Categorias
Áreas do Conhecimento>Humanidades|Conteúdo Udof>Artigos Áreas do Conhecimento>Humanidades|Conteúdo Udof>Colunas Áreas do Conhecimento>Técnico Pedagógico|Conteúdo Udof>Colunas Artigos Colunas Colunas - Conteúdo Udof>Artigos Sem categoria

Rasgando a declaração dos direitos da criança

João Batista Freire & Rafael Castellani

Assistimos recentemente a um vídeo em que alguns pais vaiavam um garotinho de uns seis anos, aproximadamente, porque ele, brincando de ser goleiro durante um jogo entre crianças, tomou um gol. Cenas como essa, lamentavelmente, são mais frequentes do que imaginamos.   

No decorrer de nossa trajetória profissional, de décadas, como professores de Educação Física, lidando com a formação, acadêmica e cidadã, de jovens na Universidade, de crianças em escolas da educação básica e escolas de esporte, de jovens esportistas e com treinamento de alto rendimento em diversas modalidades, principalmente no futebol, cansamos de assistir cenas semelhantes às do vídeo em que o garotinho é vaiado. São cenas de humilhação e de abuso.

Crianças são frequentemente abusadas no esporte, ou porque são humilhadas, ou porque são submetidas a treinamentos exaustivos e de especialização precocemente, ou porque passam a ser responsáveis, desde muito cedo, pelo sustento da família, ou porque são agredidas verbalmente por pais, professores, técnicos, torcida.

São inúmeras as situações presenciadas por nós que denotam o quão abusiva e humilhante é, ou pode ser, a prática esportiva realizada por crianças e jovens: O que pensar quando um pai pula o alambrado e invade o campo para bater em uma criança que tinha feito uma falta no filho dele?  Por sorte esse pai foi contido a tempo por algumas pessoas com juízo, mas a violência já estava manifestada. Ou então, outro fato muito frequente, vaias e xingamentos de alguns pais contra o professor das crianças ou até contra as próprias crianças da equipe adversária.

Em 24 de setembro de 1990 o Brasil ratificou a Convenção Sobre os Direitos da Criança, que foi adotada pela Assembleia Geral da ONU em 20 de novembro de 1989. No artigo 31 dessa convenção, lê-se que “Os Estados Partes reconhecem o direito da criança ao descanso e ao lazer, ao divertimento e às atividades recreativas próprias da idade, bem como à livre participação na vida cultural e artística.” (O Brasil é um Estado Parte). No Artigo 32, a Convenção declara que “Os Estados Partes reconhecem o direito da criança de ser protegida contra a exploração econômica e contra a realização de qualquer trabalho que possa ser perigoso ou interferir em sua educação, ou que seja prejudicial para sua saúde ou para seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral ou social.”

Em nosso país, ratificamos solenemente a convenção, mas, na prática, pouco se fez. Em 1990 criamos no Brasil o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e, apesar da sua importância e do avanço que significou para a proteção de crianças e adolescentes, ainda são diariamente desrespeitados, passam fome, morrem de doenças que não deveriam mais existir, recebem educação de péssima qualidade, meninos e meninas (principalmente) são violentadas dentro das próprias famílias. Tivemos avanços, sem dúvidas, mas o prejuízo ainda é gigantesco. Já não se permite mais o trabalho antes dos 16 anos (embora ele exista em alguns lugares), mas, no esporte, é diferente. No futebol, por exemplo, uma criança de 14 anos, ou menos, pode ser submetida a treinamentos quase idênticos aos que realizam atletas profissionais adultos. Para dar conta das inúmeras sessões de treinamentos e competições, perdem dias, semanas e até meses de aulas. Crianças de 14 anos deixam suas residências, seus familiares e amigos para morar em alojamentos dos clubes com a missão de representar aqueles poucos (cerca de 3%) que conseguem a profissionalização no futebol. Antes mesmo dos 14 anos, algumas crianças arcam com a responsabilidade de garantir o sustento da família e alimentam a esperança de ascensão social. Crianças que possuem o sonho de tornar-se jogador ou jogadora profissional de futebol, podem sofrer abusos (inclusive, sexuais) no ambiente nem sempre confiável e seguro do futebol. Geralmente silenciam sua dor e escondem seu sofrimento com medo de terem que interromper esse sonho ou frustrarem seus familiares. 

Um futebol que foi forjado em brincadeiras de rua, nos clubes proíbe a brincadeira, em nítido desrespeito à convenção da ONU ratificada pelo Brasil. Cada vez mais cedo ocorre a especialização esportiva. Já existe a categoria de crianças de 6 anos de idade (sub 7). Daqui a pouco sub-6, 5, 4… aonde chegaremos? Há projetos em análise que diminuem para 12 anos a idade mínima para uma criança poder alojar-se em clubes. Contratos são feitos clandestinamente com as famílias para garantir aos agentes a exclusividade dos negócios, caso a criança se torne jogadora habilidosa e tenha seu potencial reconhecido no mundo do futebol.

No futebol brasileiro, criança não pode ser criança. Aquilo que foi escrito na Convenção Sobre os Direitos da Criança da ONU foi rasgado e jogado no lixo. Deveria ser um caso para o Ministério Público (MP), Conselho Tutelar, Unicef, não só no futebol, mas em qualquer modalidade esportiva. Com raras exceções, sobretudo a partir de denúncias grandes/graves e de viés jornalístico, MP, Conselho Tutelar e demais instâncias responsáveis por garantir a segurança e direitos das crianças e adolescentes pouco têm conseguido fazer.               

Sem contar a estupidez dos métodos. Professores e treinadores, alimentados pelo ego e orgulho de “revelar” grandes talentos, impulsionados por alguns agentes inescrupulosos, adestram pequenas crianças para que alimentem os lucros dos gananciosos que, sem qualquer pudor, arrancam o couro dos pequenos e pequenas, sugam-lhes as entranhas em busca do ouro que elas podem representar alguns anos adiante. É preciso que tratemos as crianças como crianças. Que devolvamos o jogo a elas. Que possam voltar a brincar e se divertir com o futebol e, acima de tudo, que sejam respeitadas e tenham os seus direitos garantidos.

Categorias
Áreas do Conhecimento>Técnico Desportivo|Conteúdo Udof>Artigos Áreas do Conhecimento>Técnico Desportivo|Conteúdo Udof>Colunas Áreas do Conhecimento>Técnico Pedagógico|Conteúdo Udof>Colunas Artigos Colunas Colunas - Conteúdo Udof>Artigos Conteúdo Udof>Artigos|Conteúdo Udof>Grupos de Estudos>CEFOR-UFJF Conteúdo Udof>Artigos|Sem categoria Conteúdo Udof>Biblioteca|Áreas do Conhecimento>Técnico Pedagógico

A “pedagogia da fila” em escolas de futebol

Rafael Castellani & João Batista Freire

Cansamo-nos de ler reportagens, artigos e comentários sobre o fim do futebol brasileiro, aquele futebol que conquistou o mundo por cinco vezes e em tantas outras o encantou, e que se parecia com os jogos de bola nas ruas e campinhos brasileiros. As pessoas falam sobre isso como se não houvesse uma razão para o fim do futebol que tanto fascinou o mundo todo. E quando essas pessoas se tornam responsáveis por ensinar futebol às crianças e adolescentes, quer seja nas chamadas Escolas de Futebol, projetos sociais ou nas equipes de base dos clubes profissionais, não sabem ou não querem que seus alunos aprendam a jogar futebol do mesmo modo como aprenderam nossos maiores craques.

Uma rápida caminhada pelas ruas é suficiente para ver que em muitos dos espaços onde, anos atrás, as crianças brincavam de futebol, quais sejam, os campinhos de várzea, as praças e as próprias ruas, atualmente vê-se escolas de esporte, as famosas “escolinhas” de futebol, com seus campos de grama sintética e mensalidades, muitas vezes, exorbitantes. Onde havia crianças se divertindo, driblando umas às outras, fazendo tabelinhas e gols, hoje há crianças em fila, esperando sua vez de driblar cones.   

Já falamos em textos anteriores sobre a “A diferença entre driblar e fintar um cone e uma pessoa”. Nosso objetivo, neste texto, é abordar as frequentes filas nas quais crianças e jovens aguardam sua vez para tocar e brincar com a bola. É impensável para nós, que apreciamos um futebol lúdico, livre e criativo, que professores/treinadores ainda tenham a fila como, praticamente, a base de sua pedagogia.

A fila, recurso pedagógico muito utilizado, inclusive, em escolas de educação formal, nos ciclos iniciais (Infantil e fundamental 1), é predominante em escolas de futebol e projetos sociais. Ao colocar seus alunos (e atletas) em filas, professores e treinadores buscam manter o controle sobre eles, garantindo uma determinada organização. Pretendem manter, a todo custo, a disciplina de seus alunos/atletas. Enquanto isso, crianças que vão às escolas de futebol para “brincar de bola”, aguardam ansiosamente o momento para tê-la aos seus pés, mesmo que por poucos segundos.   Há, certamente, ocasiões em que filas são necessárias. Reconhecemos que não é fácil manter uma disciplina mínima entre os alunos quando se trata de uma quantidade grande deles em uma turma. Porém, se for absolutamente necessário manter filas, que elas sejam formadas de modo a não tirar das crianças e jovens o tempo tão aguardado de contato com a bola. O que temos presenciado, principalmente, em escolas de futebol, é crianças, depois de aguardarem muitos minutos em uma fila, realizarem uma corrida controlando a bola e dando um chute ao gol para, em seguida, retornarem à fila. Isso é altamente frustrante e, sem dúvida, nada tem a ver com aprendizagem do futebol.

Imaginemos duas situações. Na primeira, uma professora tem uma turma de 30 alunos em uma escola de futebol e pretende, em uma determinada aula, ensinar condução de bola para as crianças, que possuem uma média de idade de dez anos, meninos e meninas. Ela decide organizá-los em uma fila única, atrás de uma sequência de oito cones. Ao sinal da professora, o primeiro aluno da fila sai correndo, contorna os cones e, ao final, recebe uma bola da professora, que ele deve chutar em direção a um gol vazio. Como se trata de trinta alunos, esse processo demorará, até que o último realize sua ação, cerca de oito minutos. A aula tem uma hora de duração. Se os alunos fizerem apenas esse exercício, cada um deles realizará a ação aproximadamente sete vezes.

Na segunda situação, a professora organiza os alunos em seis filas com cinco deles em cada uma. Três filas de frente para três gols defendidos por três goleiros e três filas à frente dos gols. As três filas de frente para os gols serão de alunos atacantes; as três à frente dos gols serão de defensores. Ao sinal da professora, os três primeiros atacantes das três filas sairão conduzindo uma bola. Os três primeiros defensores se colocarão à frente dos atacantes e, sem tirar-lhes a bola, atrapalharão a condução dos atacantes. Os atacantes conduzem a bola por cerca de dez metros, ao final dos quais levam a bola para a direita ou para a esquerda e finalizam ao gol. Nessa situação, os alunos cumprirão uma roda completa de exercícios em apenas um minuto, aproximadamente. Em seguida os papéis são trocados e os defensores viram atacantes. Em uma aula de 60 minutos repetiriam os movimentos cerca de 30 vezes. Portanto, não precisariam fazer somente esse exercício, bastaria que gastassem, nele, apenas vinte minutos, por exemplo.

A primeira situação é um exemplo de mau uso da fila. Os alunos nada aprendem de futebol, primeiro, pelo pequeno número de repetições, o que faz com que o contato do praticante com a bola seja muito reduzido. Em segundo lugar, é consenso na literatura do campo da pedagogia do esporte a necessidade de ruptura com práticas pedagógicas como a que serviu de exemplo, tipicamente de natureza analítica/tecnicista, que fragmentam o jogo, a partir do entendimento de que o ensino do futebol se dá a partir da soma das partes que compõem o jogo, ou seus fundamentos. E isso em nada ajuda o atleta a resolver os problemas que o jogo impõe. Por fim, aprenderão aquilo que fazem, isto é, a esperar em uma “interminável” fila e a contornar cones, objetos que, num jogo de bola, não existem. Fintar cones não tem relação alguma com fintar pessoas. Não se trata, portanto, de uma escola para ensinar futebol.

