Fim de ano, festas, Arnaldo deixou à beira do lago um sapatinho – não sei onde o conseguiu – com um pedido para o Papai Noel… Comovente. “Meu querido Papai Noel: para mim nada peço, que tudo tenho de sobra: minha caverna, meu lago de águas escuras e tranqüilas, e a companhia de meu amigo Bernardo. Na verdade, o que eu queria mesmo – e não sei se o senhor cuida desse assunto – é muita saúde e vida longa para alguns de nossos mais abnegados dirigentes esportivos, gente como os senhores Carlos Arthur e Ricardo Teixeira, e, se for possível, um tantinho também para todos os presidentes de confederações e federações esportivas, de modo que permaneçam o maior tempo possível à frente de seus pesados encargos. Quem sabe, de quebra, o senhor pode fazer com que dê tudo certo na Copa do Mundo de 2014 e que o Rio de Janeiro seja escolhido para sede das Olimpíadas de 2016, não importa o quanto se gaste nisso.
Sou sensível à maneira como Arnaldo acredita nas pessoas, mesmo quando desconfio delas. Meu ceticismo não evita que o Natal me torne diferente, vulnerável; não precisa muito para me comover nessa época do ano. Deixei o bilhetinho de Arnaldo onde estava e fui conversar com Aurora. Contei-lhe sobre a missiva do bagre.
– Corujas não acreditam em Papai Noel – ela disse – isso é coisa de bagres e de crianças, faz parte da natureza deles. Nós já nascemos não acreditando a não ser na comida nossa de cada dia e no trato dos filhotes, e, assim mesmo, só até emplumarem.
–
E você pediria algo no Natal?
– Sabe o que faço no Natal? Passo a noite à frente da TV. Sintonizo o canal Z33, aquele, e realizo sonhos – ela disse.
– Que sonhos? – perguntei.
E ela me disse de muitos, a maioria, impossíveis. Relato alguns. O canal Z33 só pega na toca de Aurora; transmite sonhos como se fossem realidades. A coruja gostaria que Las Vegas voltasse a ser o centro mundial da jogatina, reassumindo a primazia perdida para Wall Street. Ela também sonha ver os dirigentes do mundo chorando diante da morte de um povo inteiro na África, socorrendo-o antes dos bancos falidos dos Estados Unidos e da Europa. No Z33, na noite de Natal, os senadores da república brasileira descobrirão que existe um país chamado Brasil, habitado por pessoas chamadas brasileiros e brasileiras. E, no distante Iraque, seu tirano será enforcado por seu próprio povo.
Há mais de hora dizia Aurora de seus sonhos; para quem só pensava na comida de cada dia era de surpreender. Eu, impaciente com aquilo, desviei o assunto para o futebol, pois foi para afogar-me nele que, um dia, deixei as luzes da cidade e mergulhei no fundo de uma caverna.
– E no futebol, que sonhos há para realizar na noite de Natal? – perguntei.
– Banqueiros, deputados, senadores, presidentes, empresários e burocratas, não mais jogarão com dinheiros e vidas. Isto de fazer esporte ficará, exclusivamente, para os jogadores de futebol, os de basquetebol, de atletismo e outros.
Quando lhe perguntei sobre nossos grandes craques, Aurora disse que, por maiores que sejam, só receberão dinheiro pelo futebol que jogarem; não mais receberão para vender camisas, tênis, perfumes e lâminas de barbear. E o povo deixará de ser besta e acreditar que jogam para valer.
A conversa foi longa e não é o caso de ficar descrevendo detalhes. Num dado momento Oto passou como um raio, as pequenas garras segurando um maço de papéis, dos amigos que ainda insistem em lembrar de mim e cultivam o velho hábito dos cartões de Natal. Fui atrás dele, para saber de suas idéias sobre a data natalina. Peguei a correspondência e perguntei-lhe:
– E você Oto, o que pensa do Natal?
– Eu acho ótimo – ele respondeu. Oto era assim, curto e grosso.
Quase caí de costas quando ele me contou que estava preparando, com seus amigos morceguinhos, um grande coral, mais de mil vozes.
– E o que vocês vão cantar? – perguntei.
– Noite Feliz – disse o quiróptero, como se fosse o óbvio.
Aquele morcego não parava de me surpreender. Esbanjava otimismo. Sua vida era uma espécie de festa a ser comemorada todos os dias.
– E depois a gente vai fazer um jogo adaptado, casados e solteiros, uns cinqüenta para cada lado, no ar, com uma bolinha de vento – ele continuou.
– E quem são os casados e quem são os solteiros? – perguntei.
– Você nunca entenderia – ele me disse, impaciente, e ficou por isso mesmo.
E, em seguida, Oto saiu esvoaçante, fazendo manobras, rasantes, comemorando a vida que, para ele, era festa. Estava tão feliz que, na entrada da caverna, deu um mergulho a menos de um centímetro do bico afiado de Aurora, derrubando-a, de susto, do toco onde sentava. O sol se punha no horizonte limpo, vermelho, que desenhava em negro a silhueta do morcego atormentando a paz da coruja Aurora. A noite chegava; com ela, o Natal. Oto fará festa com seus amiguinhos, Arnaldo dará cabriolas no lago escuro, Aurora verá sonhos realizados na sua TV.
Eu? De minha parte só quero que exista Natal.
Para interagir com o autor: bernardo@universidadedofutebol.com.br
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