídos ao longo de 16 temporadas de pontos corridos no Brasileirão, quando o treinador responsável pelo comando da equipe é estrangeiro, a probabilidade de vitória se reduz em 42,8%, enquanto as chances de se obter no mínimo um empate são reduzidas em 48,0%. Esta evidência científica ajuda a explicar como os treinadores estrangeiros parecem necessitar de um tempo ainda superior aos brasileiros na adaptação ao contexto laboral, cultural e competitivo vigente no país. Por outro lado, também pode ser um reflexo da pequena quantidade de treinadores internacionais compondo a nossa amostra, uma vez que o nosso estudo capturou somente 13 indivíduos nascidos fora do Brasil (em 16 passagens efetivas e 1 interina), cuja participação representa menos de 2% das observações sob análise.

Nem a idade do treinador, tampouco a sua experiência como jogador profissional interferem diretamente no rendimento esportivo. Ou seja, com resultados não-significativos na nossa análise, estereótipos comumente desenhados pela imprensa esportiva brasileira com relação a treinadores mais jovens, mais velhos, ex-jogadores ou profissionais acadêmicos não mostraram diferenças estatisticamente significativas para contribuir ou prejudicar o rendimento durante o Brasileirão. Esta constatação ajuda a desmistificar ainda mais os argumentos subjetivos sobre um suposto perfil ideal de treinador no país, sobretudo pelo fato de 80% da nossa amostra ser composta por treinadores que foram jogadores profissionais, além da sua faixa de idade percorrer uma janela de 4 décadas (com o treinador mais novo computando 30,8 anos e o mais velho 72,5 anos – enquanto a média geral indica 50,4 anos de idade).

Os últimos resultados que enaltecem a experiência do treinador referem-se a méritos competitivos. Já que é muito comum testemunhar indicações de dirigentes defendendo suas escolhas de treinadores pelo histórico bem-sucedido do novo empregado (especialmente em torneios eliminatórios), decidimos verificar se determinadas alegações realmente se traduzem em algum efeito sobre o rendimento esportivo na prática. Contudo, nossos resultados contradizem os discursos dos anunciantes, apesar de existir uma única exceção: treinadores finalistas da Copa Libertadores tendem a aumentar (em 16,4%) a probabilidade de se coletar ao menos um ponto na partida ao longo do Brasileirão (mas não influenciam as chances de vitória). Ao examinarmos o impacto de treinadores que já haviam sido finalistas (antes de cada jogo sob análise) da Copa do Brasil e da Copa Sul-Americana, não identificamos prognósticos estatisticamente significativos que pudessem influenciar o resultado de uma partida na liga nacional. O mesmo raciocínio se mostrou válido para treinadores que já haviam sido campeões do Brasileirão até o momento do jogo (nenhuma diferença no rendimento). Tampouco notamos efeitos de influência nos resultados devido ao volume de participações do treinador em campanhas de acesso à Libertadores ou de participações em campanhas de rebaixamento (que representa a nossa variável de demérito competitivo na liga nacional). Em suma, o histórico do treinador carrega muitos benefícios intangíveis à organização, porém somente o êxito do seu passado evidentemente não garante sucesso no presente ou futuro.

Para concluir, a PARTE 4 trará uma revisão sobre as principais implicações práticas em torno dos treinadores, dirigentes e torcedores interessados no avanço do futebol brasileiro.

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Os comportamentos defensivos nas semifinais da Copa do Mundo de 2014

Em 2014, o Brasil sediou a Copa do Mundo FIFA, atraindo os olhares de diferentes culturas e civilizações para o nosso país. Porém, um dos fatores marcantes daquele mundial foi a histórica goleada sofrida pela seleção do Brasil diante da Alemanha (7-1). A referida derrota repercutiu não somente nas ruas e bares, mas também no ambiente acadêmico-científico. Perguntávamos a nós mesmos: como pode a seleção pentacampeã mundial, com tamanha tradição futebolística, sofrer uma derrota tão avassaladora?

Desejosos de compreender os motivos que fizeram o Brasil sucumbir perante a campeã Alemanha, buscamos neste artigo compreender a dinâmica tática coletiva defensiva das equipes semifinalistas e finalistas do mundial de 2014 (Alemanha, Argentina, Holanda e Brasil). Para isso, 533 jogadas defensivas realizadas nas semifinais e finais foram analisadas a partir da metodologia observacional, que contém uma matriz conceitual com variáveis relacionadas à zona de recuperação da bola, pressão defensiva, remoção de profundidade do ataque adversário, tempo gasto para recuperar a bola, número de faltas, entre outros. A campeã Alemanha foi a única seleção que apresentou maior quantidade de pressão coletiva na região da bola (pressing). Nas imagens a seguir, observa-se a preocupação dos alemães em restringirem o espaço e o tempo dos jogadores brasileiros que recebiam a bola nos espaços entrelinhas, gerando superioridade numérica no centro de jogo.

Imagens: Reprodução/Paulo Henrique Borges

O controle de profundidade do ataque adversário, para explorar a lei do impedimento, também foi um comportamento tático coletivo amplamente realizado pelas equipes investigadas. Dessa forma, as seleções subiam ou desciam as suas linhas defensivas no campo de jogo para deixarem, eventualmente, os atacantes impedidos, bem como para evitar um passe em profundidade. A subida das linhas defensivas ocorreu sobretudo em três situações: I) jogadas que o atacante com a posse da bola estava marcado; II)  atacante dominava a bola de costas para a defesa; e III) atacante conduzia a bola para trás (bola coberta). Pelo outro lado, quando o atacante não estava marcado e conduzia para a frente sem oposição (bola descoberta), as linhas baixavam, conforme indica a figura a seguir:

Imagens: Reprodução/Paulo Henrique Borges

Interessante observar que as equipes que estavam perdendo os seus jogos foram aquelas que mais retiraram profundidade do ataque adversário, buscando uma maior compactação intersetorial para facilitar a retomada da bola. A tendência das seleções semifinalistas em “encurtar” os espaços do portador da bola e possíveis linhas de passe contribuiu para a observação da compactação intersetorial (principalmente entre defesa e meio-campo), a criação de superioridade numérica na região da bola (lado forte/lado fraco) com uma intensa pressão neste local (pressing).