Na segunda situação, a professora continua usando a fila, mas apresenta um exemplo de bom uso dela. As crianças não deixam de brincar de jogar bola, fazem uma brincadeira que adoram fazer, que é driblar. Driblam pessoas e não cones. A condução da bola com um adversário atrapalhando faz sentido para o jogo de bola, e tudo isso é feito para atingir o objetivo de chutar ao gol. O número grande de repetições dessa ação favorece a aprendizagem, neste caso, de meios técnico-táticos (condução de bola, drible/finta, defesa e finalização) que atuam em conjunto, e os ajudam a lidar com situações típicas de um jogo de futebol. Em uma aula, repetir a ação 30 vezes é bem diferente de repeti-la 7 vezes. Além disso, quando não estão conduzindo bolas e atacando, os alunos estão defendendo. Sem contar a atuação dos goleiros. Realizar conduções de bola, defesas, fintas e finalizações na segunda situação faz muito mais sentido que realizar ações apenas para obedecer aos comandos da professora.

As filas podem ser usadas, embora possamos lançar mão de outras alternativas mais lúdicas. Porém, como buscamos discorrer neste texto, é possível recorrer às filas, desde que elas não prejudiquem a aprendizagem e tampouco diminuam o prazer e interesse da criança pelo jogo de bola.

Categorias
Áreas do Conhecimento>Técnico Desportivo|Conteúdo Udof>Artigos Áreas do Conhecimento>Técnico Desportivo|Conteúdo Udof>Colunas Artigos Biblioteca Conteúdo Udof>Artigos Conteúdo Udof>Biblioteca|Sem categoria Conteúdo Udof>Entrevistas|Sem categoria Entrevistas Entrevistas Sem categoria Sem categoria|Conteúdo Udof>UdoF na Mídia

PONTO CEGO – PARTE 3

Entenda o ponto cego que bloqueia progressões consistentes

Intrigado pelas instabilidades recorrentes que prevalecem em constante renovação nos clubes de futebol do território brasileiro devido às frequentes decisões superficiais voltadas a tão somente desqualificar treinadores profissionais, este estudo se orientou em revelar os efeitos colaterais desencadeados por transições de comando técnico durante o período competitivo. Curiosamente, muito embora a expectativa original por trás das decisões de mudança de liderança técnica condicione o pensamento convencional a acreditar que exista um suposto atalho ao sucesso, as experiências práticas testemunhadas por 30 profissionais ligados a uma múltipla variedade de comissões técnicas ao longo de suas carreiras no futebol brasileiro e internacional manifestaram uma direção oposta à expectativa dos dirigentes e da opinião pública. Isto é, contrário aos argumentos superficiais defendidos por quem frequentemente descarta treinadores sem embasamento objetivo no país, o desempenho e o rendimento esportivo de uma equipe profissional de futebol tendem a se reprimir, e não a progredir, mediante a volatilidade do seu comando técnico.

Ao encarar uma série de restrições e limitações desafiadoras durante as trocas de treinadores, os profissionais que operam nos bastidores da estrutura esportiva cultivam alternativas inovadoras para assimilarem, lidarem e se ajustarem tanto às rupturas de suas rotinas quanto aos distúrbios causados no processo de evolução coletiva. A escala e a direção desses distúrbios são impulsionadas por distintas combinações de expectativas, práticas de trabalho e comportamentos conflitantes nos domínios individual e coletivo da organização. Fundamentalmente, (uma ou mais) alterações de comando técnico ao longo da mesma temporada moldam uma cultura de restrições contraprodutiva para o clube, cujos efeitos colaterais afetam a mútua colaboração necessária para um melhor desenvolvimento esportivo com o capital humano que sustenta a cadeia de valor da instituição.

Líderes organizacionais que confiam no processo emergente de excelência coletiva tendem a empoderar o potencial humano e promover uma comunicação autêntica, a fim de apoiar uma mudança organizacional positiva. Nesse sentido, uma “mudança positiva” para um clube de futebol profissional representaria uma oportunidade de superar limitações pré-existentes, como os obstáculos já mapeados, antecipados e até bem conhecidos dentro de uma temporada competitiva. Para efeitos práticos, o treinador – aquele que foi inicialmente selecionado e empregado para liderar a equipe principal – receberia a confiança e o respaldo necessários para otimizar as interações com a cadeia de profissionais pertencente à estrutura esportiva da organização. Desse modo, uma “mudança” não deveria ser entendida como uma reposição de nomes em diferentes cargos, seja no posto do treinador ou qualquer outra função dos bastidores, pois tal decisão apenas se manifesta com a finalidade de transferir uma suposta culpa a uma única pessoa (ou grupo de pessoas, no caso de uma demissão de toda a comissão técnica) frente a cenários desafiadores durante a temporada. Pelo contrário, a “mudança” deveria se relacionar ao realinhamento de atitudes e/ou comportamentos entre os colaboradores do clube. Tal situação pode ser percebida como uma tensão positiva que fomenta padrões de aprendizado e inteligência coletiva. Ou seja, quando tratado devidamente como um organismo coletivo, um clube de futebol representa um sistema de tensões que alavanca possibilidades de progressão, em vez de uma entidade estática bloqueada pela reincidência de restrições.

Com base nesse raciocínio, os entrevistados reconheceram que os treinadores dependem prioritariamente de relações prósperas, tanto dentro como fora de campo. Para influenciar os padrões comportamentais de suas equipes, assim como o seu estilo de jogo competitivo mais desejado no contexto do futebol profissional, espera-se que os treinadores tenham condições de se envolver com treinamentos e métodos fluídos, sequenciais e reflexivos como parte do processo esportivo. Dessa forma seria possível oferecer um potencial de construção consistente dentro do clube. Entretanto, tão logo alterações de liderança técnica são impulsionadas com frequência durante a competição, o rendimento esportivo evidentemente demonstra uma contradição entre os distúrbios desencadeados por comandos voláteis e o cenário ideal defendido pelos especialistas das áreas de saúde e desempenho humano.

Dado o senso de urgência, impaciência e vulnerabilidade em que os treinadores profissionais de futebol operam, tensões fundamentais são originadas a partir de diferentes prioridades na relação de um novo treinador com os bastidores da estrutura esportiva. Embora o novo treinador carregue a expectativa de produzir sinais de melhoria imediata (a todo momento enquanto permanecer empregado), os profissionais do clube reconheceram que tensões podem vir à tona devido ao fato do seu foco estar voltado ao desenvolvimento dos jogadores em prazos superiores ao do novo treinador. Além disso, os profissionais também identificaram que, ao invés de transformar tensões em possibilidades de progressão, as trocas de treinadores involuntariamente criam uma cultura de restrições que permeia todos os participantes do processo esportivo. Nesse tipo de cultura contraprodutiva, comportamentos (auto)defensivos que visam reter o poder e o controle prevalecem nítidos entre os líderes da organização, como no caso dos dirigentes de clubes de futebol. Frequentemente, tais comportamentos contribuem para a formação de um sistema subdesenvolvido, cujo rendimento insatisfatório espelha os receios da liderança organizacional em atender novas normas e superar pressões internas. Ou seja, em vez de aceitar os desafios e possibilitar progressões com consistência, a cultura de restrições representa um contexto que reduz o potencial de colaboração humana.

Não se trata tão somente de cessar as oscilações de comando técnico ou de manter o(s) mesmo(s) treinador(es) empregado(s) ao longo da(s) temporada(s). Tal alegação se posicionaria tão superficial e irrealista quanto as decisões de descartes recorrentes e já proliferadas no território brasileiro. Na prática, a continuidade de um processo esportivo se baseia menos na estabilidade e mais na adaptabilidade de interações entre os agentes e suas estruturas. Sem testemunhar esforços mútuos entre a liderança e a rede de conexões internas da organização esportiva, torna-se menos provável que as restrições organizacionais sejam reformatadas rumo a possibilidades de transformação por meio da inteligência coletiva. Por exemplo, um novo treinador pode querer repetir a mesma escalação na sua equipe, utilizando os mesmos jogadores em partidas consecutivas, mas os profissionais da estrutura esportiva devem contabilizar e ponderar as demandas competitivas anteriores, assim como qualquer excesso de viagem ou ausência de descanso que possam conjuntamente afetar a recuperação dos jogadores entre as partidas em questão. Do mesmo modo, um novo treinador pode tentar persuadir um jogador que esteja se recuperando de uma lesão a pular etapas no seu período de transição e logo participar de sessões de treinamento mais intensas no campo, porém os profissionais da estrutura esportiva devem seguir rigorosamente os protocolos e critérios definidos pelas áreas de saúde responsáveis, a fim de assegurar que o jogador retorne ao campo somente quando apresentar as condições mais adequadas e realistas aos seus parâmetros individuais.

Apesar dos entrevistados terem reforçado a importância em saber inspecionar e orientar uma equipe de jogadores como uma complexa rede de interações humanas e movimentos comportamentais no campo (tanto em treinos como em competição), eles também enfatizaram como um novo treinador tende a se guiar por uma mentalidade defensiva na confecção do seu estilo de jogo, utilizando um pensamento convencional que o faz acreditar ser preferencial (e mais provável) evitar derrotas a fim de proteger o seu emprego. Contraditoriamente, entretanto, jogar com o foco na defesa costuma gerar menos controle da bola e condicionar espaços mais apertados para minimizar as ações do adversário, afetando as possibilidades de movimentos criativos com a bola para aumentar a precisão das oportunidades ofensivas durante os jogos.

Seguindo a argumentação dos entrevistados, conforme os novos treinadores priorizam os seus próprios métodos e preferências com o objetivo de reafirmar a sua posição hierárquica na instituição, os profissionais alertaram que repentinas modificações metodológicas representam um fator de risco desnecessário para o desenvolvimento dos jogadores. Particularmente durante a temporada competitiva, há relatos na literatura acadêmica sobre redirecionar a periodização de treinos de força com alternativas mais eficientes na aplicação de cargas segundo as condições individualizadas de cada jogador. Contudo, tanto o tempo disponível para treinamentos quanto o monitoramento de cargas nas sessões de treino são substancialmente afetados no contexto do futebol brasileiro, o que potencialmente leva os especialistas das áreas de saúde e desempenho humano a testemunharem maiores riscos de lesão, danos musculares e estresse fisiológico. Na prática, o processo voltado a monitorar as cargas de treinamento se destaca como um aspecto primordial nos bastidores de uma equipe de alto rendimento, sobretudo a fim de apoiar efetivamente a recuperação fisiológica e psicológica dos jogadores. Portanto, quando as prioridades do clube são subestimadas devido ao favorecimento orientado por trocas de treinadores, a impaciência míope que força resultados inevitavelmente compromete as estratégias de prevenção de lesões e controle de cargas durante a competição.

Canalizando os efeitos colaterais ao domínio individual dos entrevistados, tornou-se revelador como as alterações de comando técnico refletem um fenômeno problemático aos colaboradores do clube, tanto por uma perspectiva profissional quanto pessoal. De um modo geral, os membros dos bastidores da estrutura esportiva absorvem múltiplas ramificações que restringem o seu tempo, a sua confiança e os seus incentivos. Tais restrições travam a condução de tarefas de alta relevância para a organização. Por exemplo, monitorar e instruir apropriadamente os jogadores, resguardar os protocolos internos entre as áreas de apoio à comissão técnica, assim como estimular decisões com base em evidências contextualizadas aos jogadores e à equipe. Na realidade, a pressão absorvida pelos profissionais tende ainda a sofrer sobrecargas devido à incerteza da continuidade de seus empregos, à subjetividade dos estilos de liderança, além de contradições metodológicas originadas pela sucessão de comandos técnicos vulneráveis.

Ameaças iminentes são expostas ao entendimento dos entrevistados tão logo eles compartilham necessidades de apoio junto a novos treinadores que extrapolam a sua resistência frente às práticas já implementadas no clube, prejudicando a qualidade da comunicação interna no processo esportivo. Contraídos por um comportamento que limita o potencial humano ao invés de alavancar oportunidades rumo ao melhor rendimento, torna-se plausível reconhecer como lideranças que favorecem a imposição de metas e opiniões precipitadas acabam por gerar um senso de dúvida, impactando as relações interpessoais entre os profissionais que tentam preservar algum nível de consistência durante a temporada. Lamentavelmente, até mesmo os efeitos prejudiciais às condições de saúde dos colaboradores do clube aparentam passar despercebidos (tanto a eles próprios quanto aos líderes da instituição) conforme as trocas de treinadores se materializam, transportando desafios que ameaçam iniciativas de cuidado pessoal em longo prazo. Nesse cenário de descuido com o ser humano que ocupa distintas funções na estrutura esportiva, destacaram-se o enfraquecimento da (auto)confiança e da motivação, além de potenciais sintomas de esgotamento (burnout).