Imagens: Reprodução/Paulo Henrique Borges

Observou-se, ainda, que durante o tempo regulamentar das partidas, as equipes procuraram orientar o posicionamento inicial dos defensores a partir de um bloco baixo (figuras a seguir). Porém, quando houve prorrogação, as equipes subiram os seus blocos defensivos para o meio do campo (bloco médio).

Imagens: Reprodução/Paulo Henrique Borges

A partir dos resultados encontrados nesta análise, sugere-se aos treinadores de futebol a organização da fase defensiva de suas equipes pautada nas seguintes ideias: I) pressionar o homem da bola e espaços adjacentes; II) criar um permanente sistema de coberturas, garantido pela compactação intersetorial e pela retirada de profundidade do ataque adversário; III) cobrir e reforçar permanentemente o eixo central do campo, de modo a possuir superioridade numérica na região do centro de jogo; e IV) recuperar a bola o mais próximo possível da meta adversária.

Quando conjugados, estes comportamentos táticos defensivos poderão evitar o sofrimento de gols em jogos decisivos, contribuindo para a robustez defensiva das equipes brasileiras.

Para ler o artigo completo, o texto está em inglês, clique aqui.

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As ruas da nossa infância

Ilustração/Aubrey Duarte

“Junto à minha rua havia um bosque

Que um muro alto proibia.

Lá todo balão caia, toda maçã nascia,

E o dono do bosque nem via.

Do lado de lá tanta aventura,

Eu a espreitar na noite escura,

A dedilhar essa modinha.

A felicidade, morava tão vizinha,

Que, de tolo, até pensei que fosse minha.”

(Até Pensei – Chico Buarque de Holanda)

São tantas as ruas das nossas infâncias. A minha nem era rua, se a gente pensar que rua tem que ter calçadas e carros passando por ela. Era um pedaço redondo de terra, que a gente chamava de larguinho. Era como se fosse um país, ou um planeta e nós éramos seus únicos habitantes. No bairro havia outras ruas, outros planetas, de outros habitantes. A gente chamava de rua qualquer lugar que virasse nosso planeta e só a gente pudesse habitar e encher com nossas brincadeiras. – Mãe posso ir pra rua? – eu perguntava. E a mãe sempre perguntava, em seguida – Terminou a lição? – eu respondia “já”, me levantando e saindo correndo para rua. Vestia minha roupa de astronauta e viajava pelos espaços, para o Planeta Criança, a rua da minha infância.

Na minha infância havia um portão preto que dividia duas ruas. Do lado de cá, cinco irmãos se escondiam debaixo da cama, da mesa ou atrás da porta. “Lá vou eu!” E todos saíam de seus esconderijos, saltando obstáculos, pulando sobre o sofá e as cadeiras, e corriam até a parede do lado de fora, no quintal. “Um, dois, três! Agora é sua vez!” E a gente começava tudo de novo…

Do outro lado do portão, na outra rua, havia mais crianças. Uns corriam para se esconder na quadra de cima, outros na quadra de baixo, até dentro de suas próprias casas, parecia muito divertido.

Na rua da minha infância, o que a gente mais fazia era jogar bola. Não havia meninas. Era um tempo em que as meninas não podiam ir para a rua. Tinham que ficar em casa. Dentro da casa também tinha espaço de rua, mas o delas era bem pequeno e só quando eram muito novinhas brincavam com os meninos. Mas aquela rua fora de casa não era permitida para elas. Quando eu chegava no larguinho era mesmo para jogar bola, mas também tinha o tempo do pião, da bolinha de gude ou da pipa. De vez em quando alguma outra brincadeira como a de lutinha ou de pegador.

Tínhamos um campinho de futebol. A parede da garagem da nossa rua recebeu o nome de Gol, que registrava as marcas das goleadas que eu recebia do meu irmão mais velho. Como eu jogava mal! Com baixa estatura não alcançava a parte superior do gol, com isso meu irmão, se apropriando de suas vantagens, apresentava todo o seu talento futebolístico.

Era na outra rua que havia dois grandes times, as traves eram feitas com dois pares de chinelos ou quatro grandes pedras, posicionadas, duas a cada lado do campo, e cumpriam distâncias exatas, demarcadas com passos firmes por uma das crianças. Todos gritavam ao mesmo tempo, meninos e meninas em uma só voz. Havia jogadores, torcedores, gandulas, juízes, um verdadeiro estádio de futebol.

Na minha rua havia adultos que não gostavam da gente. Moravam em volta da rua e brigavam para a gente não brincar. Se a bola caísse na casa de um deles, eles cortavam com uma faca. Os guardas do posto policial também não queriam que a gente brincasse na rua. Corriam atrás da gente e tomavam a bola. Na nossa rua, vivíamos como marginais, porque os adultos e a polícia diziam que o que a gente fazia era errado, como se fosse fora da lei.

Algumas vezes éramos convidados para jogar queimada na rua do outro lado do portão preto, mas a resposta era sempre a mesma: Não podemos! Felicidade era quando meu pai nos observava andando de bicicleta de uma esquina para outra, mas quando ouvíamos uma voz feminina gritando: Entrem para tomar banho!, atravessávamos aquele portal contrariados, sabíamos que após o banho acabavam as brincadeiras para nós, enquanto as outras crianças, na outra rua, continuavam até o pôr do sol com suas aventuras, diversões e alegrias.

Houve um dia em que meus pais, acredito que estavam de bom humor, nos permitiram brincar na outra rua, aquela tão encantadora. Pegamos o skate e, em uma avenida movimentada, subimos e descemos entre carros e ônibus. Tínhamos asas nos pés, nos sentíamos livres, libertos de todo e qualquer perigo. Saímos ilesos, apenas não pudemos brincar mais sem a proteção e supervisão de um adulto naquela rua colossal.

Mas a rua que nos era permitida também tinha sua magia, tinha stop, jogo de adivinha e muitas histórias em família. Tinha pão com margarina, bolo de fubá e leite com café bem quentinho. Ao findar o dia pedíamos: Benção pai! Benção mãe! Benção vó! E com um beijo de boa noite, abençoados, nos despedíamos para viver uma nova aventura, desta vez de sonhos, uma aventura que só terminava no despertar do dia seguinte…

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A MP caducou, e agora?

O dinheiro pago pelas emissoras de TV e, nos últimos anos, por outras empresas da comunicação, pelo direito de transmitir partidas é um dos pilares que sustentam o negócio futebol. No Brasil, de acordo com análise publicada pelo Itaú BBA referente aos resultados financeiros de 25 clubes da elite do futebol brasileiro em 2019, os direitos de transmissão representaram 41% das receitas dessas organizações, no estudo estão incluídas as transferências de jogadores, sem elas a proporção das receitas dos direitos de transmissão é ainda maior, o que destaca a grande dependência dos clubes brasileiros em relação a esse tipo de entrada. Nos principais clubes do mundo, que buscam cada vez mais diversificar suas fontes de receita, o impacto dos direitos de transmissão nas finanças também se mantém significante. Entre os cinco clubes com maior receita do mundo, de acordo com o relatório Football Money League da consultoria Deloitte, os direitos de transmissão representam 33% de todo o faturamento, com a ressalva de que o estudo desconsidera a “venda” de jogadores, o que diminuiria esse percentual. Já entre as posições 16 a 20 do mesmo ranking, o número sobe para 65%, também sem contar as transferências.

Dada a importância dos direitos de transmissão para o negócio futebol, não é de se estranhar que a Medida Provisória 984/2020, editada pelo Poder Executivo no dia 18 de junho e que caducou no último domingo, tenha gerado tanta movimentação e discussão no setor. Entre outros pontos, o texto da MP alterava o entendimento sobre o direito de transmissão de cada partida. No formato atual os dois clubes que disputam uma partida são os detentores do direito, de modo que se a empresa interessada em transmitir a partida não entrar em acordo com as duas equipes, o jogo não pode ser transmitido. A MP alterava essa situação, dando apenas ao mandante o direito sobre a transmissão.

Esse bloqueio de jogos vendidos por apenas um dos clubes que disputa a partida em questão tem trazido como consequência a impossibilidade legal de transmissão de muitos jogos. São os chamados “jogos fantasma”, no qual apenas uma das equipes vendeu os direitos e o não acordo com a segunda equipe acaba inviabilizando a transmissão. Vale destacar que os direitos de transmissão das partidas são divididos em três diferentes classificações, a TV aberta, a TV fechada e o Pay-per-view, no qual se encaixa a transmissão paga em diferentes plataformas da internet, como canais próprios dos clubes, por exemplo, e o tradicional Premiere, da Rede Globo. Dentro do atual modelo jurídico e com a atual configuração de contratos entre clubes e empresas de comunicação, a Globo e a Turner, a situação na TV fechada, por exemplo, é a seguinte.

Caso entrasse em vigor, a MP 984, que também foi apelidada de “lei do mandante”, acabaria com o impedimento legal da transmissão de partidas entre clubes que entrassem em acordo com diferentes empresas de comunicação ou mesmo aqueles que optassem no futuro por não vender os seus direitos, já que o direito da transmissão das partidas passariam a ser exclusivamente dos mandantes, como ocorre em diversos países. A configuração proposta pela MP também aumentava o número de jogos disponíveis para as empresas, como é possível conferir a seguir.

Apesar das vantagens do modelo, a MP também desencadeou conflitos e se insere em um contexto mais amplo no que se refere às disputas de poder no país e ao futuro das transmissões e posicionamento dos clubes no mercado do futebol.  Ao ser considerada sua relevância, a forma abrupta como o tema foi tratado, por meio de medida provisória, e sem grandes discussões, sinalizou algumas movimentações no tabuleiro dos poderes dentro e fora do futebol.

Na política nacional, a assinatura da MP foi também mais um capítulo da guerra declarada pelo governo ao jornalismo e empresas de comunicação, em especial à Rede Globo, tida como potencial prejudicada com a configuração proposta. A vigência da MP proporcionou uma interpretação dúbia dos acordos que a empresa tinha com diversas equipes, gerando uma grande instabilidade no setor já que, se por um lado a organização não perderia o direito de transmitir nenhum de seus jogos, por outro ela perderia a exclusividade  de alguns e o bloqueio de outros, o que faz, naturalmente, parte do planejamento e dos cálculos da emissora que detém contratos de longo prazo em diferentes plataformas com os principais clubes do país, celebrados levando em consideração o modelo de direitos de transmissão compartilhados.