As noções de colaboração e aprendizagem mútua são reiniciadas a cada substituição de comando técnico. Sobretudo em cenários mais agravantes, caso o novo treinador centralize as decisões e articule ideias conflitantes, os profissionais da estrutura esportiva testemunham restrições em suas tentativas de estabelecer rotinas de trabalho, temporariamente repriorizando suas responsabilidades de modo a se adequarem ao novo regime de liderança. Além disso, o receio imposto por relações menos familiares e o desequilíbrio de poder na hierarquia do clube também atrapalham os esforços dos colaboradores em suas tentativas de harmonizar o ambiente e minimizar discordâncias com a maior cautela possível.

Essencialmente, o inevitável desentrosamento de práticas e comportamentos no trabalho conjunto entre o treinador, a comissão técnica e os demais especialistas das áreas de saúde e desempenho humano empregados pelo clube acaba por exigir e depender do “tempo” como um componente chave à sinergia. A partir do “tempo” como recurso prioritário, o processo que fomenta a excelência coletiva na rede de conexões que circunda o comando técnico poderia, enfim, progredir rumo a um desenvolvimento mais integrado e consistente. No entanto, a realidade que impulsiona as frequentes trocas de treinadores no território brasileiro oferece o “tempo” como um recurso renovável apenas nas oportunidades em que as especulações de curto prazo sejam atendidas com resultados numéricos favoráveis. Caso contrário, os profissionais que transitam nos bastidores demonstraram estar cientes que uma próxima mudança de comando torna-se previsível e que, novamente, acarretará distúrbios nas suas tentativas de construção de hábitos dentro do clube. Visto como os colaboradores são capazes de antecipar a repetição desse mecanismo, eles próprios aparentemente revisam a sua compreensão de práticas institucionais e passam a desempenhar comportamentos adaptáveis às transições de liderança. Isto é, enquanto os efeitos colaterais são negligenciados pelos dirigentes do clube, a ilusão de um atalho ao sucesso é renovada conforme os treinadores entram e saem do comando.

CONCLUSÃO

Este estudo buscou explorar uma área de notável relevância ao desempenho esportivo de uma equipe de futebol no contexto do alto rendimento brasileiro, direcionando o foco da investigação a um ângulo tipicamente ignorado pelas discussões sobre trocas de treinadores profissionais. Em suma, ao analisar os efeitos colaterais que são involuntariamente desencadeados aos domínios coletivo e individual da organização (nesse caso, um clube de futebol), o estudo fez-se valer de depoimentos substanciais para explicar as ramificações escondidas pelas mudanças de comando técnico, cuja reincidência inevitavelmente afeta o desempenho dos jogadores e dos profissionais que transitam nos bastidores da estrutura esportiva do clube. Fundamentalmente, uma cultura de restrições imposta por práticas de trabalho e comportamentos conflitantes revelou como os jogadores tendem a interagir, treinar e atuar durante a temporada competitiva mediante oscilações no regime de liderança. Ademais, os colaboradores que integram a comissão técnica e as áreas de saúde e desempenho humano demonstraram como novos treinadores frequentemente desafiam os seus compromissos, dificultando a construção de rotinas e práticas comportamentais que possam solidificar uma consistência interna ao desenvolvimento de longo prazo.

Embora o estudo justifique a continuidade, a harmonia e o entrosamento das lideranças técnicas junto às instituições que decidiram empregá-las para a condução de (pelo menos) uma mesma temporada, o conteúdo apresentado não pretende acomodar qualquer ingenuidade que possa desconsiderar trocas de profissionais em cenários onde líderes e colaboradores interagem por objetivos coletivos. Visando equipar uma plataforma de argumentação baseada em experiências confiáveis, este estudo revela o impacto colateral gerado por mudanças de treinadores durante a temporada competitiva. Portanto, os líderes organizacionais (nesse caso, os dirigentes dos clubes de futebol do Brasil) deveriam defender, preferencialmente, uma avaliação substancial nos bastidores da estrutura esportiva antes de uma eventual tomada de decisão sobre o treinador do momento. Isto é, ao questionar as potenciais ramificações e consequências internas que podem comprometer o presente e o futuro esportivo da instituição, torna-se mais realista evitar uma turbulência desnecessária aos domínios que valorizam efetivamente as prioridades do clube.

Dentro e fora de campo. Com e sem a bola. O futebol reflete, enfim, um jogo de comportamentos cujo progresso depende do entrosamento entre os seres humanos que colaboram pela mesma cadeia de valor.

“A prosperidade é a melhor protetora de princípios.”

Mark Twain

Para acessar o estudo completo, clique aqui.

Categorias
Áreas do Conhecimento>Técnico Desportivo|Conteúdo Udof>Artigos Áreas do Conhecimento>Técnico Desportivo|Conteúdo Udof>Colunas Artigos Conteúdo Udof>Artigos Conteúdo Udof>Artigos|Conteúdo Udof>Grupos de Estudos>CEFOR-UFJF Conteúdo Udof>Entrevistas|Sem categoria Sem categoria

PONTO CEGO – PARTE 2

Observe os efeitos colaterais das mudanças de treinadores

Sob uma perspectiva teórica, esta investigação qualitativa explora as recorrentes instabilidades ocasionadas por mudanças de comando técnico durante a temporada competitiva. Para engatar o raciocínio, este estudo compreende que uma organização esportiva deve representar não somente uma hierarquia estável, mas sobretudo uma rede de conexões sociais em constante mutação. Tais conexões envolvem colaboradores que compartilham distintas influências em cadeia, potencialmente moldando um sistema próspero a se destacar com consequências positivas. Aproximando-se a uma abordagem paradoxal, tensões e oposições organizacionais tendem a surgir como partes de um processo emergente que desafia suposições convencionais por meio da colaboração criativa e do aprendizado coletivo. Consequentemente, a ênfase interna se desloca a partir das restrições organizacionais rumo às possibilidades de aprimoramento contínuo. Isto é, a realidade das limitações numa organização esportiva deve ser tratada como uma possibilidade para alavancar a sua transformação por meio do capital humano presente na cultura organizacional. Portanto, ao enxergar um clube de futebol como um organismo coletivo, torna-se possível examinar e compreender os efeitos colaterais provenientes das transições de treinadores no âmbito profissional.

Apesar dos entrevistados identificarem um viés positivo entre as múltiplas interações e experiências acumuladas enquanto os mesmos trabalharam com um elevado número de treinadores ao longo de suas carreiras, os resultados deste estudo revelam os efeitos colaterais, indiretos e não-intencionais originados pelas decisões que optam por mudanças de comando técnico no meio da(s) temporada(s) do futebol brasileiro. A fim de replicar os depoimentos dos entrevistados com maior assertividade e sem comprometer o anonimato dos seus testemunhos, o texto apresenta uma série de palavras e frases entre “aspas”, que destacam as informações devidamente associadas ao processo de análise do conteúdo qualitativo neste estudo acadêmico. Ademais, citações individuais com maior aprofundamento também foram utilizadas para enaltecer em detalhes algumas das experiências dos profissionais.

Interrogando os efeitos colaterais sobre o desempenho da equipe:

  • No domínio coletivo, como as mudanças de treinadores afetam o desenvolvimento dos jogadores?

ESTILO DE JOGO PRAGMÁTICO

Inicialmente, os entrevistados reconheceram como as reposições contínuas de treinadores levam os próprios líderes técnicos a cultivarem um senso de pragmatismo dentro de campo durante os seus compromissos com tempo limitado no cargo. Empregados, porém cientes do perigo constante de demissão, “os treinadores implementam um jogo mais pragmático, procurando se defender para correr menos risco possível”. Ao endossar “um comportamento que é menos ousado, menos criativo e menos arriscado”, eles optam por atuar com alternativas mais simples e seguras, originando “um jogo feio e defensivo”. Supostamente, os treinadores minimizam a criatividade de seus jogadores e a evolução de suas equipes para implementarem um jogo reativo, cuja prática afeta o fluxo de informações proativas dentro de campo. Três entrevistados exemplificaram o raciocínio que permeia a prática:

“Existe uma relação muito próxima com a qualidade do futebol no país. O medo de treinar e do resultado que o jogo gera nos treinadores se reflete num jogo mais reativo. Nisso, pensando em longo prazo (o que para mim está muito claro), o futebol brasileiro está caminhando para a decadência muito em função dessa busca incessante pelo resultado. Quando você pensa só no resultado, você não desenvolve, você não promove criatividade. Você não valoriza o trabalho pelo que o jogo apresenta, você valoriza o trabalho só pelo resultado. E aí todo mundo quando entende o mecanismo, por mais corajoso que seja, começa a viver o sistema, começa a jogar em função do que o sistema apresenta. Eu já vi treinadores criativos mudando o jeito de jogar em função do que essa cultura impõe.”

“Eu vejo que os treinadores e as comissões técnicas no Brasil têm uma ideia sobre como trabalhar com alguns conceitos e comportamentos para melhorar o futebol do clube. Ao mesmo tempo, assim que os primeiros resultados negativos aparecem (e você já sabe que está num ambiente instável), a comissão não concentra toda a sua energia no desenvolvimento da equipe, mas sim em vencer a próxima partida para manter o emprego. Eu acho que isso afeta totalmente a qualidade do nosso jogo, porque sem ideias, sem treinamentos e sem tempo para maturar as ideias, nós não vamos melhorar o nosso futebol. E como a gente necessita desse resultado a curto prazo, muitas vezes você abdica das suas ideias para entregar o resultado. Você abdica, por exemplo, de tentar melhorar os jogadores individualmente, ou coletivamente, para focar no resultado do fim de semana. Isso vai virando uma bola de neve, porque o seu time não vai apresentando uma evolução, um futebol melhor com o passar do tempo, e você fica mais concentrado no resultado do que no processo de desenvolvimento da equipe.”

“A autoestima do treinador brasileiro é muito arranhada em decorrência dessas trocas. O jogo brasileiro ficou um jogo feio, um jogo difícil? Claro! O cara tem contas a pagar, tem família a sustentar. Aí ele vai jogar domingo fora de casa e vai colocar o time lá na frente sabendo que, se ele perder, na segunda-feira ele estará demitido? Como você espera que o cara vá propor o jogo? Quem propõe o jogo são as pessoas que têm multas altíssimas nos seus contratos. É isso o que ocorre, não agora, há muito tempo você vê jogos chatos no Brasileirão. É esse o esquema. Aí esse treinador é defensivo, vai se rotular que esse treinador não sabe colocar a equipe para jogar na frente. Ele sabe sim, mas ele sabe muito mais que, se ele perder, na segunda-feira ele vai estar desempregado e muito preocupado em pagar as suas contas.”

DIVERGÊNCIA METODOLÓGICA

Substituições repentinas de treinadores durante a mesma temporada também tendem a desequilibrar metodologias de treinamentos, prejudicando a evolução dos jogadores devido a divergências em torno das características e preferências entre distintas lideranças. Conforme assinalado pelos profissionais, “existem claramente perdas entre treinadores com perfis opostos”, pois os jogadores devem responder a “diferentes metodologias que afetam o seu desempenho”. Mesmo quando há semelhanças no perfil do líder técnico, “trata-se de um processo lento e perigoso durante a competição” devido à probabilidade de mudanças radicais em métodos e rotinas. Dois entrevistados aprofundaram a explicação:

“A gente sabe que precisa de continuidade para implantar um trabalho de ordem técnica ou física para desenvolver um atleta, mas hoje em dia não tem como desenvolver um trabalho, qualquer que seja a ordem. O atleta está em constante mudança de metodologias durante o ano inteiro. Não tem como. São formas e métodos diferentes, isso dificulta muito. A gente já tem a dificuldade normal do calendário com constantes viagens e jogos, sendo poucas semanas inteiras de trabalho para recuperar o atleta, dar uma base de maior sustentação ou melhorar um pouco a força, por exemplo. A gente já tem um trabalho de quebra-cabeça tão grande e a troca do treinador dificulta ainda mais para saber qual é a prioridade. Se é a manutenção no cargo, se é o desenvolvimento do atleta, a prevenção de lesão, a recuperação, ou botar ele para jogar de qualquer forma para ganhar o próximo jogo. Com certeza o desempenho fica em segundo plano.”

“Quando se troca toda a comissão, por mais que eu chegue ao clube, olhe o relatório e dê sequência, sempre existe algo diferente no que se faz, no dia-dia, nas influências em como fazer as coisas. Por exemplo, se um novo treinador executa um trabalho para a sua equipe ficar mais rápida dentro de um curto espaço de tempo, essa abordagem talvez não se sustente com um embasamento adequado de preparação. Mais tarde, se outro profissional vier a substituí-lo com um pensamento ou proposta diferente, haverá um prejuízo estrutural. Você vai fazer mudanças e com isso começam as lesões musculares, porque a solicitação neuromuscular foi orientada e praticada pelo atleta num momento em que ele ainda não estava preparado para isso. Quando há continuidade, a tendência é não ter tantos problemas, mas quando se troca tudo, vai depender das circunstâncias, dos relatórios, de quem analisa. Portanto, é um pouco mais complexo. Não é assim: ‘mudou, não tem problema.’ Tem problema sim!”

Os profissionais alertaram que as transições de treinadores tendem a elevar os riscos de negligência sobre as estratégias de controle de carga e prevenção de lesões já implementadas nos bastidores do clube. Isto porque a variação metodológica que acompanha uma mudança de comando técnico no meio da temporada pode aumentar as incidências de fadiga, reclamações de ordem física, bem como lesões em curto prazo. Ao encarar distintos métodos de treinamento, “o corpo do atleta é o componente que mais sofre, pois uma alteração de conduta se reflete nos estados físico e cognitivo dos jogadores”. Portanto, “se a carga de trabalho é aumentada devido a um sistema de jogo diferente, as consequências serão sentidas pelo organismo dos atletas, já que eles ainda não se encontram prontos para a nova demanda”. Dois entrevistados complementaram a manifestação de uma divergência metodológica ocasionada pela troca de treinadores:

“Eu vejo um impacto muito grande, principalmente nas primeiras semanas de trabalho de um novo treinador, porque a rotina dos atletas muda completamente. Por exemplo, o antigo treinador só treinava pela manhã, mas agora eles treinam no período da tarde. Ou então, o preparador físico que só trabalhava com os jogadores na academia agora passa a sessões funcionais no campo. Tudo isso obviamente impacta os atletas e respinga na gente. Vai sobrar para nós aqui na fisioterapia, sabe? Esse impacto com uma nova comissão técnica é nítido para mim porque os sintomas dos jogadores aumentam muito na minha demanda da fisioterapia. Eu catalogo todas as informações de entrada e saída dos atletas no nosso departamento, a frequência de cada um atendendo o trabalho preventivo, então eu consigo perceber a diferença.”

“Você pode ter duas metodologias excepcionais, só que elas são diferentes. Se você quebrar a primeira e colocar a segunda, por melhor que elas sejam, vai demorar para fluir. Além disso, o clube geralmente muda a comissão toda, agravando ao mesmo tempo as exigências técnicas e físicas. Para você alterar isso, são meses de trabalho, não é de um dia ao outro. Mudar a carga de trabalho por um novo sistema de jogo tem uma repercussão grande no organismo do atleta. Ele está pronto para aquilo? O que eu acho que falta é justamente o clube pensar a médio e longo prazo. Não é apenas o treinador que faz a diferença, mas sim todo esse processo e estrutura metodológica do clube pela manutenção de uma filosofia que possa obter rendimento.”

ATRASOS NO ENTROSAMENTO DA EQUIPE

Ainda sob o viés do desempenho coletivo, as mudanças de liderança técnica são percebidas como uma medida disfuncional e contraprodutiva para construir sinergia entre os jogadores, considerando que, em geral, os treinadores trabalham predominantemente com uma mentalidade de curto prazo e baseada em relações superficiais. Segundo os entrevistados, o clube deveria defender uma consistência de “treinos, jogos e revisões sequenciais”, caso contrário “os jogadores ficam sobrecarregados com diferentes estímulos até conseguirem se acostumar a um novo posicionamento, estilo ou proposta de jogo”. Afinal, “as grandes construções de equipes levam temporadas de trabalho conjunto, mas no Brasil o treinador está muito suscetível à demissão, por isso não existe coesão de grupo significativa”. Expressando suas preocupações sobre como a interatividade dos jogadores pode ser afetada, três profissionais fizeram questão de explicar o desfecho que se repete com frequência em clubes do Brasil:

“A mudança do treinador retorna os jogadores à estaca zero, onde uma minoria se privilegia, mas essa oscilação é muito mais maléfica do que benéfica. Ela freia a evolução de alguns atletas. Um jogador serve, outro não. Um recebe mais ou menos afeto, levando a uma queda técnica, física e tática. Isso é muito evidente. A perda de confiança e de qualidade nos assusta ao ponto que nós (da comissão) nos questionamos se estamos trabalhando com os mesmos jogadores que já havíamos visto antes. É muito prejudicial essa troca de treinadores porque ela não favorece a evolução do futebol como um todo.”

“O grande problema que eu vejo é na proposta de jogo e na função que os atletas têm que desempenhar, porque muitas vezes um atleta que está acostumado e adaptado a uma função acaba tendo que executar uma outra função e ter um outro estímulo com a mudança de treinadores durante a competição. Isso acaba sobrecarregando o atleta. O que a gente vê empiricamente é que alguns atletas sofrem para se adaptar a uma nova proposta de jogo.”

“Como funcionários do clube, a gente vai convivendo com os jogadores do grupo e entendendo o comprometimento de cada um no dia-dia. Aí, por exemplo, chega um novo treinador que quer resgatar alguns jogadores que já passaram por outros treinadores sem dar resposta alguma, sem mostrar compromisso nem mesmo com o grupo. Esse novo treinador acha que ele vai resolver, insistindo em alguns jogadores que nós que já estamos ali há mais tempo temos certeza que não vão funcionar. Você explica, dá exemplos, cita várias situações que já aconteceram, mas às vezes o novo treinador não acredita. Nessa você vai perdendo três ou quatro jogos com um e com outro, porque todos acham que vão conseguir, seja com a maneira de trabalhar ou com o discurso. Só que você não tem mais tempo, porque você joga todo dia, entendeu? Então você acaba atrasando o processo. De repente se deixassem um mesmo treinador que efetivou o elenco e pode entregar um melhor desempenho, eu acho que é um caminho mais fácil.”

PONTO CEGO: A CULTURA DE RESTRIÇÕES ORIGINADA PELAS TROCAS DE TREINADORES

Interrogando os efeitos colaterais sobre o desempenho individual:

  • No domínio individual, como as mudanças de treinadores afetam os profissionais ligados à comissão técnica?

RUPTURA INTERNA

Ao reposicionar o foco da argumentação ao trabalho dos próprios profissionais que navegam pelos bastidores da estrutura esportiva (ou seja, comissão técnica e especialistas das áreas de saúde e desempenho humano), tornou-se possível identificar como as suas práticas laborais são expressamente interrompidas quando os dirigentes do clube permitem que um novo treinador assuma o controle absoluto das operações internas. Após uma troca de liderança técnica, os entrevistados argumentaram que eles devem “convencer o novo treinador a respeito do que já está estabelecido, reafirmando ideias e protocolos”, cuja reincidência contribui para gerar “um estresse interno”. Apesar dos seus esforços em implementar práticas institucionais, caso o novo treinador discorde dos métodos apresentados, “tudo vai por água abaixo, mas os dirigentes do clube pouco se importam com isso”. Agindo com tons de poder e superioridade logo a partir da sua chegada ao posto, “o novo treinador pode alegar que a metodologia e até mesmo o organograma do clube estão errados, por isso mudanças devem acontecer”. No entanto, torna-se primordial defender o fluxo de trabalho interno e reforçar como os profissionais da estrutura esportiva gerenciam “os antecedentes médicos, as operações, as lesões e as limitações que os jogadores apresentam”. Para ilustrar essa realidade, três entrevistados compartilharam a eventual turbulência que acompanha as trocas de treinadores:

“Quando não se acerta o perfil do novo treinador, há mudanças muito bruscas em relação às rotinas e processos. Seja porque ele não acredita na função, no equipamento, na tecnologia, ou nas ideias em geral. O clube passa a correr um risco muito grande de perder processos desenvolvidos ao longo do tempo e que são fundamentais para se chegar ao alto nível daqui a alguns anos. O novo treinador pode atrapalhar o ambiente ao criar desconfiança, com pouca interação entre a comissão técnica e as funções fixas do clube, sem vínculos de lealdade e cumplicidade, que são muito necessários para uma comissão. A todo momento nós precisamos tratar de treinos, reuniões, atletas, viagens, jogos, e na maioria das vezes o ambiente é de muita pressão. Se as relações não partirem ou forem construídas pelo líder, fica muito mais difícil de se conectar. Quando há uma quebra de confiança devido a ideias diferentes e com pouca relação pessoal, a chance de dar errado é muito grande.”

“Nós temos uma linha de trabalho no clube, na qual a gente acredita e tenta colocar em prática, introduzindo algumas situações que nós queremos que sejam institucionais. Por exemplo, nesse momento em que nós estamos no comando da preparação física do clube, está legal porque a gente está aplicando a nossa forma de enxergar e trabalhar, mas daqui a pouco, se trouxerem um outro treinador que tenha outro pensamento, os dirigentes só vão querer cobrar e ver o resultado, entendeu? O impacto é gigantesco quando você se depara com diferentes formas de pensamento e de trabalho. Por quê? Quando o clube está pressionado, os dirigentes abrem a casa toda para o novo treinador. Então assim, geralmente as comissões técnicas chegam ao clube com um poder inimaginável, autorizadas a mudar até a posição da cama dentro do quarto do hotel do clube. Com isso você fica de mãos atadas, porque às vezes você quer implantar um tipo de trabalho ou pelo menos ter um direcionamento do clube, mas se uma nova comissão técnica desacredita completamente naquilo, você sente um impacto grande devido ao poder que eles carregam ao chegar no clube.”

“Via de regra, a substituição do treinador acontece em momentos de crise. Então o sujeito que chega quer recuperar o terreno perdido e eventualmente mudar o que estiver errado. Ele começa a impor até a sua metodologia, porque ele precisa mostrar serviço comparado ao outro que talvez não mostrou. Ele vai querer fazer tudo aquilo que não foi feito. Muitas vezes o novo treinador sobrepõe atitudes, ele é imperativo, ele não é tolerante, porque algo tem que mudar. O treinador quer marcar a sua presença. Ele começa a fazer as suas interferências, até administrativas, para marcar território. Muda hábitos e costumes só para dizer que ele está presente, porque se ele chegou para mudar alguma coisa e não muda nada, já imaginou o que acontece?”

ADAPTAÇÕES REPETITIVAS

Tão logo os compromissos dos treinadores são interrompidos e novos nomes são empregados para ocupar a função, os profissionais que transitam nos bastidores da estrutura esportiva são forçados a se readaptarem continuamente em janelas de curto prazo. Conforme destacado pelos entrevistados, eles se encontram num “reinício constante, sempre recomeçando” e “ajustando a rotina no meio da competição”. De forma compreensível, “se três treinadores trabalham para o clube durante um ano, isso significa três maneiras diferentes para se readaptar”. Na realidade, os profissionais devem aprender rapidamente a como lidar com um novo treinador, “porque alguns querem que você discuta tudo pessoalmente com eles, enquanto outros não querem nem conversar com você”. Encarando as recorrentes trocas de treinadores no meio de uma temporada competitiva, “todos os membros da comissão técnica sofrem para se adaptar a mudanças drásticas de métodos e tratamento humano”. Metaforicamente, um dos entrevistados resumiu a situação argumentando que eles devem “trocar o pneu com o carro em movimento”. Enquanto buscam se sintonizar com diferentes perfis de liderança, preferências de relacionamento e metodologias, os entrevistados percebem as frequentes mudanças de comando como “prejudiciais”, “desagradáveis” e “estressantes”.

“Interfere na questão de você entender o que um novo treinador espera. Tem treinador que quer o jogador (lesionado) no campo o mais rápido possível, independente de qualquer situação. É tipo assim: ‘Ele pode voltar e tratar depois, mas eu quero esse cara no campo.’ Por outro lado, existe treinador que só pede por jogadores que estejam completamente recuperados. Esses dizem: ‘Espera e me entrega o jogador pronto.’ Você precisa entender como funciona a cabeça do treinador e o nível de influência das pessoas que o cercam na nova comissão. Então você tem que, de certa forma, sempre ganhar a simpatia de todos que chegam ao clube, mas isso é cansativo. É desgastante você ter que mudar uma estratégia de trabalho apenas para suprir as expectativas de um novo treinador. É como a sensação de se equilibrar numa corda bamba.”