Sob essa perspectiva, a MP acabou trazendo como consequência uma chuva de liminares e meses de instabilidade jurídica, como analisa Emanuel Leite Júnior, pesquisador e autor do livro “cotas de televisão do campeonato brasileiro”. Para Emanuel, “o âmago da questão da insegurança é a divergência de interpretações que existem tanto de juristas quanto dos aplicadores da lei – advogados e magistrados”.  O pesquisador também defende que clubes que já possuíam contratos de direitos de transmissão assinados foram prejudicados no período da MP. Para explicar o entendimento, Emanuel cita o caso do campeonato carioca, envolvendo clubes, que já tinham acordo de transmissão com a Globo, a própria emissora, e o Flamengo, que não havia aceitado a proposta da empresa e se baseou na MP para transmitir partidas na reta final da competição, “a interpretação que diz que os clubes não vão perder seus jogos como mandantes, mas os mandantes que não tinham contrato vão poder transmitir os seus jogos, é evidente que os clubes que tinham jogos como mandates vão sair prejudicados. Quando eles negociaram contrato com a Rede Globo, o valor incluía todos os jogos que ele está participando, com exceção dos que o Flamengo estava, aí de repente, o Flamengo passa a negociar todos os seus jogos como mandante, incluindo o jogo daquele clube que já tem contrato com a Globo. Logo, esse clube não irá receber nada, por um jogo que será transmitido sem o seu consentimento, de acordo com a situação anterior à assinatura da MP”, conclui.

A assinatura da MP, que desencadeou esse e outros conflitos pela forma acelerada como foi conduzida foi apenas mais uma demonstração da aproximação que o Poder Executivo no atual governo tem buscado com o futebol, que inclui a presença em partidas e registros do Presidente com a camisa de diferentes clubes. No último dia 13, a transmissão em TV aberta da partida entre Peru e Brasil, pela segunda rodada das eliminatórias da Copa do Mundo masculina, foi viabilizada no dia do jogo e engrossou esse caldo. Os direitos de transmissão dessa partida pertenciam à empresa MediaPro e a forma como eles foram adquiridos permanece desconhecida. O que é fato, é que ao longo da transmissão realizada pela TV Brasil, um canal público, a equipe de transmissão mandou abraços para o Presidente e no intervalo foi veiculado material de propaganda do governo. Mestre e doutor em História pela USP e  professor do curso de pós-graduação História Sóciocultural do Futebol, Flávio de Campos, aponta como inédito na história do país o ocorrido durante a transmissão da partida, “isso não aconteceu nem na ditadura. Durante a Copa de 70 havia a cadeia nacional para os jogos da seleção, na qual se dividia cada tempo em 2 e tínhamos um locutor e um comentarista de cada emissora, mesmo assim não há registro de saudação ao presidente da república nem de qualquer utilização tão acintosa de um jogo da seleção brasileira para propaganda política. No período democrático isso com certeza também não existiu”, destaca. O professor também apontou a Itália e Alemanha dos períodos fascista e nazista, o regime militar da Argentina e o governo soviético como países e momentos históricos nos quais as transmissões de partidas no rádio e na televisão foram utilizadas, de maneira similar ao que se observou no confronto entre Peru e Brasil, como ferramentas de comunicação do governo. “A questão dos direitos de transmissão se encaixa nesse jogo político que envolve a aproximação entre governo e CBF, algo que não é recente no país, e o ataque à Rede Globo que tem sido crítica ao governo”, aponta Flávio. Dado o atual contexto é possível imaginar que as movimentações nesse jogo ainda poderão exercer influência sobre futuro das discussões que envolvem os direitos de transmissão.

Pelo lado dos clubes, a movimentação isolada do Flamengo em relação à assinatura da MP faz pender a balança para o lado contrário da união, ou de uma muito mencionada liga. Nesse cenário, a tendência é o de aumento da desigualdade entre os clubes brasileiros, em relação às receitas dos direitos de transmissão. O fenômeno dos “jogos fantasma”, anteriormente mencionado, que acontece por conta dos direitos de transmissão compartilhados, passou a ser uma realidade no Brasil também por conta das negociações individuais após a implosão do Clube dos 13 no início dos anos 10, que trouxeram como consequência também o aumento da desigualdade, como descreve Emanuel Leite “nunca fui um defensor do que o Clube dos 13 representava pois era uma associação privada que reunia os clubes de futebol e que tinha no seu estatuto a defesa dos seus associados, mas negociava os direitos de transmissão de todo o campeonato brasileiro, até daqueles clubes que não eram membros e isso gerava uma desigualdade já grande. Porém, ainda era um cenário de negociação coletiva. Existia um critério de distribuição de recursos entre os membros, e as migalhas para os não membros. Com a implosão vimos o fosso aumentar, para ilustrar esse movimento, vamos pegar o exemplo da diferença entre Flamengo e Botafogo, o quanto não aumentou a diferença nominal e percentual? O Botafogo passou a receber muito menos do que o Flamengo”. O pesquisador ainda aponta a desigualdade inerente às ligas e a necessidade de uma regulação para diminuir abismos, “a literatura da Economia e da Sociologia do Esporte está cansada de demonstrar cientificamente que campeonatos desregulados, ou seja, sem regulamentações que estabeleçam negociações coletivas, com o princípio de solidariedade na distribuição dos recursos, geram maiores desigualdades”, e lembra dos casos recentes da Espanha e Itália, no qual houve uma regulação, por meio de leis, que proporcionaram um maior equilíbrio nas ligas dos dois países, “depois que a legislação de cada um desses países mudou a forma de negociar e distribuir os recursos dos direitos de transmissão televisiva, passando a determinar negociação coletiva com regras pré-estabelecidas com critérios para a distribuição desses recursos, em ambos os casos houve uma diminuição significativa da desigualdade”.

Um país que caminhou no sentido oposto ao de Itália e Espanha é Portugal, no qual os direitos são também do mandante da partida, mas as negociações não têm nenhum tipo de regulação, sendo realizadas de maneira individual. A consequência é que o país lidera com folga a lista de países com maior desigualdade nas receitas de direitos de transmissão, com Benfica, Porto e Sporting recebendo valores mais de 10x maiores do que a média da liga.