“Eu me preparo para aquilo que o treinador quer. A minha primeira pergunta ao treinador é: o que você vai fazer? E aí, eu tenho que me adaptar. Desde quando eu comecei a minha carreira, para você ter uma ideia, eu já tentei uma gama de treinamentos para me adaptar ao treinador que estiver na comissão. Então, enquanto eu estou me ajustando ao sistema e também adaptando os atletas ao que o treinador quer ou deseja, geralmente há uma perda com a demissão. Isso nos causa consequências, até porque você aprende a respeitar o profissional, o ser humano. Você passa a ter uma proximidade maior, começa a se envolver mais. Infelizmente isso é interrompido de uma forma até drástica, bem desagradável.”

“Eu tenho que me adaptar ao comando. Não é o comando que tem que se adaptar ao meu modo de trabalho. A partir do momento em que eu consigo me adaptar ao comando, eu tento fortalecê-lo, porque eu sou fiel ao treinador. Por exemplo, se o novo treinador tem um jogo que utiliza muito os pés do goleiro, eu tenho que adaptar os meus goleiros ao que o novo comandante quer. Independente de eu ter um ponto de vista que não seja o mesmo nesse caso, ou talvez eu tenha opiniões diferentes do treinador, mas eu vou sempre fortalecer o comando. É isso o que eu sempre frisei nas reuniões com novos treinadores, independente de como são as mudanças.”

INSEGURANÇA PROFISSIONAL

Atraindo a atenção ao seu lado ocupacional, os entrevistados demonstraram uma tendência a se sentirem inseguros sobre a continuidade dos seus próprios empregos quando eles testemunham transições de treinadores. Segundo os relatos dos profissionais, eles aparentam trabalhar sob uma vigilância implacável, pois “um treinador recém-contratado pode repentinamente demitir qualquer pessoa como se ele fosse o dono do clube”. Para exemplificar, “você não sabe quem o novo treinador irá trazer com ele, nem mesmo como ele irá te avaliar”. Consequentemente, o risco de uma demissão repentina influencia como os profissionais são condicionados a “repensar atitudes para superar uma pressão desconfortável” e “permanecer, de certo modo, seguro no emprego”. Devido a essa instabilidade, eles até questionaram se deveriam priorizar o desenvolvimento de suas carreiras fora do futebol. Especialmente para aqueles que não foram jogadores profissionais, “ninguém possui estabilidade financeira para cuidar da família e pagar as contas, então isso afeta muito a todos nós”. Em retrospectiva, três depoimentos detalham como o cenário de vulnerabilidade dos treinadores efetivamente perturba os bastidores da estrutura esportiva:

“As trocas de treinador trazem uma sensação iminente de volatilidade ao nosso cargo. Sempre que tem uma troca, a gente imagina que está passando por um momento de instabilidade profissional. Por exemplo, eu não sei se o novo treinador vai chegar e pedir para trocar também a equipe de fisioterapia, ou se ele vai trazer um fisioterapeuta com ele. Então toda vez que chega perto de uma troca, todo mundo fica muito inseguro e isso nos atrapalha com grande frequência a desenvolver aquilo que a gente pensa. Esse problema é real! Sem dúvida que essa insegurança, essa iminência de que a qualquer hora você pode perder o emprego, ou que pode haver mudanças que vão nos afetar, isso seguramente influencia o nosso rendimento. Um ponto importante que pode te ajudar no entendimento é que essa situação de muita volatilidade no futebol tem causado uma mudança no perfil dos fisioterapeutas que trabalham com a modalidade. Antes nós tínhamos fisioterapeutas que trabalhavam exclusivamente no clube. Hoje em dia, como é muito volátil, ninguém anima de trabalhar só no clube e entregar ou abrir mão do que se tem por fora para viver apenas de futebol, porque isso não é sustentável. Eu percebo que o perfil do fisioterapeuta que trabalha hoje com futebol é de uma pessoa que acumula funções. Em geral, é a fisioterapia do clube misturada com dar aulas na faculdade, ter um consultório ou a própria clínica. Hoje em dia, cada vez mais o fisioterapeuta tem que segmentar o dia dele, somando outras tarefas e funções para que ele consiga manter a saúde financeira dele e não sofrer um impacto tão grande com toda essa volatilidade de cargos.”

“A partir do momento em que se fala sobre uma troca de comando durante a temporada, isso causa uma intranquilidade entre os empregados do clube. Não apenas para a comissão técnica, mas também para os funcionários e atletas. Essa inquietude se reflete no campo, porque em vez de proteger o treinador, tudo é feito ao contrário. A mudança não vai dar sequência ao trabalho do momento. Então você começa a se questionar: Será que o meu trabalho ou os métodos que eu estou aplicando não são ideais ou corretos? A nossa equipe era a líder do campeonato e, de repente, após dois ou três jogos se tornou a pior equipe? Todo aquele trabalho que foi feito, será que nada daquilo era verdade? Ninguém presta? Não existe parâmetro, porque você é movido pelo resultado. Você fica sempre preocupado porque a expectativa é a de que possa haver mudanças em todos os setores. É difícil trabalhar com essa perturbação, muito difícil.”

“Você não sabe quem chega com o treinador, como eles vêm, com que propósito, se vão dar alguma abertura, se você vai conseguir trabalhar ou continuar. O que acontece é assim: o dirigente chega e dá a chave do clube para o treinador. Isso acontece em muitos clubes. E o novo treinador se mete em tudo também. Se o clube tem nutricionista e ele é contra, ele tira. Se tem psicólogo e ele é contra, ele tira. Se ele não gosta de um funcionário, ele pede para a pessoa não aparecer mais. Por isso que eu falo, não se tem uma coerência dentro do clube. Parece que o treinador é o dono do clube. Se há uma diretriz no clube, você fica menos preocupado.”

DESCONFORTO MENTAL E EMOCIONAL

Alterações sequenciais de comando técnico também desencadeiam momentos de inquietação na vida pessoal dos entrevistados. Considerando a turbulência inerente aos eventos de sucessão de liderança, um dos profissionais argumentou que “o futebol realmente é desumano no Brasil”, visto que ele provoca consequências instáveis na vida privada, social e familiar. Na prática, “os padrões de ansiedade respingam porque, antes de abordar o treinador, os dirigentes descontam a pressão deles em cima de nós.” “Impacta o nosso lado emocional e afetivo, a nossa autoestima cai”, inclusive “com colegas mostrando baixa imunidade e adoecendo.” Coletivamente, os entrevistados compartilharam experiências pouco saudáveis, ponderando como as tensões originadas a partir das mudanças de treinadores tendem a afetar, sobretudo, os seus níveis de dúvida, privação de sono, pressão arterial e estresse ocupacional, cuja combinação interfere até mesmo em relações familiares. Três depoimentos se mostraram reveladores ao âmbito pessoal de cada ser humano:

“Na função de auxiliar, eu não sou o responsável pela tomada de decisões. Eu coloco a minha opinião ao treinador, que formula o que é melhor para a equipe. Agora quando eu assumi como treinador interino, a minha vida mudou totalmente de cabeça para baixo. É até engraçado eu te contar isso porque as pessoas não têm noção do que acontece. Eu passei a não dormir, a não comer. Eu já tinha tido a experiência de comandar um jogo, mas nunca havia passado um tempo como o responsável por todas as decisões. Era tanta coisa acontecendo, tantas decisões a serem tomadas, que a minha vida mudou totalmente. Ali eu pude ver como isso tudo afeta o treinador, como essa pressão é enorme. Um ambiente que parecia estar tranquilo acabou ficando conturbado enquanto eu tentava lidar com todas as situações e problemas. Na verdade, é muita coisa envolvida para o treinador e os dirigentes se escondem ao invés de nos ajudar.”

“Eu posso dizer por mim, pois eu já estou há oito meses sem ver grande parte da minha família, mas convivendo, felizmente, com a minha esposa e a minha filha. Se paga um preço muito alto. Em determinados momentos e para várias pessoas isso não é tão válido. Por exemplo, quando eu assumi como interino há alguns anos, a minha esposa relatou que a minha ausência (em casa) me deixou alienado em relação a ela. Na época eu não conseguia ver isso. Se eu não tivesse as minhas cunhadas ao meu lado para me falar, eu sinceramente não iria perceber isso. Eu estava muito mergulhado com o comando interino no contexto da Série A. Entre idas e vindas aqui, a pressão é muito maior. Isso com certeza acarreta muito à minha saúde e ao meu sono.”

“Posso te falar de mim. Essas trocas sem critério já me afetaram e ainda seguem afetando. Eu também acredito que afeta com certeza a todos. Àquele que diz: ‘Ah, segue a vida!’ Não é assim tão simples. Você tem um planejamento familiar, um modelo de vida. O novo treinador que chega não vai pensar logo nisso, até porque o clube também não pensa muito na pessoa que está chegando. O futebol brasileiro é uma coisa tão maluca que se demite profissionais até quando a pessoa tem um rendimento muito bom. Você pode não fazer um trabalho bom e te demitirem. Aí tudo bem, você vai para casa, fica chateado, vai afetar tudo isso, a pessoa vai ficar triste, mas no final você vai parar e reconhecer que não foi um trabalho legal. Agora, quando você olha um histórico de trabalhos incontestáveis por resultados, títulos, revelação de jogadores e simplesmente chega outra pessoa para te tirar do trabalho, isso nos afeta, lógico que afeta.”

Por fim, a PARTE 3 concluirá o estudo, refletindo acerca da importância em privilegiar o desenvolvimento progressivo e consistente na cadeia de valor que sustenta uma equipe competitiva no futebol profissional.

Para acessar o estudo completo, clique aqui.

Categorias
Áreas do Conhecimento>Técnico Desportivo|Conteúdo Udof>Artigos Artigos Conteúdo Udof>Artigos|Sem categoria Conteúdo Udof>Biblioteca|Sem categoria Conteúdo Udof>Entrevistas|Sem categoria Entrevistas Entrevistas Sem categoria

PONTO CEGO. ENTENDA OS EFEITOS COLATERAIS DAS MUDANÇAS DE TREINADORES NO BRASIL

PARTE 1 – Sinapses do desempenho humano e coletivo

No âmbito dos esportes coletivos, os treinadores atuam como líderes técnicos enquanto colaboram com especialistas das áreas de saúde e desempenho humano em uma estrutura multidisciplinar focada no desenvolvimento esportivo das suas equipes. Nesse sentido, os treinadores de futebol profissional buscam avaliar regularmente o fluxo de informações relacionadas aos comportamentos e posicionamentos dos seus jogadores, a fim de tornar possível o desenho de sessões de treinos que apoiem os seus estilos de jogo preferenciais durante um processo gradual de aprimoramento coletivo. Sobretudo a respeito da prática, um processo efetivo de treinamento no futebol desafia os treinadores a encontrarem intervenções apropriadas ao desenvolvimento de sinergias coletivas, as quais se sustentam por dinâmicas não-lineares e sistemas adaptáveis. Fora de campo, os mesmos treinadores também procuram usufruir do conhecimento e do fluxo interno de processos que integram a estrutura esportiva de seus respectivos clubes, beneficiando-se, por exemplo, pela intersecção de estratégias de controle de cargas e prevenção de lesões. Ao monitorar o equilíbrio entre desgaste e recuperação, os treinadores conduzem o retorno de jogadores lesionados mediante à reaproximação de suas condições ideais. Caso contrário, tanto os indivíduos quanto a equipe podem apresentar menor desempenho físico e técnico numa competição de alto rendimento.

Em consonância com esse raciocínio, existe uma interação contínua entre o treinador e os bastidores da estrutura esportiva em um clube de futebol, uma vez que o seu trabalho compartilhado impacta as decisões em torno do aprimoramento dos jogadores que compõem a equipe. Para exemplificar, muito embora os analistas de desempenho possam fornecer evidências contextualizadas para apoiar o trabalho dos auxiliares técnicos, tais informações ainda estão suscetíveis à interpretação final do treinador que lidera o processo esportivo. Ademais, os protocolos internos devem ser observados e respeitados de modo a proteger o fluxo de trabalho coletivo entre fisiologistas, fisioterapeutas e preparadores físicos, especialmente em situações que sinalizem indícios de alto risco de lesão em jogadores específicos. Ao reforçar tais procedimentos, melhores níveis de comunicação interna tendem a ser decisivos para aprimorar a disponibilidade de jogadores tanto em sessões de treinos como em competições. Portanto, entendendo como o treinador compartilha os
seus domínios profissionais com a comissão técnica e os especialistas das áreas de saúde e desempenho humano, optar por mudanças de comando técnico significa assumir riscos de perturbação, alteração e interrupção de rotinas de treinamento já estabelecidas e influentes nos bastidores da estrutura esportiva.

Apesar de pertencerem a um processo de treinamento complexo, dinâmico e interativo, onde o rendimento esportivo depende prioritariamente da cooperação existente entre os profissionais das áreas de saúde e desempenho humano, aliado às suas respectivas condições contextuais, os treinadores ainda permanecem submetidos a julgamentos superficiais que se baseiam estritamente no placar e no resultado numérico dos jogos de suas equipes. Considerando as típicas limitações de conhecimento técnico e esportivo por parte do corpo diretivo de um clube profissional no Brasil, tornou-se comum testemunhar a arbitrariedade de dirigentes que despacham frequentes demissões e alterações de comando técnico em todo o território. Sobretudo durante a temporada competitiva, tal decisão tende a ser defendida como uma marca registrada para supostamente solucionar situações momentâneas e renovar a esperança de placares favoráveis. Um selo de (in)eficiência para atender os anseios da opinião pública, cultivando a repetição de descartes sem a necessidade de apresentar análises substanciais sobre as consequências que uma eventual troca de treinadores ocasiona para os seres humanos diretamente envolvidos no processo de desenvolvimento coletivo de uma equipe de futebol profissional. Na realidade, entretanto, a alteração de um comando técnico inevitavelmente desencadeia uma série de efeitos colaterais devido à rede de conexões estabelecida em torno do treinador e a partir dele com relação aos demais colaboradores.

Ao analisar períodos sequenciais às trocas de treinadores, a literatura acadêmica tem identificado diferenças significativas em métricas de condicionamento físico, reportando declínios no Brasil e na Espanha, enquanto na Alemanha e na Polônia constatou-se apenas uma evolução muito limitada. Já na Inglaterra, oscilações frequentes de comando técnico costumam acarretar reações emocionais e comportamentais entre os profissionais ligados às áreas de medicina e ciências do esporte, além de mudanças no estado psicológico dos próprios treinadores envolvidos nas ocasiões. Coletivamente, os depoimentos ingleses apontaram para um caminho que reduz a confiança, o comprometimento e a motivação em seus ambientes de trabalho. Ainda assim, a maior parcela das investigações acadêmicas segue examinando o cenário pós-troca por meio de estatísticas que se concentram em resultados de jogos (via pontos, gols, sequência ou ausência de vitórias) e de tabelas competitivas (via posição momentânea ou final na competição, percentual de aproveitamento, classificação ou queda em torneio eliminatório).

Em suma, os sinais de aprimoramento qualitativo originados pelo trabalho dos treinadores e suas comissões técnicas têm sido desconsiderados, o que potencialmente desvaloriza as especificidades do desempenho esportivo em uma equipe de futebol profissional. Desconsidera-se, por exempo, o conteúdo das sessões de treinos, as movimentações e dinâmicas orientadas dentro e fora do campo de jogo, o desenvolvimento e a recuperação individual, a influência sobre comportamentos setoriais, além da progressão gradual de um estilo de jogo com base nas circunstâncias contextuais de cada clube. Consequentemente, torna-se prioritário enfatizar que, muito embora jogadores e equipes possam ser analisados com métricas que representem possíveis indicadores de sucesso, os reais efeitos provenientes do desempenho esportivo estão relacionados ao que acontece predominantemente em torno da equipe e dos seus adversários.

No contexto profissional, a modalidade exige práticas de treinamento voltadas a aprimorar comportamentos coletivos para otimizar variações técnico-táticas, assim como estratégias de condicionamento e recuperação que possam ser devidamente implementadas e controladas durante a temporada competitiva. Contudo, devido à prevalência de uma mentalidade especulativa que privilegia decisões superficiais no domínio organizacional, as mudanças de comando técnico durante o Brasileirão superam quaisquer parâmetros já calculados nas principais ligas de futebol da Europa, América do Sul e do Norte, ilustrando como os treinadores enfrentam desafios muito particulares no cenário brasileiro.

Nota: Entre 2011 e 2020, os treinadores profissionais permaneceram empregados por um período de 78 dias, em média, durante o Brasileirão, o que representa 37% da duração da competição nacional. Esse período inclui um total de 183 treinadores e 34 clubes.

Partindo para uma abordagem teórica, este estudo indaga a dimensão da instabilidade ocasionada pela sucessão de treinadores numa organização esportiva, utilizando os principais clubes de futebol do Brasil como uma referência para a investigação. Na medida em que os períodos voláteis de permanência na função de treinador difundem instabilidades recorrentes dentro de um clube de futebol, o objetivo desta pesquisa se volta a desmistificar a depreciação em cadeia acumulada entre as transições de treinadores. Para tal, ao entrevistar especialistas que participam diretamente do processo esportivo, o estudo se distancia de estimativas estatísticas e se concentra na realidade do alto rendimento em um esporte coletivo.

Ao todo, 30 profissionais com vasta experiência prática junto a comissões técnicas foram entrevistados no período entre 14/Janeiro a 25/Março de 2021. Todos os participantes trabalharam pelo menos um ano na Série A do Brasileirão durante a última década (2011 a 2020). A fim de atender o propósito central do estudo, uma atenção particular foi dedicada a atrair especialistas que já haviam testemunhado múltiplas trocas de treinadores no território brasileiro. Apesar da maioria dos entrevistados ter desenvolvido suas carreiras profissionais no Brasil, as suas experiências práticas também incluem passagens por ligas do exterior (Inglaterra, Espanha, Japão, China, Arábia Saudita) e participações em grandes competições internacionais (CONMEBOL Libertadores, UEFA Champions League, Jogos Olímpicos, Copa do Mundo da FIFA). Respeitando os princípios éticos da metodologia científica, todos os entrevistados e os seus respectivos depoimentos permanecem confidenciais e anônimos frente ao julgamento público.

Fundamentalmente, quando um clube de futebol toma a decisão de substituir o seu treinador profissional durante a competição, torna-se possível reconhecer como o domínio organizacional visualiza um efeito direto e intencional (por exemplo, vencer jogos). Entretanto, mudanças de comando técnico também desencadeiam efeitos indiretos e não intencionais, que por sua vez se espalham aos domínios coletivo (por exemplo, o ritmo de treinamento) e individual (por exemplo, a confiança de um colaborador). Tal interação entre diferentes domínios representa o conceito dos efeitos colaterais, também reconhecido popularmente como efeito cascata ou efeito dominó. Essencialmente, tão logo as ações se manifestem em um domínio superior, inevitáveis consequências tendem a ser disseminadas aos níveis inferiores da organização.

A fim de capturar os efeitos colaterais absorvidos indiretamente pelos especialistas que atuam ligados às comissões técnicas, bem como o impacto sentido pelos jogadores da equipe conforme os treinadores entram e saem do cargo durante a temporada competitiva, esta investigação revela, esclarece e acentua como as rotinas de trabalho tendem a ser desestabilizadas nos bastidores de uma mudança de comando técnico. Indagados a respeito das possíveis ramificações que uma alteração de liderança técnica gera em torno do desempenho da equipe, os entrevistados foram apresentados às seguintes questões sobre o domínio coletivo: Como as trocas frequentes de treinadores impactam o desenvolvimento da equipe na prática? O que acontece com os jogadores entre as transições de treinadores? Como a volatilidade do treinador realmente afeta o desempenho esportivo da equipe? Em seguida, partindo ao domínio individual, os entrevistados foram estimulados a compartilhar as percepções acerca das suas próprias experiências mediante o convívio com substituições de liderança técnica. As questões levantadas foram: Quais são os efeitos colaterais que uma troca de treinador ocasiona para o seu trabalho como profissional no clube? O que acontece com os especialistas ligados à comissão técnica entre as transições de treinadores? Como um novo treinador geralmente afeta a sua função?

Contemplando o contexto brasileiro, este estudo qualitativo responde exatamente às duas perguntas abaixo:

Interrogando os efeitos colaterais sobre o desempenho da equipe:

  • No domínio coletivo, como as mudanças de treinadores afetam o desenvolvimento dos jogadores?

Interrogando os efeitos colaterais sobre o desempenho individual:

  • No domínio individual, como as mudanças de treinadores afetam os profissionais ligados à comissão técnica?

A PARTE 2 revelará o cenário que acompanha as transições de treinadores nos domínios coletivo e individual, apresentando os principais efeitos colaterais que recaem sobre o desempenho da equipe e dos profissionais ligados às comissões técnicas.

Por fim, a PARTE 3 concluirá o estudo, refletindo acerca da importância em privilegiar o desenvolvimento progressivo e consistente na cadeia de valor que sustenta uma equipe competitiva no futebol profissional.

Para acessar o PDF do estudo completo, clique aqui.

Categorias
Áreas do Conhecimento>Humanidades|Conteúdo Udof>Artigos Áreas do Conhecimento>Humanidades|Conteúdo Udof>Colunas Artigos Conteúdo Udof>Artigos

MARX, QUEM DIRIA, CHEGA AO FUTEBOL. MAS SERÁ QUE TEMOS O QUE COMEMORAR?

Karl Marx é, sem dúvidas, um dos maiores e mais importantes pensadores e filósofos da era moderna! Apesar do tempo histórico de seus escritos, suas ideias, até hoje, carregam traços de contemporaneidade. Que a teoria marxista nos ajuda muito a compreender a sociedade que vivemos, sobretudo devido ao modo de produção capitalista que nos guia, não temos dúvidas.

No âmbito da área acadêmica da Educação Física brasileira, já se faz presente estudos voltados à economia política do esporte.

Já que nosso tema é o futebol, vale destacar livro publicado por Wagner Matias, jovem pesquisador do grupo de pesquisa e formação socio-crítica em políticas de esporte e lazerAvante – da Faculdade de Educação Física da UnB, que aos seus 37 anos de idade sucumbiu, em 2021, à pandemia sanitária – e política – que nos atingiu de modo avassalador.

Sua Tese de Doutorado, A economia política do futebol e o “lugar” do Brasil no mercado-mundo da bola, defendida em dezembro de 2019 – no ano seguinte publicada em livro pela editora Appris sob o título Futebol de Espetáculo -, se reporta à forma espetacularizada do futebol e não do espetáculo em si ou mesmo do futebol de alto rendimento. O futebol de espetáculo é uma mercadoria especial permeada pela presença dos veículos de comunicação (sobretudo pela televisão), grandes grupos econômicos e financeiros, com um público consumidor e atletas vistos como mercadorias. Assim, o livro procura desvelar o que está sendo o futebol espetacularizado no contexto do capitalismo tardio: com alguns clubes e ligas globais cobiçados por grandes grupos econômicos, acompanhados por bilhões de pessoas em todo o planeta, produtor de força de trabalho do atleta e de espetáculos, capaz de produzir mais-valia e, também, de ser um “palco” de valorização e de fonte de criação de outros produtos.

Categorias marxistas desenvolvidas com vistas à compreensão do modus operandi do modo de produção capitalista, são acionadas com maestria pelo jovem pesquisador. Dentre elas, optamos por destacar uma, qual seja, a de mais-valia, para refletirmos sobre os jogadores de futebol. Afinal, se o esporte é produção humana, se o futebol é parte constituinte de nossa cultura e se o atleta profissional desta prática social representa um papel de destaque em nossa sociedade, entendemos pertinente tecermos considerações sobre os trabalhadores da bola e a forma ganha pela força de trabalho que traduzem.

Não fomos longe buscar o entendimento de “Mais-valia”. Recorremos – vejam só! – ao preparaenem.com. Nele, a garotada que está buscando ingresso na educação superior saberá que mais-valia é um conceito criado por Karl Marx para explicar o lucro dentro do capitalismoSegundo Marx, a mais-valia é o excedente de trabalho realizado pelo trabalhador que não é pago pelo capitalista, mas é apropriado por ele na forma de mercadoriaA mais-valia é, portanto, um processo de exploração da mão de obra assalariada que gera valor de troca para o capitalista.