Sem uma negociação coletiva dos direitos de transmissão, “a tendência, pelo que nós vimos nas experiências esportivas em todo o mundo é o que é maior receber mais. No caso do Brasil esses clubes seriam Flamengo, Corinthians, São Paulo, Palmeiras e Vasco, que são os cinco grandes clubes do Brasil em termos de torcida nacional, ainda com destaque para os dois primeiros. E os outros? A alternativa é a negociação coletiva, com critérios que busquem garantir o mínimo de equidade, para impedir que quem tenha mais acumule a um ponto que inviabilize a competição”, avalia Emanuel.

João Ricardo Pisani, gestor esportivo, com carreira dedicada ao desenvolvimento de produtos no futebol, também analisou o cenário e possíveis consequências do que foi proposto na MP, “inicialmente, a lei do mandante isoladamente remove uma amarra, dá mais jogos para os clubes, e por isso permite que uma equipe venda mais jogos e, em teoria, arrecade mais. Os problemas tendem a aparecer com a possível negociação individual, que cria um cenário escorregadio porque, ao mesmo tempo que dá autonomia para uma equipe negociar de forma independente seus jogos com quem quiser, ela também coloca, em diversas ocasiões, os clubes na posição de concorrentes entre si pelo mesmo mercado, ou recursos”.  Ele ainda aponta, “o produto em questão não deveria ser reduzido ao jogo do mandante X contra um visitante Y, mas ser compreendido como o campeonato brasileiro como um todo. A negociação individual tende a aumentar os riscos que uma equipe tem ao sair sozinha no mercado, e a chance desse risco não compensar o retorno financeiro esperado é enorme. Porque as diferenças já existem, mas o verdadeiro abismo tem tudo para aparecer com as negociações independentes, quando os riscos dessa negociação individual cobrarem seus pedágios, como por exemplo, uma temporada ruim, contratos extremamente curtos, concorrência local com clubes de maior apelo nacional”.

Desgarrar dos concorrentes do nível nacional é o interesse da muitos dos maiores clubes de cada país, o que pode ser explicado, obviamente pela tendência natural da busca pela vitória, inerente ao ambiente competitivo, mas também pode ser potencializada por contextos específicos. No caso de Portugal, com a liga mais desigual da Europa, Benfica, Porto e Sporting buscam não apenas manter a hegemonia local, mas se manterem competitivos no continente e aí, para bater de frente com os gigantes europeus, cada centavo conta.

Dois projetos, um da FIFA e outro encabeçado por alguns dos maiores clubes do continente europeu, tem potencial para impactar diretamente na distribuição de recursos oriundos dos direitos de transmissão para os clubes. O primeiro é o Mundial de Clubes ampliado, com 24 equipes, disputado a cada 4 anos, que pode trazer uma quantidade de dinheiro significativa para os participantes, principalmente os não-europeus. Garantir presença constante na competição pode significar um salto definitivo no patamar financeiro para essas equipes em relação a seus pares locais, assim como ocorre com clubes de ligas periféricas do continente europeu na Champions League. O segundo é a liga europeia de clubes, que pode criar um abismo definitivamente intransponível entre o seleto grupo de convidados para o torneio e as demais agremiações do continente, mesmo aquelas dos países mais relevantes futebolisticamente. 

Streaming, futuro das transmissões esportivas e democratização do acesso aos jogos?

O debate sobre a viabilidade das plataformas de transmissão de jogos pela internet, o streaming, em diversos canais como YouTube, Facebook, Twitter, entre outros, também ganhou destaque a partir da assinatura da MP, principalmente com as experiências do Flamengo que inclusive chegou a cobrar diretamente dos torcedores pela transmissão das partidas. O que ajudou a abrir novas perspectivas para o setor.

Na análise de Pisani sobre o tema, “olhar só para TV é ter uma visão limitadora nos dias de hoje. Até porque, sob a ótica dos contratos começam a aparecer zonas cinzentas como streaming com paywall, que nada mais é do que uma versão atualizada do clássico pay-per-view, e transmissão aberta no site, que é praticamente o equivalente da TV aberta”, descrevendo os pontos positivos de cada plataforma “via TV, os clubes sempre vão ter o canal como intermediário, mas navegar numa mídia já consolidada e de fácil acesso para o brasileiro. Já o streaming trás a vantagem de que você pode estruturar ele dentro de casa mesmo, seja diluindo os custos em conjunto, por meio de uma liga, ou arcando com tudo sozinho, além de proporcionar uma infinidade de outros benefícios como, por exemplo, a coletar dados que te ajudam a dar maior escala e eficiência na hora de vender publicidade ou até refinar mais as entregas do seu produto. Por hora é possível utilizar o que cada um oferece de melhor conforme a necessidade”, conclui.

Para Fernando Borges, doutor em Ciências da Comunicação e Informação pela Universidade Pantheon-Assas, com diversos artigos publicados sobre a utilização de plataformas digitais por clubes de futebol é preciso cuidado para avaliar o cenário. O pesquisador ainda enxerga as emissoras como aliados importantes, “não basta ter uns quantos milhões de pessoas que se dizem torcedores de um time para ter sucesso financeiro em uma empreitada como essa. Acho que o Flamengo viu isso rapidamente com o caso dos jogos do Campeonato Carioca e o Benfica também viu isso com o seu canal. Não é apenas a quantidade absoluta que deve ser vista. No caso de Portugal, o Benfica tem cerca de metade da população identificada com o clube e cerca de 160 mil sócios. Mesmo assim, há um limite ao número de assinantes para um canal de TV paga, que é o modelo escolhido pelo clube. Eles dizem que chegaram a 300 mil assinantes – correspondente à meta estabelecida inicialmente, mas nunca anunciaram passar muito mais do que esse número. Além disso, para alavancar o negócio, além de todo os investimentos em recursos humanos e tecnológicos, eles investiram em outros produtos na época – campeonato inglês, por exemplo. Assim, os meios de comunicação de massa – TV aberta, TV a cabo – ainda são os melhores parceiros para os clubes de futebol das principais ligas e divisões para exibirem os seus jogos. São canais que conseguem entregar ao público um produto de qualidade, a uma audiência grande e variada, que interessa aos anunciantes da mídia e dos clubes e pagam bem aos clubes, sem grandes esforços por parte dos clubes”, pontua.