Muitos pesquisadores, dentre eles os dois autores deste texto, têm se dedicado e refletir sobre o processo de coisificação e mercadorização do jogador de futebol. Como vendem sua força de trabalho, seu “pé-de-obra”? Muitos dos estudos e textos publicados corroboram a ideia de que o jogador de futebol é entendido e tratado por grande parte daqueles que compõem o contexto do futebol profissional como uma coisa, uma mercadoria e um produto que pode ser comprado, vendido, trocado e descartado tão logo perca seu valor-de-uso (outra categoria marxista).

Não à toa, referências às equipes futebolísticas como máquinas e dos seus jogadores como peças, são bastante comuns, até mesmo entre os próprios atletas. Ainda que alguns, sejam eles integrantes de comissões técnicas, dirigentes, jornalistas e acadêmicos, venham se esforçando para romper com esse olhar e, principalmente, humanizar a relação com o jogador, não nos resta dúvidas que a força do mercado, na lógica do modo de produção capitalista, é significativamente mais poderosa.

Assim, ao invés de humanizarmos as relações trabalhistas entre jogadores de futebol e os clubes esportivos, dando ao trabalhador maior autonomia e poder em relação à sua força de trabalho estamos, cada vez mais, reforçando seu atributo de mercadoria. O jogador de futebol é visto atualmente como um dos principais ativos dos clubes, afinal, são importantes fontes de receita, tanto para os clubes associativos quanto, e principalmente, para os clubes empresas e Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs).

E para que esse ativo se torne ainda mais lucrativo para os clubes e agentes, os contratos passaram agora a explicitar em suas cláusulas um percentual de ganho futuro com a… mais-valia do jogador. Ou seja, se o clube que comprou os direitos federativos de um atleta, o revender para outro clube por valor superior ao pago, o clube vendedor receberá um percentual referente a este lucro obtido.

Sim, nessa história, o trabalhador da bola também leva a sua parte. E, em alguns casos, essa parte representa valor tão exorbitante que mascara a realidade da absoluta maioria de atletas, cujos rendimentos não ultrapassam os 5 salários mínimos.

Como vimos, Marx chegou ao futebol para que entendamos melhor como ele, futebol, se insere na lógica capitalista. Falta agora chegar com seu espírito revolucionário para que também o futebol transcenda essa lógica por outra de natureza humanizada.

Texto por: Rafael Castellani e Lino Castellani Filho

*Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

Categorias
Áreas do Conhecimento>Humanidades|Conteúdo Udof>Artigos Áreas do Conhecimento>Humanidades|Conteúdo Udof>Colunas Artigos Conteúdo Udof>Artigos

UMA SELEÇÃO DE FUTEBOL EM BUSCA DE SUA IDENTIDADE

No dia 4 de julho de 2023 a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) anunciou a contratação de Fernando Diniz e sua comissão técnica para comandar interinamente a seleção brasileira masculina principal de futebol. Escolha dupla, podemos dizer, porque também Fernando Diniz escolheu ser o técnico da seleção brasileira, considerando que ele tinha escolhas, uma vez que era, e continuou a ser, técnico do Fluminense F.C. Para nós, foi uma escolha acertada; não é segredo, para quem nos acompanha lendo nossos textos ou assistindo nossas aulas e palestras, nossa admiração pelo trabalho de Diniz. Recentemente publicamos “Quando o novo incomoda” e “O futebol como prática educativa”. Em ambos os artigos sugerimos que Fernando Diniz é um educador e representa o novo, a mudança.   

Diniz vai além da definição de esquemas táticos. Sua percepção de futebol não se limita a esquemas regidos por setas e cálculos matemáticos. Sua análise do futebol agrega ao racional uma profunda percepção emocional e social. Seus jogadores também são seus alunos e pessoas que existem fora do futebol. Sua equipe é um grupo social que tem vida própria enquanto grupo. É com essa perspectiva que o novo treinador da seleção brasileira de futebol ajudará seus jogadores e resolverem conflitos pessoais e profissionais, dentro e fora do campo. 

Diniz não esconde que muito de sua educação, no futebol e fora dele, foi realizado na rua. Foi nela que aprendeu o valor da criatividade. Ser criança jogando no asfalto, nos campinhos, na terra ou na lama ensina, a uns mais, a outros menos, a criatividade que os padrões rígidos das chuteiras e rotinas de exercícios de muitas escolas e equipes de base não permitem. O novo treinador da seleção brasileira conhece profundamente a rua e seus ensinamentos e sabe perfeitamente levar para suas equipes as virtudes dessa rua e a evitar seus vícios. 

Por sua vez, ao caracterizarmos Fernando Diniz como um agente de mudança, nutrimos nossa esperança de que o futebol brasileiro volte a ser encantador, alegre e criativo.  Muito se fala, há anos, da necessidade de retomarmos em nossa seleção o estilo de jogar tipicamente brasileiro. Aquele que nos dá identidade esportiva. Aquele que nos fez sermos reconhecidos mundialmente como o “país do futebol”. Se este está entre os motivos que balizaram a contratação de Fernando Diniz, a CBF acertou em cheio! Não há no Brasil, e provavelmente no restante do mundo, melhor treinador para alavancar a retomada de nossa identidade futebolística. 

Vale lembrar que, por exemplo, em 1958 fomos campeões mundiais de futebol com jogadores que aprenderam a jogar futebol na rua. Esse é um dos motivos de vermos equipes comandadas por Diniz enchendo nossos olhos com um futebol alegre e criativo. Isso não significa que as equipes desse competente técnico vencerão sempre, pois que futebol é um jogo, e um jogo é marcado, acima de tudo, pela imprevisibilidade. Há treinadores, e não são poucos, que jogam para não perder. Colocam o medo de perder como tema orientador de seus trabalhos. O resultado é um jogo tedioso, triste e feio. Diniz, por sua vez, não recusa o risco, sabe que ele faz parte do jogo, mesmo que o preço, por vezes, seja a derrota. 

Com um futebol parecido com os jogos de bola que tantos de nós praticamos nas ruas, nos campinhos de terra, nas quadras de cimento, o Brasil foi a grande estrela do futebol mundial, de 1958 a 2002. Nunca um país teve tal domínio no esporte mais popular do planeta. Um futebol que, trazido da Europa para os clubes da elite econômica das grandes capitais brasileiras, foi reinventado pela população mais pobre do Brasil. Essa população, encantada pela nova modalidade esportiva, que podia ser jogada com qualquer coisa que rolasse no chão sob o controle dos pés, foi a inventora de um novo jogo jeito de jogar futebol, um jeito tipicamente brasileiro. De 2002 para cá, fomos “perdendo o pé”, perdendo o nosso jeito de fazer diferente no futebol e nos tornando cada vez mais parecidos com europeus. E descobrimos que os europeus são melhores europeus que nós, embora alguns ainda não consigam perceber isso. 

Entretanto, não basta querer retomar nossa identidade. Para isso precisamos ter no comando alguém plenamente identificado com isso. Em nossa opinião, Fernando Diniz é esse alguém. Diniz incentiva o drible, propõe o risco, estimula a criatividade e, quando seu jogador erra, faz com que ele tente de novo e de novo, para que a coragem de tentar supere o medo de errar. Nos times de Diniz, todos constroem, todos criam, pois que Diniz reconhece que seus jogadores não são menos inteligentes que ele. Enquanto boa parte dos treinadores preocupa-se, permanentemente, em controlar todas as variáveis do jogo, Diniz reconhece o caráter coletivo, caótico e imprevisível do futebol. Mais que procurar domesticar o jogo, ele procura lidar com sua imprevisibilidade. 

Para pessoas tão abertas ao risco e ao novo como Fernando Diniz e seu jovem auxiliar técnico Eduardo Barros, há, ainda, muito espaço para crescimento e amadurecimento. Sabemos que eles reconhecem isso e, juntos, seguirão evoluindo.

Texto por: Rafael Castellani e João Batista Freire

*Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

Categorias
Áreas do Conhecimento>Humanidades|Conteúdo Udof>Artigos Áreas do Conhecimento>Humanidades|Conteúdo Udof>Colunas Artigos Conteúdo Udof>Artigos

O QUE SE SABE SOBRE O FUNCIONAMENTO DE GRUPOS NO FUTEBOL?

Há mais ou menos 21 anos estudo os processos de grupo no âmbito do futebol profissional. Desde minha iniciação científica e primeiras participações em grupos de estudos relacionados ao futebol e à psicologia do esporte, preocupo-me com a importância dos processos de coesão de grupo, liderança, vínculos, papeis, comunicação, dentre outros. Trabalhos apresentados em congressos, artigos, minha dissertação de mestrado, minha tese de doutorado ou demais textos como esse, buscam refletir sobre essas temáticas. Entretanto, ainda não sei bem claramente o motivo, constato que são raros os que corroboram a necessidade de investir nessa temática. Poucos pesquisadores se debruçam sobre esse assunto. São raros os eventos científicos/acadêmicos que tenham essa temática dentre as prioritárias. São escassos os cursos que tragam os processos de grupo para dentro do seu planejamento pedagógico. São raros os clubes que se preocupam e voltem seus olhares e atenção a esses processos, de modo sério. 

Por outro lado, é cada vez mais comum notarmos na mídia esportiva reportagens ou manchetes que afirmam que determinado clube está com o “grupo rachado”. Que determinado treinador “perdeu o vestiário”. Que a manutenção de determinado treinador à frente da equipe está comprometida, pois não há mais clima para sua permanência. E o que se faz sobre isso? NADA! Troca-se o treinador ou vende/empresta/encosta determinado jogador e pronto. Bola pra frente! 

Fortunas são empenhadas para formar grandes equipes, mas quase nada se faz para compreender como se comportam os grupos e como se resolvem determinados conflitos de natureza grupal que comprometem, na maioria das vezes de modo decisivo, o rendimento da equipe e todo um planejamento traçado no início da temporada ou no início de um projeto de trabalho. 

São inúmeros os exemplos que poderia trazer para reflexão que tenham conflitos de natureza grupal como o cerne do problema de uma equipe. Talvez, o mais recente deles esteja relacionado à demissão do treinador Rogério Ceni da equipe do São Paulo e o que seu sucessor, Dorival Junior, em tão pouco tempo, deu conta de transformar. Trarei, então, esse caso para discutirmos e refletirmos juntos. À época dos principais acontecimentos, surgiu uma série de reportagens e inúmeros debates na televisão ou internet sobre os episódios que envolviam o treinador Rogério Ceni e os conflitos que a equipe do São Paulo vinha enfrentando quando ele ainda era o treinador. Como não faço parte do grupo, não vivo o dia-dia do clube e sequer tive a oportunidade de conversar com algum integrante da equipe, certamente qualquer coisa que eu diga sobre esse caso específico está comprometida. Me deterei, portanto, a tecer alguns comentários sobre isso tendo como referência o que é trazido pela mídia esportiva, sobretudo depoimentos de atletas que conhecem bem o contexto, “dialogando” com tudo o que venho estudando e produzindo academicamente nos últimos 20 anos. Meu interesse é mais discutir sobre os processos de grupo e menos de debater um caso ou exemplo específico.

Manchete do Globoesporte.com diz: “Ceni discute com Marcos Paulo em treino, e jogadores do São Paulo reclamam do técnico com diretoria”. Programa esportivo de opinião do portal UOL discute se “há clima para (a permanência) de Rogério Ceni”. Reportagem de Luiz Rosa ao mesmo portal trás como manchete: “atritos entre Ceni e elenco passam pelos treinos e contusões”. O portal SPFC.NET, que cobre os bastidores do clube, estampa reportagem com a seguinte manchete: “Com Ceni pressionado após novo tropeço, dirigente revela vestiário do São Paulo rachado”. Conforme jornalista que cobre o dia-dia do São Paulo, Jorge Nicola, “Rogério Ceni não tem mais clima dentro do São Paulo”.  

Sobre o Rogério Ceni e seu estilo de liderança, gostaria de tecer alguns breves comentários. Não é de hoje que é noticiado na mídia esportiva que o treinador costuma ter problemas de relacionamento com dirigentes dos clubes que representava ou com parte do grupo de atletas que comandava. À exceção do Fortaleza, onde não tenho conhecimento de notícias desta natureza, em todos os demais clubes que o Rogério Ceni passou, ele teve problemas relacionados ao modo como se relacionava com os jogadores. Cruzeiro, Flamengo e o último clube do qual foi treinador: o São Paulo. Não parece mera coincidência, concordam?  