Fernando ainda explica que esse mercado ainda está longe de ter encontrado um modelo ideal, “acho que os clubes têm a possibilidade de explorar melhor o seu produto, se forem capazes de entender o que é esse produto. Aqui, não é nenhum demérito ao clubes, pois mesmo aqueles que são tidos como modelos de boa gestão, os grandes europeus e americanos, ainda estão experimentando e testando possibilidades para ver o que funciona. Não há um modelo definitivo na Europa: há canais de streaming, canais a cabo, com subscrição, gratuitos, clubes que fazem parcerias com outros players do mercado como a Amazon prime, Netflix, para fazer conteúdo. Não há uma fórmula pronta”.

No Brasil, um dos clubes que tem se destacado nas iniciativas de produção de conteúdo próprio é o Esporte Clube Bahia, com o Sócio Digital. A plataforma, própria do clube, disponibiliza conteúdos relacionados ao clube que contemplam o período entre o final de uma partida e o início da outra, com treinamentos, bastidores, etc. Com custo médio de R$ 8 mensais para o torcedor, a plataforma ofereceu mais de 100 horas de transmissão no primeiro mês com equipe própria. Em entrevista ao jornalista Rodrigo Capelo no podcast “Dinheiro em jogo”, foi disponibilizado no dia 9 de julho, o presidente do clube, Guilherme Bellintani mencionou que o clube vai buscar nos próximos anos aprimorar o seu modelo para que, ao final de 2024, com o encerramento dos grandes contratos com as emissoras, o clube esteja preparado para explorar o mercado da melhor maneira possível.

Com relação à democratização do acesso dos torcedores, Pisani faz um paralelo com a música, “a internet e os serviços de streaming remodelaram a indústria fonográfica nas últimas décadas. Eles democratizaram o acesso a uma gama quase que infinita de artistas e estilos, e foram além, facilitaram a vida de quem quer consumir apenas o conteúdo X com quem quer apenas produzir o conteúdo X. Da banda de garagem no melhor estilo faça você mesmo até gigantes da indústria, todos se beneficiaram da praticidade que o streaming trás na hora de distribuir conteúdo. Porém isso não significa que seu vizinho virou o Jay-Z do dia para noite ou que os Beatles deixaram de ser uma das bandas mais escutadas do mundo mesmo sem produzir algo novo por décadas por passar a ter mais concorrência na hora de você montar a sua playlist. E nada explica melhor isso que a teoria da cauda longa.  Se o torcedor do clube X tem sua maioria concentrada num recorte que mostra um baixo acesso à internet, não dá para colocar a palavra democratização aí. Se assistir todas as partidas por mês do meu time significa consumir 90% do meu pacote de dados ou parte considerável da minha renda não posso chamar isso de democratização também. Então diria que o streaming dá autonomia e te permite colocar a mão diretamente na distribuição, mas não necessariamente trás democratização”, avalia. Segundo reportagem publicada no UOL, para acompanhar todas as competições disponíveis legalmente em território nacional o custo para o torcedor é de R$ 3,7 mil ao ano.



Há espaço para clubes longe da elite do futebol na Televisão, quais são as alternativas nesses casos?

João Ricardo PisaniDepende do como você enxerga a TV e que recortes gostaria de fazer. A cobertura e a facilidade da TV aberta ainda são elementos que garantem números expressivos de audiência e por consequência maior potencial de arrecadação. Porém, se o recorte for feito pensando em uma transmissão em rede nacional, ou nos horários já consolidados como quarta à noite ou domingo no meio da tarde diria que não existe espaço, porque há outros produtos que geram um retorno maior para a maioria dos canais. Contudo, se for algo regionalizado, pensando em retransmissoras e/ou afiliadas das grandes redes, ou eventualmente espaços alternativos da grade, nesse caso eu diria que sim. Mas a questão aqui é que pensar só em TV é algo que já não faz mais sentido. O ideal é pensar na transmissão do evento e em quais plataformas ele pode render melhor e compor em cima disso.

Por exemplo, o futebol feminino pode se beneficiar de um horário alternativo dentro da grade de TV aberta para ganhar mais projeção num projeto de consolidação de curto ou médio prazo da modalidade, mas pode ficar escondido dentro da grade da TV fechada e minar algumas vantagens que o streaming trás de forma mais tangível. A praticidade de ter o conteúdo de forma direta e a capacidade de explorar elementos acessórios, como por exemplo a coleta de dados, e um contato maior com quem consome o produto tendem ser mais interessantes do que brigar por espaço dentro da grade dos canais de TV fechada.




No último dia 13, o deputado André Figueiredo (PDT-CE) apresentou o Projeto de Lei 4876, que também versa sobre o direito do mandante. As discussões sobre o tema, que é complexo e esbarra em muitos aspectos do futebol e das comunicações, seguem a todo vapor.

*Desde a assinatura da MP, Emanuel Leite Júnior, João Ricardo Pisani e Fernando Borges, entrevistados para essa reportagem integraram discussões profundas sobre os temas abordados aqui e alguns outros que podem ser acessadas aqui.

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O impacto das mudanças de comando técnico no futebol brasileiro

Amplamente reconhecido como uma potência na produção de jogadores de alto nível, o futebol brasileiro renova, aprimora e exporta gerações de talentos com consistência à economia global da modalidade. Considerando apenas latino-americanos em 2020, o Brasil posiciona 1535 jogadores profissionais em território estrangeiro, superando o volume absoluto de argentinos (913), colombianos (457) e uruguaios (358). Além disso, ao relativizar quantidade e qualidade, é possível notar que a nacionalidade brasileira se mantém como a líder no quesito minutos em campo na principal competição de clubes do planeta pelo terceiro ano consecutivo (onde também permanece no TOP 3 há 16 temporadas, desde 2004-05 a 2019-20). Seja por uma defesa subjetiva ou levantamento quantitativo, o jogador de futebol produzido pelo sistema brasileiro segue valorizado pelo mercado consumidor ao redor do mundo.

No entanto, um dos agentes prioritários da cadeia de formação e desenvolvimento desses talentos tem sido subestimado dentro do seu próprio território nacional. Diferente do jogador, o treinador de futebol brasileiro aparenta enfrentar dificuldades crônicas para ser reconhecido e projetado em seu país de origem, bloqueando sua ascensão rumo a ligas de maior impacto internacional e afetando, sobretudo, o padrão de qualidade do esporte praticado no país. Nada obstante, se as criaturas formadas pelo sistema são nitidamente exaltadas, não há sentido negligenciar os seus criadores. Por isso, antes de julgamentos que tentem simplificar os profissionais atuantes na função, ou até mesmo questionamentos sobre a ausência de treinadores brasileiros nos principais centros europeus, é imprescindível avaliar a realidade que os cerca dentro do Brasil como ponto de partida para uma reflexão crítica.

Sustentado por literatura acadêmica, aplicação de metodologia científica e avaliação econométrica, o estudo em questão (conduzido na Universidade do Esporte da Alemanha em Köln – Deutsche Sporthochschule Köln) investigou 16 temporadas de Brasileirão no formato de pontos corridos, reunindo todos os 6506 jogos disputados, 264 treinadores empregados e 41 clubes participantes da Série A no período entre 2003 a 2018 (2019 não faz parte da amostra por ser o ano de conclusão da pesquisa).

Com uma base de dados compreensiva, nossa análise estatística avançada utilizou um volume superior a 1 milhão de pontos sob observação, sendo que a coleta de dados foi conduzida de forma precisa através de fontes públicas confiáveis para assegurar resultados assertivos que pudessem gerar interpretações realistas

Respeitando uma metodologia científica adequada para a aplicação econométrica, o estudo atendeu aos parâmetros, testes e regras estatísticas já definidos (além de revisados e aprovados) pela comunidade acadêmica internacional de gestão e economia do esporte. Seguindo este raciocínio, a investigação se destaca por trazer um material inédito ao cenário do esporte brasileiro em termos de abrangência, profundidade e análise de dados, esclarecendo informações com embasamento e evidência científica para melhores decisões adiante na administração do futebol nacional.

Conforme esclarecido por pesquisas já existentes na literatura administrativa e econômica do esporte (reunindo estudos similares em 15 países), o treinador de futebol detém uma posição de liderança dentro de um sistema altamente complexo, dinâmico e competitivo. Por isso, para examinar a sua contribuição, torna-se necessário uma avaliação racional, com métricas objetivas e que estejam de acordo com o ambiente onde o seu trabalho venha a ser julgado. Caso contrário, resoluções superficiais, com base em argumentos simplistas e tomadas de decisão subjetivas tendem a minimizar o contexto real de um esporte (coletivo) de alto rendimento. Sobretudo, quando efeitos sensíveis ao tempo são considerados (como é o caso na mudança de treinadores), é imperativo estender a análise estatística (avançada, não básica) a períodos maiores antes de qualquer comparação de resultados.

No Brasil, o calendário competitivo apresenta uma configuração muito particular, pois favorece o desgaste físico sem sequer oferecer tempo para a preparação no início do ano (uma vez que a pré-temporada dos clubes participantes do Brasileirão tende a durar menos de 30 dias em janeiro, com variações de duas a três semanas) e tampouco para a recuperação ao longo do panorama anual (devido à alta incidência de jogos com agendas apertadas de fevereiro a novembro). Ademais, duas janelas de transferência
inevitavelmente comprometem a composição dos elencos, sendo que a principal fase de negociação de jogadores da economia global ocorre no meio da temporada brasileira. Devido a essas particularidades, testemunhar flutuações no desempenho esportivo pode estar diretamente relacionado a falta de preparação, descanso e reposição de recursos, aliado a exposição dos jogadores a um maior volume de jogos e o risco iminente de lesões, que afetam a produtividade em longo prazo.

Além disso, desvios de programação são recorrentes no futebol brasileiro. Especificamente no período que integra a nossa pesquisa, somente o ano de 2015 respeitou o calendário de jogos original, conforme fora previamente estabelecido pela organização do campeonato. Todos os outros 15 anos que compõem a nossa amostra testemunharam uma série de jogos antecipados e adiados, envolvendo distintas equipes, datas e rodadas dentro da mesma temporada. Com isso, infelizmente tornou-se inviável estudar o efeito das posições na tabela durante o Brasileirão, pois a informação histórica disponível ao público não recalcula precisamente as disparidades do calendário conforme cada rodada acontecera. Para tornar a nossa análise precisa, assertiva e realista, todos os 6506 jogos das 16 temporadas foram reordenados de acordo com a sequência cronológica exata ao longo do período.