Ceni tem uma personalidade “forte”. Diz o que pensa, não importa para quem ou quando. É uma pessoa muita trabalhadora. É estudioso. Exigente. Determinado. Vencedor. Sempre foi, ou procurou ser, protagonista nos clubes por onde passa. Tem tudo para ser um dos melhores treinadores do Brasil, não tenho dúvidas disso. Inclusive, já colhe, no seu breve currículo de treinador, vários títulos, alguns deles de muita expressão. No entanto, vejo comportamentos e atitudes dele enquanto líder, no âmbito dos processos de grupo, que precisam ser repensadas se quiser evitar problemas como esses que tem enfrentado sucessivamente nos clubes que defende. 

E isto que venho tentando problematizar neste texto não vale somente para o Rogério Ceni, mas para grande parte dos treinadores do futebol brasileiro. São reflexões, em formato de perguntas, que deixarei para cada um de nós pensarmos e buscarmos respostas. 

Pessoas importantes no processo de montagem das equipes, os treinadores sabem o que significa, do ponto de vista dos processos grupais, trabalhar com grupos de distintos tamanhos (pequenos, médios ou grandes)? Como lidar com aquele jogador que não tem espaço na equipe e, às vezes, sequer é relacionado para os jogos? Como manejar as relações dentro de grupo no qual pessoas, seres humanos (e não peças, dotados, portanto, de desejos, necessidades, subjetividades), não ocupam o papel que desejam? Como fazer com que todos caminhem em busca de um mesmo objetivo quando há privilégios não discutidos e aceitos por todos? Como estabelecer um vínculo de respeito e confiança com todos? 

Toda relação grupal passa pela confiança e boa comunicação entre seus membros. Como criar um vínculo de confiança, respeito e segurança se o treinador sequer conversa com seus atletas sobre suas decisões? Proteger o grupo é comportamento esperado de qualquer líder. Como garantir que seus jogadores se sintam protegidos e acolhidos se em situações de fracasso, derrota ou erros, são expostos publicamente?

Nenhum grupo é formado “do dia para a noite”. Para que um grupo funcione e trabalhe de modo eficaz e produtivo, ou entre em tarefa, como nos diz Pichon-Riviere (2005)[1], ele precisa de tempo para vivenciar experiências distintas e passar por algumas fases fundamentais, permitindo, por exemplo, que se consolide o sentimento de pertença, de pertinência, de tele (conceitos pichonianos), ou seja, que passe por determinados estágios de desenvolvimento e amadurecimento enquanto grupo. Como garantir isso se não é dado ao jogador condições para que ele experimente todas essas fases do processo de formação de grupo? Como garantir que um atleta recém-chegado ao clube se sinta incluído, parte, e importante para o grupo, se sequer seu processo de adaptação é respeitado?  

Por outro lado, o que imaginam que acontece no grupo, consciente e inconscientemente,  quando um atleta acaba de chegar ao clube e antes mesmo de fazer um treino é escalado como titular em uma partida? Por mais importante e reconhecido que esse atleta possa ser, será que ele passou por todos os estágios capazes de integra-lo, de fato, ao grupo? E o que acontece com o atleta que até então vinha ocupando o papel de titular e, de um dia para outro, perde seu posto, seu reconhecimento, seu status, sua importância?  

Grande parte dos questionamentos e desavenças por parte dos atletas em relação aos treinadores se dá por não concordarem com suas condutas e, principalmente, com suas escolhas. Se sentir injustiçado é um dos principais motivos para que o atleta não se dedique como pode, e deve, nos treinos e jogos e, consequentemente, não obtenha o rendimento esportivo pelo qual ele foi contratado. Estamos falando, também, de motivação. Estamos de falando de motivos (ou ausência deles). Que motivos encontrará o jogador para treinar e jogar mais, e melhor, se, na sua visão, será, ou está sendo, injustiçado pelo treinador? Como acabar ou ao menos minimizar essa percepção de injustiça sem fazer com que o atleta entenda os motivos e saiba dos argumentos para suas escolhas? 

Voltando a falar do clube trazido neste texto como exemplo, o atual treinador, Dorival Junior, tem obtido resultados expressivos e nitidamente, mesmo à distância, é possível notarmos um melhor ambiente, algo confirmado em entrevistas e, consequentemente, um melhor desempenho individual e coletivo da equipe. 

Em reportagem ao GE[2], Dorival Junior afirmou que “[…] é normal você se preocupar com o lado tático, do técnico, físico, temos que abastecer nosso elenco em todos os aspectos, mas o principal é o lado humano, e esse lado humano tem que ser valorizado sempre”. Ao reportar sua atenção ao lado humano, Dorival explicita a necessidade de darmos atenção ao que pensam e sentem os jogadores. Estamos falando de psicologia do esporte, portanto. Estamos esclarecendo que os atletas são sujeitos (e não máquinas) que possuem desejos, necessidades, subjetividades. E que isso tem que ser notado e respeitado! 

Há quem entenda que treinador não deve ficar se justificando ou argumentando sob suas escolhas e decisões… Que treinador não deve ficar preocupado com atleta insatisfeito… Que treinador deve se preocupar somente com seus titulares e jogadores mais importantes tecnicamente… Que o treinador está acima do grupo e não no centro do grupo. Há quem entenda que jogador de futebol é muito mimado e, por isso, deve trata-lo com indiferença e ausência de empatia. Há quem entenda que jogador é uma máquina, uma peça e, portanto, deve render de qualquer jeito. 

Enquanto entendimentos como esses predominarem, continuaremos a ler frequentemente nas mídias esportivas que determinado grupo está rachado. Que determinado treinador perdeu o grupo. Que não há clima para determinado treinador permanecer no clube. Continuaremos a ver trabalhos que poderiam ser duradouros e eficazes sendo interrompidos por problemas de natureza grupal. 


[1] PICHON-RIVIÈRE, E. O processo grupal. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

[2] https://ge.globo.com/futebol/times/sao-paulo/noticia/2023/07/21/dorival-explica-como-recuperou-confianca-do-sao-paulo-e-ve-time-criando-ambicao-por-conquistas.ghtml

Texto por: Rafael Castellani

*Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

Categorias
Áreas do Conhecimento>Humanidades|Conteúdo Udof>Artigos Áreas do Conhecimento>Humanidades|Conteúdo Udof>Colunas Artigos Conteúdo Udof>Artigos

COPA DO MUNDO FEMININA: HORA DO MUNDO OLHAR PARA ELAS

Se você ainda não compreendeu o novo e melhor momento global do futebol de mulheres, agora é a hora. Seja como torcedor, patrocinador ou investidor, esta modalidade vem crescendo exponencialmente nos últimos anos e vive em 2023 seu melhor momento.

Comece pela expectativa de público que ultrapassou 1 bilhão na última Copa em 2019 e este ano são esperadas 2 bilhões de pessoas com jogos transmitidos para 150 países em TV aberta e streaming. Imagine a enormidade de oportunidades que isto traz para engajar meninas no esporte em todo o mundo, para negócios adjacentes e para a visibilidade de marcas.

Em pesquisa recente, o IBOPE Repucom constatou que 48% dos internautas brasileiros conectados, ou seja, quase 57 milhões de pessoas, se declararam fãs da Copa do Mundo feminina. Para uma modalidade proibida por mais de 60 anos, esses números são incríveis e mostram que ainda há muito espaço para ser conquistado.

A premiação será a maior de todos os tempos: R$ 733 milhões para as equipes participantes. Este ponto é motivo de debate quando comparado à premiação da Copa do Mundo masculina, mas, aqui e em outras discussões de remuneração, há de sermos mais pragmáticos e buscarmos a sustentabilidade. É urgente e necessário o debate e a comunicação de todos os benefícios, retornos e quão estratégico é o futebol feminino. Porém, precisa crescer de forma rentável e sustentável para continuar atraindo jogadoras, torcedores, marcas e investidores.

Tudo citado acima é importantíssimo, mas o que verdadeiramente me atrai é o poder de transformação quando o futebol feminino ganha esta visibilidade global.

Convido ao acompanhamento desta Copa, atentos à riqueza de reflexões e debates que já estão nas pautas dos jornais e nas rodas de conversa. Convido você a um olhar mais sistêmico para o que acontece dentro e fora das 4 linhas.

São milhares de exemplos que tenho aprendido nos últimos anos. Cito alguns que me encantam no futebol feminino: equidade, inclusão, direito a gravidez durante a profissão, sonho de ser mãe retomado ao pendurar as chuteiras, conversa aberta para apoio ao combate à violência doméstica nas comunidades, desenvolvimento de caráter e coletivo jovem, abertura para um basta ao assédio sexual e moral e muito mais.

E termino dizendo que, para esta grande virada e a continuidade desta jornada de sucesso, foi e serão cada vez mais necessárias mulheres líderes e o apoio do que chamo de homens de “alma feminina”.

Boa sorte, meninas!

Texto por: Heloisa Rios, especialista em estratégia, inovação e ESG, é sócia-CEO da Universidade do Futebol e conselheira de empresas.

Categorias
Áreas do Conhecimento>Humanidades|Conteúdo Udof>Artigos Áreas do Conhecimento>Humanidades|Conteúdo Udof>Colunas Artigos Conteúdo Udof>Artigos

Se LIGA

Não é só sobre juntar os clubes de futebol. Não é só sobre negociar e defender os interesses dos clubes em negociações de direitos de transmissão de TV. Não é só sobre futebol brasileiro e sobre campeonatos e transmissões. Não é só sobre aumento de receitas. É muito mais que isso.

Em um cenário no qual as opções de entretenimento são abundantes, as formas de consumo estão mudadas, o poder das mídias sociais e dos influenciadores desafiam as mídias tradicionais e governança e integridade entram na pauta dos esportes, é preciso ir muito além quando se discute a necessidade, o impacto e o valor de uma Liga Nacional de Futebol.

Um bom ponto de partida para esta reflexão é lembrar que futebol não se faz sem dinheiro, mas futebol também não se faz só com dinheiro. Partindo da conjectura econômica, especialistas já projetam que se estivéssemos trabalhando melhor o produto futebol, nossa indústria já deveria estar faturando o dobro do que fatura hoje. Ou seja, o futebol brasileiro já deveria ter rompido a barreira dos 100 bilhões de reais de faturamento e estar alcançando algo próximo de 1,5% do PIB brasileiro que já é a importância do futebol e dos esportes em muitos países. Mais que isso, projeções feitas por estudiosos de uma Liga Nacional de Futebol, já projetam o potencial de crescimento para 3 a 5 vezes o que somos hoje.

O importante é ter consciência e construir esta jornada pois estas cifras são consequência e não ponto de partida. Mesmo que estudos, estruturações e articulações já estejam avançados e que investidores globais já estejam prontos para ajudar a impulsionar o crescimento e impactar todo o ecossistema do futebol, falta um passo essencial: o senso verdadeiro de coletividade onde clubes abram mão de discutir um percentual grande de negócio pequeno. Falta a visão de que um espetáculo não é feito de poucos clubes fortes, mas de muita disputa e da competitividade. Um espetáculo é feito do jogo e de todos as experiências vividas pelos torcedores, fãs e consumidores de futebol dentro e fora dos estádios de futebol.

Falta ainda a visão de que a distribuição mais inteligente dos direitos de transmissão da TV é apenas uma pequena parcela e se tornará ainda menos relevante quando todo ecossistema evoluir e começarmos a investir além dos jogos e a termos resultados para muito além disto, como em outras ligas como a NBA.

Desejo que indivíduos pensem e ajam no coletivo. Que disputas por poder e questões de ego sejam derrotadas em benefício de milhões de pessoas e milhares de negócios. Desejo que todo potencial de ganho econômico venha ancorado em uma governança forte, em fairplay financeiro, em visão global de promoção e comercialização dos direitos e, acima de tudo, em projetos concretos de investimentos sociais e em educação para o desenvolvimento de todos; desde atletas da base até treinadores e gestores que devem ser preparados para que voltemos a ser o país do futebol.

Se LIGA, pois há um cavalo selado passando na nossa frente. É agora, ou agora.

Texto por: Heloisa Rios, especialista em estratégia, inovação e ESG, é sócia-CEO da Universidade do Futebol e conselheira de empresas.