Já antecipando uma das implicações práticas deste estudo, o que percebemos após um profundo diagnóstico sobre o cenário de pontos corridos do Brasileirão desde 2003 a 2018 (lembrando que 2019 não faz parte da amostra por ser o ano de conclusão da pesquisa) é que, por estar desprovido de condições minimamente sustentáveis para exercer o seu trabalho, potencial e carreira, o treinador de futebol brasileiro tem visto o seu crescimento profissional ser barrado ao longo dos últimos anos (ou décadas) por fatores desassociados a uma avaliação racional no país.

Enraizados a um sistema político que privilegia ações impulsivas e benefícios de curto prazo, os dirigentes, diretores e presidentes de clubes de futebol no Brasil aparentam seguir tendenciosos ao engajamento de decisões subjetivas, emotivas e passionais, almejando atingir de forma desesperada os resultados desejados através da especulação no controle da liderança. Sob tais circunstâncias, descartar treinadores ressoa simplesmente como uma resposta arbitrária e sem esforço frente a pressão externa (ou conflito político interno), uma tensão que pode ser precipitada por derrotas, por expectativas superestimadas ou até mesmo pela manipulação da opinião pública em veículos de imprensa esportiva.

De fato, ao compararmos a média de trocas de comando técnico do Brasileirão a outras importantes ligas de futebol do planeta, o Brasil se destaca com números alarmantes e assume a posição isolada como o campeonato que detém a taxa mais alta de mudanças de treinadores (considerando apenas trocas realizadas durante o Brasileirão, desde o primeiro ao último jogo de cada temporada – sem contabilizar mudanças que ocorreram entre uma edição e outra da liga nacional, que naturalmente incluiria os campeonatos estaduais e aumentaria os números).

Para tornar viável o emprego de treinadores efetivos e interinos, o estudo em questão definiu que os técnicos que foram publicamente anunciados como interinos e permaneceram no cargo até no máximo 15 dias (durante a transição entre a saída de um líder efetivo e a entrada do seu substituto) receberam a classificação final como interino. Tal medida respeitou a aplicação de um critério métrico (evitando contradições subjetivas) ao calcular que um treinador interino poderia ficar no cargo até aproximadamente um quarto do tempo médio que um treinador efetivo permaneceu durante a vigência do Brasileirão (apenas 65 dias, em média – que ilustra uma janela de 8 a 10 jogos na liga nacional).

Vale ressaltar que até a liga nacional ser equilibrada (em 2006) com a composição atual de 20 equipes na disputa, os anos de 2003 e 2004 foram conduzidos com 24 clubes participantes, enquanto 2005 reuniu 22 clubes.

Em termos descritivos, entre todas as 594 mudanças de comando técnico identificadas ao longo das 16 temporadas de Brasileirão sob análise (2003 a 2018), 131 trocas referem-se a passagens de treinadores interinos na função, cuja participação total representa somente 1,48% da nossa amostra.

A fim de facilitar o entendimento sobre o formato de pontos corridos na disputa da liga nacional, registramos cada um dos 264 treinadores que atuaram no período respeitando a ordem cronológica de suas aparições na competição. Desta forma, visualizamos que, em média, 34,6% dos treinadores por temporada são novos entrantes na Série A (ou seja, novos treinadores entrando pela primeira vez na competição de pontos corridos do Brasileirão), que ajuda a ilustrar uma abertura do mercado brasileiro a novos profissionais (independente da idade ou experiência do treinador).

Muito embora novas oportunidades teoricamente recebam espaço constante na Série A, torna-se nítida a insegurança da profissão no topo do cenário nacional. Porém, apesar de reclamações, argumentos e discussões públicas iniciadas pelos próprios treinadores acerca da volatilidade na função, a incidência de profissionais que se repetem na mesma temporada chamou muito a nossa atenção, pois aparentemente quase um quarto dos indivíduos (por ano) não colocam em prática a teoria que a sua classe defende

Em média (por ano), 22,7% dos treinadores atuantes no Brasileirão aparecem duas ou mais vezes na mesma temporada. Isto significa que, em média, 10 profissionais por ano aceitam assumir o cargo de treinador em pelo menos duas situações distintas durante a mesma competição (apesar de argumentos públicos contrários às trocas por parte da classe de treinadores no país). Tal repetição pode ocorrer por quatro motivos: (a) treinador exerceu a função como interino pelo menos duas vezes; (b) treinador exerceu a função como interino e também como efetivo; (c) treinador exerceu a função em pelo menos dois clubes distintos; (d) treinador exerceu a função duas vezes no mesmo clube, sendo recontratado após uma rescisão (voluntária ou involuntária).

Considerando a importância da sucessão de líderes (técnicos) por meio de planejamento estratégico na gestão esportiva (além de assustados com números tão expressivos, porém nada invejáveis sob uma perspectiva econômica no esporte), resolvemos aprofundar o tema e examinar minuciosamente as potenciais causas que antecedem as mudanças de comando técnico no futebol brasileiro, bem como as consequências das trocas de treinadores sobre o rendimento esportivo.

Por meio da econometria, respondemos exatamente as duas perguntas abaixo:

  1. Sobre as CAUSAS:
    Quais são os fatores determinantes para as trocas de comando técnico no Brasil?
  2. Sobre as CONSEQUÊNCIAS:
    Como as trocas de comando técnico impactam o desempenho esportivo no Brasil?

Visão geral de todas as mudanças de comando técnico inclusas na amostra (em ordem cronológica, 2003 a 2018)

A PARTE 2 trará as respostas da primeira pergunta do estudo, dissecando a evidência científica sobre as causas que determinam asmudanças de comando técnico no Brasileirão.

Em seguida, a PARTE 3 irá tratar das respostas da segunda pergunta do estudo, explicando o impacto da alta rotatividade de treinadores e as reais consequências sobre o rendimento esportivo.

Por fim, a PARTE 4 concluirá o estudo, revisando as principais implicações práticas em torno dos treinadores, dirigentes e torcedores interessados no avanço do futebol brasileiro.

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